Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 1, mar./jun., 2022
DOI: 10.36517/rcs.2022.1.d03
ISSN: 2318-4620

 

 

O mutualismo entre liberal-conservadorismo e fascismo:
disputa ideológica e cenário político do Brasil contemporâneo

 

Mateus Mendes OrcID
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
mendes.mateus1980@gmail.com

Marcia Ribeiro Dias OrcID
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
marcia.dias@unirio.br

 

(...) é o segredo da felicidade e da virtude: amar o que se é obrigado a amar. Tal é a finalidade de todo o condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social a que não podem escapar.
(Aldous Huxley, Admirável mundo novo)

Introdução

Ideologia é o conjunto ou sistema de ideias, valores e crenças acerca da sociedade. É o programa e a estratégia destinados a dar sentido à ação política do indivíduo, do coletivo ou da classe social. A ideologia pode servir tanto para preservar como para alterar uma dada ordem política, portanto, é possível dizer que inexiste ação política desprovida de ideologia (EAGLETON, 2019; HEYWOOD, 1992; LARRAIN, 2012; SCHWARZMANTEL, 2008; STOPPINO, 2010).

A história hodierna pode ser analisada, portanto, a partir do movimento dialético das principais ideologias contemporâneas: o liberalismo, o conservadorismo, o socialismo e o fascismo. O desenvolvimento de cada uma dessas ideologias contou com uma fase de afirmação, seguida da confrontação com as demais e o surgimento de correntes que buscavam o reforço dos valores originais ou uma aproximação com alguma das outras ideologias (HEYWOOD, 1992).

Entretanto, há uma interpretação do sentido da ideologia como sendo ilusão, e representa engano, que percorre dois extremos: em um polo está a noção de “falsa consciência” de origem marxiana e em outro polo está o que chamaremos de “empirismo autoritário”, expressão do conservadorismo, cujos representantes se colocam no lugar de portadores da verdade, fruto da experiência, em oposição a doutrinas que visam o irrealizável. A definição “empirismo autoritário” pode ser associada em sua origem à crítica que Napoleão Bonaparte faz à democracia, entendendo-a como uma ideologia que faz crer ao povo uma capacidade que inexiste, a do autogoverno (WILLIAMS, 2000, p. 107–108). Como extremos que são, essas duas perspectivas se tocam e se confundem aos olhos do intérprete descuidado. Importa, portanto, distingui-las: se, de um lado, o conceito de “falsa consciência” tem como missão o reconhecimento dos interesses de classe e identifica a pluralidade desses mesmos interesses e seu conflito imanente, o “empirismo autoritário” tem como aporte o autoritarismo, na medida em que identifica uma verdade, supostamente apoiada na experiência, que nega o conflito social e o pluralismo político. A falsa consciência é o que leva o povo a agir de forma contrária ao próprio interesse; o empirismo autoritário é o que legitima o tirano a agir de forma contrária ao interesse popular. Essas são as faces opostas de uma soberania imaginária, resultante de um processo democrático reverso.

No seu discurso de posse, o presidente Jair Bolsonaro conclamou os congressistas a “reerguer nossa Pátria, libertando-a, definitivamente, [...] da submissão ideológica”. Afirmou que seu governo vai “unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um país livre das amarras ideológicas”. Finalmente, disse que a política externa brasileira precisa ser conduzida “sem viés ideológico”. Esses excertos seriam suficientes para dirimir a discussão acerca da “morte das ideologias”, afinal, por óbvio, não se busca libertar alguma coisa de algo inexistente. Apenas algo real (ainda que imaterial) pode amarrar alguma coisa. Portanto, o discurso acima explicita não apenas que as ideologias são componentes importantes da vida política, mas também que há uma disputa ideológica no seio da sociedade brasileira.

Os arautos do “empirismo autoritário” consideram um insulto ter sua ação ou pensamento classificados como ideológicos e, em consequência, pregam o fim das ideologias. Ao isentar-se de um comportamento ideológico, o que querem é universalizar sua visão de mundo e calar vozes dissonantes. E o terreno mais fértil à proliferação de ideologias autoritárias é onde vicejam a frustração e o ressentimento sociais, a partir dos quais seja possível identificar um inimigo comum que deve ser eliminado. Todos esses elementos estão presentes no conteúdo discursivo das lideranças do atual governo brasileiro.

O presente artigo se propõe a mostrar a relação entre o liberal-conservadorismo e o fascismo e como o Brasil contemporâneo é tributário da penetração dessas ideologias na sociedade brasileira. Para tanto ele está estruturado em quatro partes.

Na primeira seção, fazemos uma discussão epistemológica acerca de ideologia, na qual se aborda a relação dela com as noções de poder e de verdade. Na segunda, caracterizamos fascismo e liberal-conservadorismo, bem como apresentamos os contextos históricos nos quais cada uma dessas ideologias está inserida. A seção subsequente aborda a contrarrevolução neoliberal no Brasil. Nesse item, trata-se da disputa ideológica acerca da implementação do Estado de bem-estar social no Brasil. São abordados os embates ideológicos em torno da Constituição de 1988, que resultaram na previsão de uma série de direitos sem que houvesse dispositivos que viabilizassem sua implementação. A seção também aborda, de forma sucinta, como a esquerda socialdemocrata e a direita neoliberal travaram a disputa ideológica na sociedade, materializada na defesa ou oposição ao projeto de Estado de bem-estar social.

Finalmente, a última seção analisa a associação entre o crescimento do liberal-conservadorismo e do fascismo no Brasil. Nesse tópico, mostra-se a expansão de cada uma dessas ideologias no Brasil em anos recentes, destacando-se que esse crescimento, muitas vezes, ocorreu e ainda ocorre de forma associada.

A conclusão apresentada é que, no Brasil, há um mutualismo entre liberal-conservadorismo e fascismo. O crescimento de cada uma dessas ideologias se alimentou do crescimento da outra, em um círculo vicioso. Assim, o processo político brasileiro reflete também um embate ideológico no qual se percebe que o liberal-conservadorismo preparou a sociedade brasileira para um projeto fascista e que o fortalecimento do fascismo foi condição para que o liberal-conservadorismo ganhasse a eleição de 2018.

Sobre o conceito de ideologia

As discussões epistemológicas sobre o tema costumam ocorrer em duas frentes. Uma é a da relação entre ideologia e verdade e a outra entre ideologia e poder. Essas frentes se comunicam e, por vezes, acabam por criar um único debate a envolver ideologia, poder e verdade. Andrew Heywood (1992) ilustra isso ao afirmar que entre o mundo real e o indivíduo há a ideologia, a lente pela qual as pessoas decodificam a realidade objetiva. Além disso, afirma o autor, ela atua como cimento social que confere poder a um grupo (ou classe), de modo a capacitá-lo a interferir no processo político.

Uma conotação negativa de ideologia tenta resumi-la a uma falsificação da realidade. Sendo ela um sistema de ideias e valores que motivam a ação política, seus elementos tanto são verdadeiros quanto falsos, pois articulam, a um só tempo, conjuntos discursivos empíricos e axiológicos. A diferença está no lastro com a realidade, obrigatório apenas no primeiro caso, ou seja, quando a ideologia se fundamenta em preceitos verdadeiros. Porém, ainda que se reconheça que as classes dominantes travestem seus interesses como visões de um mundo ideal e que o discurso ideológico serve também para legitimar parte da realidade objetiva das pessoas, não seria razoável que uma concepção de mundo totalmente dissociada da realidade material e objetiva dos seres humanos possuísse longevidade (EAGLETON, 2019).

Foi com essa conotação negativa que a ideologia surgiu na teoria marxista. Karl Marx e Friedrich Engels (2007) definiram-no como “falsa consciência” (LARRAIN, 2012). Segundo eles, é a vida material que determina a consciência, e não o contrário. Além disso, a ideologia serviria para legitimar uma dada realidade objetiva:

As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação (MARX; ENGELS, 2007, p. 47).

Vladmir Lenin expandiu o conceito, despindo-o da carga negativa e conferindo-lhe neutralidade. Para ele, ideologia não é uma distorção da realidade, ela não tem apenas a função de dissimular a opressão. Lenin entende a ideologia como a consciência política de uma determinada classe (LARRAIN, 2012). Para Lenin (2006), há duas ideologias, a burguesa e a socialista, sendo que aquela já se encontra pronta, ao passo que a última necessita ser desenvolvida. Argumenta que o tempo de maturação da consciência burguesa e seu maior acesso a meios de difusão “incomparavelmente mais poderosos” contribuem para sua supremacia.

Para Antônio Gramsci há uma relação inquebrantável entre as condições materiais e as relações de produção, de um lado, e as ideias que lhes dão sentido, de outro; a separação entre o conteúdo e a forma é apenas um recurso didático (LIGUORI, 2017). A ideologia, afirma Gramsci, “dá o cimento mais íntimo à sociedade civil e, portanto, ao Estado” (GRAMSCI, 2017, p. 78). Nesse sentido, a burguesia cria uma estrutura ideológica cuja função é promover “a organização material voltada para manter, defender e desenvolver a ‘frente’ teórica e ideológica” (GRAMSCI, 2017, p. 78). Gramsci caracterizou a ideologia como uma concepção de mundo e fez três considerações: ela se manifesta em todas as dimensões da vida; inspira e direciona a ação política; e, como corolário da articulação das anteriores, ideologia é o instrumento pelo qual uma classe obtém o consentimento para assegurar, construir ou confrontar a hegemonia (LARRAIN, 2012; LIGUORI, 2017).

Louis Althusser identifica duas teorias da ideologia, uma geral e outra específica. Na geral, a ideologia tem a finalidade de criar ou manter a coesão da sociedade. Na específica, a ideologia agrega a função de assegurar a dominação de classe (LARRAIN, 2012). Além disso, o autor a identifica como algo a mediar o simbólico e o material: a ideologia é “uma representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (ALTHUSSER, 1980, p. 153). Desse modo, ela fornece sentido às atividades e à realidade nas quais as pessoas estão envolvidas.

É comum que as definições de ideologia a associem aos termos dominação e poder, o que comporta dois problemas. O primeiro diz respeito à relação entre os termos e resulta em duas visões antagônicas e equivocadas. Uma é a noção de ideologia como um conjunto de significados voltado à manutenção da dominação. No entanto, por esse raciocínio, o feminismo e o socialismo não seriam ideologias. Por outro lado, há os que a concebem como esquemas de ideias cujo objetivo é se opor à racionalidade dominante. Aqui, a falha está na negação de que a “racionalidade dominante” também é uma ideologia (EAGLETON, 2019).

O outro problema refere-se à própria concepção de poder, tal como entendido pela ótica de Michel Foucault e seus seguidores, qual seja: o poder é algo que permeia todas as relações humanas. Porém, o que abarca tudo acaba, paradoxalmente, por não se encontrar em lugar nenhum. Dessa forma, sendo a ideologia um instrumento do poder, e estando o poder por todos os lados, a ideologia teve seu significado tão estendido que não explica nada. (EAGLETON, 2019).

Há um aspecto importante dos sistemas ideológicos que articula as questões de verdade/falsidade e do poder. Elas operam nas dimensões cognitiva e emotiva dos indivíduos, o que lhes confere potencial para ser instrumento de manipulação das massas. No aspecto cognitivo, as ideologias possuem um pilar dogmático — imune a argumentos e fatos — e outro doutrinário — apoiado no raciocínio lógico-dedutivo. No aspecto emotivo, as ideologias mobilizam paixões. Assim, determinadas características da forma de ver o mundo do indivíduo contornam o racional. Não significa que a ideologia atue com base em elementos irracionais (que desafiem a razão) ou ilógicos (que confrontem a lógica), mas que ela interage com o viés de confirmação, ou seja, a pessoa está predisposta a crer em algo ainda que esse algo não resista a um exame sob a ótica da racionalidade e da lógica porque isso está relacionado a alguma paixão ou ódio que essa pessoa já tem consigo (HEYWOOD, 1992; STOPPINO, 2010).

No mesmo diapasão, Althusser ressalta que a ideologia conecta as dimensões afetiva e material da vida.

Althusser tenta mover-nos, portanto, de uma teoria cognitiva para uma teoria afetiva da ideologia — o que não é, necessariamente, negar que a ideologia contenha certos elementos cognitivos, ou reduzi-la ao meramente “subjetivo”. É, decerto, subjetiva no sentido de ser centrada no sujeito: suas elocuções devem ser decifráveis como exprimindo as atitudes ou relações vivenciadas do falante com o mundo (EAGLETON, 2019, p. 39).

Segundo Eagleton (2019), as ideologias são constituídas por complexas redes de elementos empíricos e normativos, vivências e “visões de mundo”. Assim, compreender as ideologias depende de uma compreensão anterior do conjunto de práticas materiais que são necessárias à reprodução das relações de produção existentes. Nesse sentido, a ideologia se refere às relações afetivas e inconscientes que estabelecemos com o mundo, ou seja, à maneira pela qual os sujeitos se vinculam à realidade social. A ideologia dominante implica em sujeição a um conjunto de ideias e práticas reiteradas pelos aparelhos ideológicos do Estado. As relações vivenciadas são, portanto, matizadas por um conjunto de crenças e suposições que podem tanto ser verdadeiras quanto falsas.

Fascismo

A compreensão do fascismo enquanto ideologia demanda uma abordagem preliminar acerca de seus aspectos históricos e sócio-políticos. Do ponto de vista histórico, o fascismo vem na esteira da crise de 1929, que solapou o liberalismo ideológico e suas expressões econômicas e políticas. De fato, sua origem antecede a crise, mas a partir desta, ou ainda, a partir das suas consequências políticas, econômicas e sociais que o fascismo encontrou solo fértil para se tornar um fenômeno com a envergadura que teve. Do ponto de vista econômico, o laissez faire estava na raiz da crise que levou ao empobrecimento da baixa classe média, da pequena burguesia e do campesinato, que logo passariam a compor a base social do fascismo. Do ponto de vista político, trabalhadores, classe média e pequenos proprietários passaram a questionar a capacidade de que, pela democracia representativa, se formassem governos que minimamente freassem o caminho para o colapso social iminente (BOTTOMORE, 2012b; HEYWOOD, 1992; HOBSBAWM, 2013; PASSMORE, 2002). Assim, o potencial mobilizador do liberalismo desidratava, ou seja, o liberalismo se enfraquecia enquanto ideologia.

À época, muitos enxergaram nesse quadro o prelúdio da revolução social. E foi buscando evitá-la que liberais e conservadores anuíram ao fascismo, visto por eles como um mal menor (BOTTOMORE, 2012b; HEYWOOD, 1992; HOBSBAWM, 2013; PASSMORE, 2002). Porém, em que pese o fato de que a União Soviética simbolizava uma alternativa e que os socialistas ganhavam força dentro no cenário político nos Estados europeus, “a ameaça às instituições liberais vinha apenas da direita política” (HOBSBAWM, 2013, p. 115)

Por mais antiliberal que o fascismo seja, ele não é anticapitalista. Dessa forma, para o grande capital, o fascismo representou e representa uma possibilidade de organizar a sociedade. Sob o fascismo, o Estado não tem limites para atuar contra os que se oponham aos interesses dominantes (BOTTOMORE, 2012a; HOBSBAWM, 2013; MONIZ BANDEIRA, 2016; PASSMORE, 2002; STANLEY, 2018).

O fascismo teve algumas grandes vantagens para o capital, em relação aos outros regimes. Primeiro, eliminou ou derrotou a revolução social esquerdista, e na verdade pareceu ser o principal baluarte contra ela. Segundo, eliminou os sindicatos e outras limitações aos direitos dos empresários de administrar sua força de trabalho. Terceiro, a destruição dos movimentos trabalhistas ajudou a assegurar uma solução extremamente favorável da Depressão para o capital. Enquanto nos EUA os 5% de unidades consumidoras do topo viram entre 1929 e 1941 sua fatia de renda total (nacional) cair 20%, [...] na Alemanha os 5% do topo ganharam 15% durante o mesmo período. Finalmente, o fascismo foi eficiente na dinamização e modernização das economias industriais (HOBSBAWM, 2013, p. 132).

Com efeito, o fascismo mostrou-se à grande burguesia como a mais funcional e lucrativa das alternativas à crise. Entretanto, há que se registrar que o fascismo seguiu caminho oposto ao das outras ideologias de direita. O liberalismo e o conservadorismo foram concebidos, atualizados e propagados desde os estratos superiores das sociedades e foram ganhando aos poucos os intermediários. Já o fascismo surgiu nos estratos intermediários e foi ganhando adeptos nos superiores. Quando a burguesia industrial apadrinha o fascismo, este já mobilizava uma parcela expressiva, ainda que minoritária, da população, notadamente, a pequena burguesia, os segmentos inferiores do funcionalismo público e as camadas inferiores da classe média em geral.

A esse respeito, Clara Zetkin (2019) observou a relação do fascismo tanto com as massas quanto com a burguesia. O fascismo serviu de “asilo aos desabrigados políticos”, às massas que não mais acreditavam na democracia representativa como mecanismo para solucionar a catástrofe econômica e social instalada pela crise que se abatia sobre a Itália já antes da crise de 1929. Todavia, a autora pontua que

Desde o início, a burguesia compreendeu nitidamente a situação e, dessa forma, a vantagem que ela pode obter com o fascismo. O que quer a burguesia? Ela está empenhada na reconstrução da economia capitalista, ou seja, na manutenção de sua dominação de classe. Sob as atuais circunstâncias, a pré-condição para atingir esse objetivo é uma intensificação e um crescimento consideráveis da exploração e opressão sobre a classe trabalhadora.

A burguesia está inteiramente ciente de que sozinha ela não possui os instrumentos de poder necessários para impor esse destino aos explorados (ZETKIN, 2019, p. 26).

Essa incapacidade à qual se refere a autora decorre do fato de que

A burguesia não pode mais confiar nos meios de força regulares de seu Estado para garantir sua dominação. Para tal, ela precisa de um instrumento de força extralegal e paramilitar. O que foi oferecido pelo aglomerado heterogêneo que constitui a turba fascista. Esta é a razão pela qual a burguesia oferece a sua mão para o beijo fascista, permitindo-lhes completa liberdade de ação, contrariando a tudo que está inscrito ou não nas leis. Ela vai além. Ela nutre o fascismo, sustenta-lhe e promove seu desenvolvimento com todos os meios à sua disposição em termos de poder político e reservas bem guardadas de dinheiro (ZETKIN, 2019, p. 26–27).

No entanto, em que pese sua funcionalidade para a burguesia como um todo, o fascismo deve ser inserido no bojo da afirmação da burguesia financeira. Como observa Nicos Poulantzas (1972, p. 78), tanto durante a fascistização ou já sob o jugo fascista, “nenhuma classe ou fração de classe dominante parece capaz de impor, seja pelos seus próprios meios de organização política, seja por intermédio do Estado ‘democrático-parlamentar’, a sua ‘direção’ às outras classes e frações do bloco de poder” (POULANTZAS, 1972, p. 78)). Dessa forma, o fascismo corresponde a uma reorganização intraclasse. Em suas palavras,

Trata-se: a) de uma modificação da relação de forças no seio dessa aliança [bloco de poder], de uma redistribuição dos pesos respectivos das forças que dela fazem parte; b) do estabelecimento, por intermédio do fascismo, da hegemonia de uma nova fração de classe no seio do bloco no poder: a do capital financeiro, e mesmo do grande capital monopolista (POULANTZAS, 1972, p. 79; grifo do original).

Ademais, Poulantzas (1972) vê uma relação entre o fascismo e o imperialismo — cujo vínculo com a burguesia financeira é matéria mais pacificada. Mais especificamente, o autor considera o fascismo como uma variante do imperialismo. Nesse sentido, o fascismo seria a ideologia que forneceria o que as outras ideologias burguesas não vinham conseguindo entregar: a capacidade de organização e mobilização políticas em torno do projeto imperialista.

Quem também se dedicou ao tema foi Leandro Konder (2009). Para ele, a tese do “caráter pequeno-burguês do fascismo” é uma conclusão equivocada a qual muitos chegaram a partir de uma premissa verdadeira. De fato, observa o autor, a composição majoritária da massa fascista tem origem na pequena burguesia. No entanto, a burguesia financeira colaborou com a fascistização e o instrumentalizou o fascismo porque este atendia a seus interesses, especialmente nos casos da Itália e da Alemanha, onde o capital financeiro nutria pretensões imperialistas.

Por meio do fascismo, a burguesia financeira conseguiu mobilizar a população em prol de um projeto que solapava as organizações do movimento operário, pondo a parte da classe trabalhadora engajada na defesa violenta dos interesses burgueses. Nas palavras de Konder (2009):

o fascismo é uma tendência que surge na fase imperialista do capitalismo, que procura se fortalecer nas condições de implantação do capitalismo monopolista de Estado, exprimindo-se através de uma política favorável à crescente concentração do capital; é um movimento político de conteúdo social conservador, que se disfarça sob uma máscara “modernizadora”, guiado pela ideologia de um pragmatismo radical, servindo-se de mitos irracionalistas e conciliando-os com procedimentos racionalistas-formais de tipo manipulatório. O fascismo é um movimento chauvinista, antiliberal, antidemocrático, antissocialista, antioperário. Seu crescimento num país pressupõe condições históricas especiais, pressupõe uma preparação reacionária que tenha sido capaz de minar as bases das forças potencialmente antifascistas (enfraquecendo-lhes a influência junto às massas); e pressupõe também as condições da chamada sociedade de massas de consumo dirigido, bem como a existência nele de um certo nível de fusão do capital bancário com o capital industrial, isto é, a existência do capital financeiro. (KONDER, 2009, p. 53).

Para além de tratar dos aspectos históricos e sócio-políticos do fascismo, é importante delimitá-lo conceitualmente. Ao caracterizar o bolsonarismo como um neofascismo, Armando Boito Jr. (2020) faz uma consideração pertinente: há que se diferenciar “movimento fascista”, “governo fascista” e “ditadura fascista”. Segundo o autor, “no Brasil temos, hoje, um governo predominantemente fascista, baseado num movimento neofascista, mas até aqui o que ainda temos, no que diz respeito ao regime político, é uma democracia burguesa, embora deteriorada” (BOITO JR., 2020, p. 112), portanto, ainda não vivemos numa ditadura fascista. Do ponto de vista geral, o fascismo “é um movimento político reacionário das camadas intermediárias da sociedade capitalista e um tipo específico de ditadura burguesa”, distinto da ditadura militar (BOITO JR., 2020, p. 113). O fascismo não é somente “um movimento reacionário de massas”, como também é “a ideologia que justifica essa ditadura e o movimento que, tornado coeso por essa ideologia, pode lutar para implantar tal tipo de ditadura” (BOITO JR., 2020, p. 114–115).

As definições de Boito Jr. são corroboradas por outros autores, como Luiz Alberto Moniz Bandeira:

[O fascismo] podia e pode ocorrer, nos Estados modernos, onde e quando a oligarquia e o capital financeiro não mais conseguem manter o equilíbrio da sociedade pelos meios normais de repressão, revestidos das formas clássicas da legalidade democrática, e assumir características e cores diferentes, conforme as condições específicas de tempo e lugar. Porém, sua essência permanece como um tipo peculiar de regime, que se ergue por cima da sociedade, alicerçado em sistema de atos de força, com a atrofia das liberdades cíveis e a institucionalização da contrarrevolução. (BANDEIRA, 2016, p. 37).

Por sua vez, Konder (2009) também frisa que não se deve reduzir o fascismo a regimes ditatoriais ou autoritários. O autor explica que, como toda ideologia de direita, o fascismo objetiva a preservação de privilégios. Nesse sentido, do ponto de vista filosófico, ele surge na necessidade de resolver uma contradição entre a teoria e a prática da direita: a competição entre os indivíduos — fundamental para a defesa da burguesia — dificulta a ação coordenada das forças sociais.

O fascismo supre as principais deficiências e contradições das duas grandes ideologias da burguesia. Por um lado, ele é o conservadorismo sem medo das massas. Por outro, permite a exploração e acumulação irrestritas sem as disputas inerentes à vida política da democracia liberal (KONDER, 2009).

Finalmente, Poulantzas (1972) divide o processo de fascistização em quatro etapas. O primeiro momento vai desde o início do movimento fascista até o ponto de aparente “irreversibilidade”. É o que hoje podemos chamar de “normalização” das práticas fascistas, quando estas passam do reprovável para o aceitável até chegar no normal (STANLEY, 2018). A segunda fase proposta por Poulantzas (1972) vai da irreversibilidade até a chegada do fascismo ao poder. As outras duas etapas são já com o fascismo no poder e se distinguem pela instabilidade que marca a terceira e que é superada na quarta.

A contrarrevolução liberal-conservadora

O fato de a luta contra o fascismo ter unido liberais e socialistas abriu espaço, no Ocidente, para que se privilegiassem as possíveis convergências entre essas duas ideologias em detrimento das divergências. Nesse sentido, o quarto de século que sucede o fim da Segunda Guerra Mundial ficou conhecido como socialdemocrata.

A esse respeito, é importante observar que não há consenso sobre a socialdemocracia ser ou não uma ideologia. Para Heywood (1992, p. 112), a socialdemocracia é uma corrente variante do socialismo que defende “um equilíbrio entre a economia de mercado, por um lado, e a intervenção estatal por outro” e que enxerga o capitalismo “como defeituoso em termos morais, sobretudo como meio de distribuição de riqueza; ele é associado à desigualdade social” e acredita que “os defeitos do sistema capitalista podem ser corrigidos pelo Estado por um processo de estruturação econômica e social”. Já Eric Hobsbawm (2015a/b) explica que a socialdemocracia era um movimento político daqueles que se organizavam em torno das principais bandeiras dos movimentos revolucionários que ocorreram entre os anos 1820 e 1848: justiça social e democracia plena.

Pode-se inferir que essa associação entre socialdemocracia e socialismo se deve a dois fatos. O primeiro é que foram nos partidos socialdemocratas que os socialistas se organizaram para participar das eleições e da política institucional até 1917 (HOBSBAWM, 2015b). Além disso, também até 1917, no seio do socialismo foram ganhando força as teses revisionistas, reformistas ou etapistas, que acreditam que o capitalismo não gera necessariamente sociedades desiguais e injustas e que, sobretudo, a revolução não é o único meio para se atingir uma sociedade mais igualitária (BOTTOMORE, 2012b; HEYWOOD, 1992).

Adicionalmente, no final do século XIX, surgiu, entre os liberais, a corrente liberalismo moderno, que acredita que “o Estado mínimo da teoria clássica era totalmente incapaz de corrigir as injustiças e desigualdades da sociedade civil” e defende “a criação de um Estado intervencionista e promotor” (HEYWOOD, 1992, p. 146).

Com efeito, no Ocidente, entre 1945 e início dos 1970, os governos podem se pautar pelas convergências entre as teses dos socialistas reformistas e dos liberais modernos. A principal característica dos governos dessa época foi a combinação de economia de mercado e Estado de bem-estar social, por meio do qual se garantia, através de serviços públicos e direitos sociais, condições mínimas para a classe trabalhadora. Esse sistema estava apoiado no regime de acumulação fordista-keynesiano, cuja crise, no início da década de 1970 serviu de estopim para as contrarrevoluções neoliberal e neoconservadora.

Um dos pilares do neoliberalismo é o fundamentalismo de mercado, a crença de que os mecanismos funcionais do mercado, notadamente a total liberdade de iniciativa e de acumulação, são vistos como a solução para todos os problemas sociais e econômicos, e qualquer interferência no mercado, ao invés de gerar bem-estar social, prejudica a sociedade como um todo. Além disso, o neoliberalismo exalta o individualismo extremo e a liberdade total para as relações comerciais. Os neoliberais enxergam a sociedade sob a ótica atomista, que pode ser sintetizada em uma frase de Thatcher: “Não existe essa coisa de sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos”. Enquanto o liberalismo surge revolucionário, o neoliberalismo é “contrarrevolucionário: seu objetivo é impedir, e se possível reverter, a tendência ao ‘grande’ governo e à intervenção estatal que caracterizou a maior parte do século XX” (HEYWOOD, 1992, p. 44).

Simultaneamente, o conservadorismo passa por uma revisão. Os neoconservadores se rendem à livre iniciativa do liberalismo econômico ao mesmo tempo em que marcam suas objeções à permissividade liberal nos costumes e reforçam a importância de manutenção da ordem e de revalorização dos valores familiares e da tradição. O neoconservadorismo e o neoliberalismo possuem muitos aspectos em comum e a associação entre as duas correntes é a base ideológica da nova direita (HEYWOOD, 1992).

Assim, o Estado deixa de ter responsabilidade na oferta dos serviços associados ao Estado de bem-estar social e sua função precípua é a de garantir as liberdades individuais e de concorrência. O neoliberalismo desconfia da democracia, preferindo alienar a coletividade das instituições e das decisões políticas, alegando se tratar de questões técnicas. Além disso, é hostil a qualquer forma de solidariedade ou práticas e instituições que possam restringir a acumulação irrestrita, especialmente os sindicatos. Essa desconfiança sobre a democracia e essa hostilidade aos sindicatos são alguns dos pontos de contato entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo, assim como a solução para os dois problemas: o Estado deve usar a violência para impor o respeito à ordem legal (HARVEY, 2008).

Comumente, o sistema que se torna hegemônico a partir dos anos 1980 recebe apenas o nome de “neoliberalismo”, o que pode denotar ou a inobservância em relação ao aspecto conservador do sistema — caracterizado pelo autoritarismo — ou pelo fato de ele possuir um verniz inclusivo.

O autoritarismo do projeto neoliberal pode ser sintetizado, novamente, por Thatcher. Enquanto desmontava o Estado de bem-estar social, a primeira-ministra britânica dizia que “there is no alternative”. Dessa forma, dava também a senha para a nova “morte” das ideologias: não há alternativa ao neoliberalismo. Essa tese ganhou muita força com a debacle da União Soviética e o fim da Guerra Fria, como se o fracasso da experiência soviética significasse o fracasso do socialismo em sentido amplo.

Nesse sentido, o autoritarismo segue sendo um mal menor frente à revolução social, ou à redistribuição de renda e redução da desigualdade e da taxa de lucro. E aqui nos remetemos diretamente à confissão despudorada do representante mais caricatural do liberal-conservadorismo, Friedrich von Hayek que afirmou, sobre o ditador chileno Augusto Pinochet, preferir “uma férrea ditadura liberal a um governo democrático completamente alheado do liberalismo” (FARRANT; MCPHAIL; BERGER, 2012).

Em paralelo à emergência do que ficou conhecido como hegemonia neoliberal, travestida de neutralidade ideológica, foram se afirmando ideologias não materialistas, vinculadas a temas específicos e não a um projeto de sociedade como um todo, como havia sido até então a função das ideologias. Entre elas, destacam-se o feminismo, o antirracismo e o ambientalismo (SCHWARZMANTEL, 2008). Dentro dessas ideologias, há correntes que dialogam mais como o socialismo, compondo a chamada “nova esquerda” (NEWMAN, 2005) e outras que dialogam mais com o liberalismo (HARVEY, 2008). Porém, seja de matriz socialista ou liberal, as chamadas ideologias pós-materialistas sofrem a ofensiva liberal-conservadora que se aprofunda ainda mais a partir dos anos 2000.

A esse respeito, é interessante observar que Nancy Fraser considera que o lapso entre os anos 1980 e a crise de 2008 foi marcado pela hegemonia do que ela chamou de “neoliberalismo progressista”, “uma nova aliança na qual os defensores da mercantilização recuperaram as correntes dominantes dos movimentos pela emancipação para se juntar e, eventualmente, eliminar os partidários da proteção social” (FRASER; JAEGGI, 2020, p. 104). Ou seja, a combinação da valorização das questões de raça, gênero e meio ambiente com a defesa enfática da meritocracia e da individualidade. A partir da crise de 2008, começa a ganhar força o que a autora chama de “neoliberalismo ultrarreacionário”, uma vez que se opõe aos aspectos progressistas do modelo anterior.

A nova ofensiva liberal-conservadora não se volta apenas contra conquistas do período identificado comumente como socialdemocrata. Ela combate inclusive temas caros à hegemonia neoliberal, ou do período do “neoliberalismo progressista”. Durante os anos 1990, finda a Guerra Fria, os Estados Unidos experimentavam a liderança sem contraponto e ditavam a agenda internacional. A liberalização do comércio internacional foi concomitante ao avanço em temas aparentemente não vinculados à agenda econômica, como demonstra o fato de as Nações Unidas promoverem uma série de conferências para tratar dos direitos das crianças e das mulheres, do meio ambiente e dos direitos humanos em geral.

Não por acaso, o liberal-conservadorismo mais reacionário e o neofascismo se opõem a essa agenda. Para eles, esses temas fazem parte do que eles definem como “globalismo” e “marxismo cultural”. Pouco importa se na condução dessa agenda estavam ícones do neoliberalismo como George H. W. Bush (Estados Unidos, 1989-1993), Bill Clinton (Estado Unidos, 1993-2000), Helmut Kohl1 (Alemanha, 1982-1998), Margareth Thatcher (Reino Unido, 1979-1990) e John Major (Reino Unido, 1990-1997).

Como outros autores, Yascha Mounk (2020) identifica o sucesso eleitoral desses grupos com uma forma de populismo. Segundo ele, a ascensão do populismo de direita em várias partes do mundo na última década demonstrou que o consentimento democrático é condição insuficiente para a preservação de valores fundamentais como a liberdade individual e a autodeterminação coletiva. A insatisfação crescente com a ineficiência dos resultados da democracia liberal, causada por suas contradições internas e demonstrada por sua incapacidade de garantir anseios básicos à condição humana, levou cidadãos já acostumados à liberdade a relativizar sua importância na vida cotidiana.

Por suas premissas e pela forma como o liberal-conservadorismo — mesmo em sua vertente “progressista” — organiza a sociedade e o Estado, essa ideologia se aproxima muito do fascismo. Não por acaso, um dos efeitos do fortalecimento dessa ideologia no Brasil foi a ascensão de um movimento político de matiz fascista, com base em um messianismo que levou à Presidência da República um político que fundamenta seu discurso no ressentimento social aos movimentos progressistas, no ódio às minorias e à democracia liberal como sistema político. O caráter beligerante desse discurso fideliza um percentual reduzido, porém intenso em suas convicções e propósitos, de apoio popular a uma agenda econômica contrária aos interesses da grande maioria da população. A responsabilidade por essa agenda foi transferida à figura, supostamente técnica, de um ministro da economia que a sustenta sobre os mesmos pilares da inevitabilidade thatcherista. Não por coincidência, Stuart Hall (1978) cunhou o termo thatcherismo para designar uma forma político-econômica de governo que chamou de populismo autoritário.

A nova direita no Brasil ascendeu ao poder através do que se convencionou chamar de “bolsonarismo” em virtude não apenas do personalismo associado à figura do Presidente da República, mas também da forte influência política de seus filhos sobre o governo. Aos que julgavam superadas no Brasil as antigas práticas do familismo, causa assombro ver o retorno de algumas de suas ideias e práticas, como o patriarcalismo e o militarismo. Embora se reconheça uma adesão emocional e incondicional de um segmento não desprezível da população a esse projeto, o que o torna tolerável ao sistema é a política econômica neoliberal com a qual se compromete, e por isso simboliza o liberal-conservadorismo em sua versão tupiniquim.

A contrarrevolução liberal-conservadora no Brasil

A luta pela redemocratização brasileira contou com dois vetores. Um, de viés liberal, visava restabelecer as liberdades individuais e os direitos políticos. Outro, de corte socialista, almejava reverter o quadro de desigualdade social que marcava o país. Esses vetores convergiram de modo a contribuir para o fim da ditadura civil-militar e elaborar uma Carta constitucional que tanto garantisse os fundamentos de mercado e os direitos civis quanto assegurasse os direitos sociais (MIGUEL, 2019).

A Nova República foi fundada sobre “um regime formalmente muito inclusivo, mas que convive com padrões de exclusão social que estão entre os mais aberrantes do mundo” (MIGUEL, 2019, p. 39) porquanto o “texto constitucional abrigou um bom número de ambiguidades e de medidas cuja efetiva implantação foi postergada” (MIGUEL, 2019, p. 53). Assim, “o golpe de 2016 aparece também como o desfecho de um processo, cercado por tensões e lutas políticas que começou em 1985, com a redemocratização” (MÜLLER; IEGELSKI, 2018, p. 22). É bom que se frise que essas disputas políticas são também disputas ideológicas, afinal, são as ideologias que orientam a ação política.

A inclusão social ocorrida no Brasil ao longo dos anos 2000 é tributária da orientação socialdemocrata escolhida pelos governos petistas (Lula, 2003-2010; Dilma, 2011-2016). Porém, nem o governo nem o partido souberam transmitir isso à população. Renunciaram à disputa ideológica e com isso deixaram a sociedade, em especial o segmento beneficiado pelos programas de inclusão, vulnerável à ideologia neoliberal, logo, avessa à atuação do Estado para mitigar as desigualdades sociais (MIGUEL, 2019).

Quando eclodem as manifestações de 2013, a disputa ideológica que era latente precipita na crise política que detona um longo processo de reversão democrática que culmina no golpe de 2016 e na eleição de um político que sustentava um discurso antissistema, contribuindo para o fortalecimento de tendências fascistas na dinâmica política brasileira. Céli Regina Jardim Pinto (2019) observa que, a partir de 2013, as ruas passaram a ser ocupadas por grupos com posições de direita, movimento acentuado em 2014 e 2015. Isso configurava uma mudança do perfil das manifestações em relação ao que se via desde os anos 1980, quando as ruas eram ocupadas majoritariamente pela militância de esquerda. Já Camila Rocha (2019) destaca que junho de 2013 é o ponto de inflexão na organização dos movimentos liberais no Brasil. Os militantes liberais já se organizavam em fóruns virtuais e think tanks desde meados dos anos 2000. Porém, foram as mudanças tributárias da conjuntura pós-2013 que permitiu que esses grupos deixassem de ser exclusivamente virtuais para ganhar as ruas.

Não obstante, em que pese o avanço da penetração do neoliberalismo na sociedade brasileira, o projeto socialdemocrata prevaleceu na eleição de 2014. Isso reforçou a desconfiança dos neoliberais quanto à capacidade de a democracia respaldar seu projeto. Por isso, as forças neoliberais fortaleceram sua aliança com os conservadores, elevando o nível da pressão por uma contrarrevolução liberal-conservadora. Esse movimento desdobrou-se em duas frentes, as instituições e as ruas. A interação dialética entre essas duas dimensões da contrarrevolução liberal-conservadora reacionária pode ser assim resumida: as manifestações multitudinárias de 2013 tiveram entre seus frutos a eleição do Parlamento mais conservador desde 1964; esse Congresso não teve qualquer dificuldade em impor, a partir de 2015, dificuldades à governabilidade da presidenta Dilma Rousseff e de, em 2016, sacramentar o golpe de Estado; a direita mobilizada nas ruas e nas instituições sagraram-se vitoriosas nas urnas em 2018.

Jair Bolsonaro foi eleito com uma plataforma eleitoral liberal-conservadora. Por um lado, Paulo Guedes, seu porta-voz para assuntos econômicos, e depois ministro da Economia, é um defensor do Estado ultra mínimo, “privatizar tudo”2; por outro, seu slogan de campanha — “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos” — deixava claro que sua candidatura não só representava o neoconservadorismo como também possuía perfil fundamentalista cristão.

A vitória eleitoral do liberal-conservadorismo guarda estreita e inquebrantável associação com o crescimento do neofascismo no Brasil, tema ao qual se dedica a próxima seção.

O mutualismo entre fascismo e liberal-conservadorismo no Brasil do século XXI

Em 1998, Octavio Ianni escreveu um artigo no qual afirmava que o neoliberalismo criava as condições para o fascismo. O neoliberalismo desagrega a sociedade e pauperiza a classe trabalhadora. Tais processos

produzem as ideologias e as práticas nazifascistas. A mesma guerra do neoliberalismo contra a socialdemocracia e o socialismo, agravando e generalizando as tensões, contradições e lutas sociais, favorece a fabricação e a generalização de ideologias, organizações e práticas nazifascistas (IANNI, 1998, p. 113).

Três anos antes, Umberto Eco fizera uma palestra intitulada O fascismo eterno. O nome não deixa dúvida, para Eco, o fascismo não é um fenômeno datado. Em dado momento, o intelectual italiano, que viveu a infância sob o regime de Mussolini, sintetiza o porquê daquela palestra: “estamos aqui para recordar o que aconteceu e para declarar solenemente que ‘eles’ [os fascistas] não podem repetir o que fizeram” (ECO, 2018, p. 21). O local da palestra é bem significativo: Universidade de Columbia, Estados Unidos. Locomotiva do neoliberalismo, os Estados Unidos, conquanto apresente uma imagem de uma democracia estável, estiveram muito próximos do fascismo. Moniz Bandeira (2016, p. 38) conta que, em 1934, um grupo de magnatas planejou um golpe de Estado para acabar com o Estado de bem-estar social que o New Deal principiava a instalar no país e instalar uma ditadura fascista.

Nesse momento, julgamos necessário recorrer às análises descritivas do fascismo. Jason Stanley elenca algumas características do fascismo que descrevem muito do Brasil hodierno e do processo que culminou com a eleição de Bolsonaro. Assim como o fascismo articula um passado idealizado e por isso nega a história (STANLEY, 2018), os liberais-conservadores negam a ditadura3 e afirmam que o fascismo é “uma ideologia de esquerda originada do marxismo”.4

O negacionismo se relaciona ao anti-intelectualismo. Como suas “verdades” não possuem lastro, os fascistas não suportam dissidência e perseguem a imprensa e a universidade (ECO, 2018; STANLEY, 2018), por isso, acusam a divergência de hipocrisia. “Sempre que o fascismo ameaça, seus representantes e facilitadores denunciam as universidades e escolas como fonte de ‘doutrinação marxista’” (STANLEY, 2018, p. 54), tal qual fazia Abraham Weintraub,5 então ministro da Educação do Brasil, e o próprio Bolsonaro.6

O fascismo deturpa a realidade e transforma os privilegiados em grupo ameaçado, para assim, impedir políticas que visem promover igualdade. Confunde propositalmente igualdade e discriminação, fazendo com que políticas contra a desigualdade sejam vistas como uma política discriminatória contra o grupo privilegiado. “A exploração do sentimento de vitimização de grupos dominantes frente à perspectiva de ter que dividir cidadania e poder com grupos minoritários é um elemento universal da política fascista internacional contemporânea” (STANLEY, 2018, p. 99).

No entanto, para ganhar força, essas teses contaram com o apoio do liberal-conservadorismo. Foram as políticas liberais de eliminação de direitos e desagregação — através do individualismo exacerbado — implementadas de forma conservadora por governos autoritários que tornaram a sociedade brasileira solo fértil para as teses neofascistas. O projeto liberal autoritário, que vemos em curso no Brasil, é um exemplo categórico do diagnóstico feito por Achille Mbembe (2016) acerca do fim da era humanista. “A difamação de virtudes como o cuidado, a compaixão e a generosidade, vai de mãos dadas com a crença, especialmente entre os pobres, de que ganhar é a única coisa que importa e de que ganhar — por qualquer meio necessário — é, em última instância, a coisa certa”. Além disso, tal qual na Europa dos anos 1930, o neofascismo no Brasil deve muito do seu crescimento à complacência dos liberais e conservadores, com quem se irmanam no combate à esquerda.

A necessidade de eliminar a solidariedade entre os trabalhadores irmana o liberal-conservadorismo e o neofascismo. David Harvey (2008) explica que, para se afirmar, o neoliberalismo propicia ataques sistemáticos contra os sindicatos: sufoca suas atividades, promove o descrédito das lideranças políticas a eles vinculadas e apresenta os sindicatos como inimigos da sociedade. Nesse processo, enquanto lutam para preservar direitos sociais e econômicos, os sindicatos são acusados de perturbarem a ordem e defenderem privilégios. Nesse momento o neoliberalismo se aproxima do neoconservadorismo, que aceita o fundamentalismo de mercado e propõe um Estado autoritário que use a força para neutralizar quem perturbe a ordem. Portanto, o Estado liberal-conservador constrói consenso para desmontar o Estado de bem-estar social e reprimir os dissidentes. Por isso os liberais-conservadores não aceitam a democracia e preferem que a política seja tratada como uma atividade gerencial, razão pela qual falam em “governança” ao invés de “governo”.

Em essência, é o mesmo que o Estado fascista faz. Stanley (2018) explica que parte da propaganda fascista é acusar seus inimigos de preguiçosos, desmerecedores de apoio da sociedade. Ao atacar políticas que visem combater o preconceito e a desigualdade, os fascistas contribuem para a marginalização dos grupos que são seus alvos, tornando-os inimigos da sociedade, logo, sujeitos à violenta repressão. Nesse sentido, o fascismo é fortemente antissindical porque atividade sindical tende a construir uma identidade classista.

De acordo com a política fascista, os sindicatos dever ser esmagados para que os trabalhadores individuais tenham que se virar sozinhos no mar do capitalismo global e passem a depender de um partido ou líder. A aversão pelos sindicatos é um tema tão importante na política fascista que o fascismo não pode ser totalmente compreendido sem um entendimento disso (STANLEY, 2018, p. 165).

O fascismo é antissindical porque depende da desigualdade para proliferar.

Os sindicatos são uma arma poderosa contra o desenvolvimento de uma esfera econômica desigual. Como o fascismo prospera em condições de incerteza econômica, onde o medo e o ressentimento podem ser mobilizados para colocar os cidadãos uns contra os outros, os sindicatos de trabalhadores se protegem contra a possiblidade de a política fascista criar um ponto de apoio para se desenvolver (STANLEY, 2018, p. 167).

É importante ressaltar que a agenda neoliberal implementada por Paulo Guedes teve origem ainda no governo de Michel Temer (2016-2018). Assim que assumiu, Temer tratou de impor uma agenda neoliberal, como a Emenda à Constituição 95, conhecida como “PEC do teto dos gastos”, e a reforma trabalhista, que precariza as condições de trabalho e enfraquece os sindicatos. A imposição dessa agenda gerou muitos protestos. A violência com a qual esses atos foram reprimidos motivou inclusive, notas de repúdio por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Escritório Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH).7

Ademais, a indiferença pela vida, que legitima a violência contra “o outro”, é um valor que irmana neoliberais e neofascistas. Esse comportamento, em geral associado apenas aos neofascistas, já vinha sendo normalizado antes do governo Bolsonaro. Em entrevista em fevereiro de 2018, Torquato Jardim, ministro da Justiça no governo Temer, afirmou que

Se está lá com PM, Polícia Civil e Forças Armadas, se passar um guri de 15 anos de idade, você vê a foto dele, já matou quatro, entrou e saiu do centro de recuperação, uma dúzia de vezes, e está ali com um fuzil exclusivo das Forças Armadas, você vai fazer o quê? Prende. O guri vai lá e sai, na quarta ou quinta vez que você vê o fulano, vai fazer o quê? Você tem uma reação humana aí que deve ser muito bem trabalhada psicologicamente, emocionalmente, no PM ou no soldado. Você está no posto, mirando a distância, na alça da mira aquele guri que já saiu quatro, cinco vezes, está com a arma e já matou uns quatro. E agora? Tem que esperar ele pegar a arma para prender em flagrante ou elimino a distância? [...] É a noção de guerra assimétrica, estamos vivendo uma guerra simétrica.8

Os mesmos veículos de comunicação que hoje (acertadamente) denunciam o caráter violento e o pouco apreço com que Bolsonaro para com a vida se omitiram diante da referida declaração.

Isso porque, como bem explica Rubens Casara, o que está em curso no Brasil é o que ele chama de “Estado Pós-Democrático”. Nele, “a democracia permanece, não como um conteúdo substancial e vinculante, mas como mero simulacro, um elemento discursivo apaziguador” (CASARA, 2018, p. 23; 25; 55). Essa feição de Estado é ideal para o neoliberalismo porque é forte no controle social, colocando seu dispositivo penal a serviço do interesse do poder econômico. O Estado Pós-Democrático neutraliza ou elimina aqueles que não servem à racionalidade neoliberal, sejam os incapazes de produzir ou consumir, sejam os que a critiquem.

Novamente, aqui há uma congruência. O fascismo utiliza a retórica de lei e ordem no intuito de dividir a sociedade, incutindo a distinção entre os indivíduos que são produtivos e os que não são. Pela ótica fascista, que é também a ótica das elites capitalistas, os que não são produtivos são inimigos e podem ser combatidos, quiçá eliminados. Um dos motes usados pelo fascismo para legitimar o uso do aparato repressivo aos seus opositores é o combate à corrupção. Não obstante, esse discurso visa desviar o foco das transgressões e da corrupção praticada pelos próprios fascistas (STANLEY, 2018).

A “luta contra a corrupção” foi um dos alicerces para a interrupção da experiência socialdemocrata e para a ascensão do liberal-conservadorismo e do fascismo no Brasil. Pinto (2019) descreve a construção da equivalência entre a “luta contra a corrupção” e a “luta contra o PT”. Como a corrupção não é categoria para definição de orientação político-ideológica, a veiculação sistemática de casos desse tipo em governos de esquerda permite consolidar no imaginário popular que a luta contra tal crime é exclusividade da centro-direita e da direita. Assim, construíram-se duas cadeias de equivalência antipódicas: esquerda, Estado forte e corrupção vs. luta contra a corrupção, Estado mínimo e direita. Essa construção ganhou contornos nítidos com as manifestações de junho de 2013 — embora já se mostrasse antes disso — e adquiriu mais densidade a partir de março de 2014, com a Operação Lava Jato.

A maioria daqueles que apoiaram a derrota da socialdemocracia tem se mantido silentes sobre a relação pouca republicana que membros do Ministério Público Federal de Curitiba mantinham com o capital industrial9 e bancário,10 ou mesmo do comportamento incompatível com suas funções do então juiz Sérgio Moro na condução da OLJ.11 Também se omitem acerca da proximidade do presidente Bolsonaro e seus filhos com milicianos12 e da possibilidade de o primogênito do presidente estar envolvido com “lavagem de dinheiro”.13

Finalmente, tanto o fascismo quanto o liberal-conservadorismo operam e se alimentam da normalização do extraordinário. Segundo Stanley (2018, p. 181), “o que a normalização faz é transformar o que é moralmente extraordinário em ordinário. Isso nos torna capazes de tolerar o que antes era intolerável”. O autor está se referindo ao fascismo, mas bem que poderia estar analisando o liberal-conservadorismo, afinal, Thatcher dizia não haver alternativa, portanto, todos deveriam aceitar, ver como normal a perda de direitos e a rede estatal de proteção social. Stanley (2019, p. 181) continua: “normalização significa precisamente que a invasão de condições ideologicamente extremas não é reconhecida como tal porque elas parecem normais”.

Para Terry Eagleton (2019), o auge de uma ideologia opressora é quando o oprimido clama por opressão. A eleição de Bolsonaro representou exatamente isso: movido pelo sentimento fascista, despertado pelo discurso anticorrupção que se combinou com uma rejeição à política democrática e suas instituições, o povo elegeu o liberal-conservadorismo; movido pelo liberal-conservadorismo, o povo elegeu o fascismo.

O bolsonarismo (ou o neofascismo brasileiro) é, tal qual o fascismo original, um movimento de classe média e pequena burguesia hegemonizado pela burguesia financeira. Em que pese não ser possível dizer que as manifestações de junho de 2013 foram um movimento fascista, também não se pode negligenciar a importância daqueles protestos para o crescimento do neofascismo no Brasil.

[A expressão ovo da serpente] — consagrada nas análises que buscam identificar as origens do fascismo — ganhou relevo no debate político brasileiro a partir de junho de 2013. Não se trata de dizer que a potência, ou mesmo a prática, fascista não existisse antes desse momento, nem ignorar possíveis responsabilidades de partidos e governos que se proclamam democráticos. Mas não havia, até então, nem um lugar na cena política para um movimento como o bolsonarismo (CAVALCANTE, 2020, p. 123).

Nesse sentido, as manifestações a favor da derrubada de Dilma Rousseff foram tributárias das de junho de 2013. Em análise sobre o perfil dos manifestantes que foram as ruas em 2015 e 2016 em São Paulo, Sávio Cavalcante e Santiane Arias (2019) observam que a maioria dos indivíduos de classe média que se manifestaram o fizeram pró-golpe (na proporção de 1 para 5) e que a classe média era a maioria nos atos pró-golpe (aproximadamente 40% ganhavam mais de dez salários mínimos e mais 75% possuíam ensino superior). Foi também nesse período que dizeres de cunho fascistas — “Quero meu país de volta” e “O meu partido é o Brasil” — começaram a ganhar força.

Finalmente, o bolsonarismo, assim como o fascismo, é uma ideologia a serviço do capital financeiro. Não há o que tergiversar sobre isso, uma vez que está fartamente documentado nos relatórios do Tribunal de Nuremberg o apoio da elite financeira alemã ao movimento e ao governo nazista (KONDER, 2009), apoio este que contou com nomes como Audi, Bayer, Basf, BMW, Deutsch Bank, Hugo Boss, IBM, Siemens e Volkswagen.14 É importante que se diga: esses capitalistas usaram trabalho forçado, confiscaram bens, desenvolveram uniformes, motores, armas e os gases usados nos campos de concentração porque o regime nazista atendia a seus interesses de classe.

Em setembro de 2018, a Confederação Nacional da Indústria (CNI), realizou um evento com os presidenciáveis. Robson Braga de Andrade, presidente da CNI, afirmou que sua categoria “não tem receio, de forma alguma, de um governo de Jair Bolsonaro”, candidato que foi o mais aplaudido do evento.15 Não seria a primeira vez que representantes do capital financeiro demonstravam simpatia por um líder de movimento fascista. Em 1932, após assistir à apresentação do programa de governo dele, a elite financeira alemã ovacionou Adolf Hitler (KONDER, 2009).

Se Hitler contou com o apoio do capital financeiro alemão para implementar os campos de concentração, o trabalho compulsório e a política de extermínio, Bolsonaro conta com a cumplicidade do capital financeiro brasileiro para sua política de desprezo à vida. É o que demonstra comparação pela forma como os mercados reagem a ações do governo em duas áreas distintas. Por um lado, são agressivos quando se fala em furar o teto de gastos para implementar uma política pública que mitigue minimamente a condição miserável à qual milhões de brasileiros foram conduzidos desde o golpe liberal-conservador de 2016.16 Por outro, o Congresso Nacional, Casa tão fiel aos interesses da burguesia e onde esta está super-representada, se mostrou extremamente tolerante com a escalada do número de mortes decorrentes da estratégia adotada pelo Planalto em relação à pandemia da COVID-19.

Conclusão

Ao articular ideias, valores e crenças a respeito de como a sociedade deve se organizar, a ideologia está na base do agir político. É por meio da ideologia que os indivíduos, os grupos, as classes ou frações de classe se mobilizam para defender ou transformar uma dada realidade política. Embora o engajamento seja a forma mais visível de envolvimento e participação política, muitas vezes a indiferença em relação à política hegemônica ou a uma transformação em voga pode ser anuência para com uma ou outra.

A ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, e no capitalismo ela se mostra tolerante ao autoritarismo: aceita-se o uso da violência contra quem se oponha ao seu projeto de exploração. Não é novidade que o capitalismo e a democracia sempre foram incompatíveis, especialmente quanto à dependência do primeiro à acumulação do capital e o fundamento na igualdade da segunda. O liberalismo em sua vertente radicalizada, o neoliberalismo ou liberal-conservadorismo, atua como suporte ideológico à reprodução do capital na medida em que promove a subordinação do ser humano à sua lógica através do argumento de uma suposta racionalidade econômica: austeridade fiscal, redução das áreas de atuação do Estado ao mínimo, defesa do livre mercado e da propriedade privada. Sua face pública em defesa da liberdade disfarça seu caráter desumano de desprezo à vida, manifesto principalmente pelo viés autoritário do componente conservador do modelo, que não tolera a divergência e trata com violência todos que contra ele se levantem.

No caso Brasileiro, o liberal-conservadorismo e o fascismo operaram se auxiliando mutuamente. Para desfazer um Estado de bem-estar social — que nem bem chegou a ser implementado —, liberais-conservadores vêm se alimentando do fascismo; e os fascistas vêm se nutrindo do liberal-conservadorismo para impor um regime autoritário com apoio popular. Bolsonaro representa um projeto de corte neofascista que, para ter viabilidade, precisou que o liberal-conservadorismo lhe pavimentasse o caminho, gerando insegurança econômica, desamparo social e desagregação. Por outro lado, a eleição de Bolsonaro significa o fortalecimento do liberal-conservadorismo, que dificilmente teria chegado ao poder sem o desenvolvimento de uma ideologia anti-humanista que justificasse o desprezo pela vida a uma despudorada racionalidade econômica assentada no fundamentalismo de mercado.

Bolsonaro lidera um movimento neofascista e um governo com tendências ao autoritarismo e com matizes de fundamentalismo cristão. Porém, não se trata de “um raio vindo de um céu sem nuvens”, para usar a célebre frase de Marx para nos lembrar que fenômenos como esse não são obra do acaso. Bolsonaro chegou ao Planalto e lá se mantém por duas razões. Ele conta com apoio de uma parcela da população que, ainda que minoritária, lhe presta esse apoio de forma intensa e visceral. A segunda, e mais importante, é que Bolsonaro mantém aliança com segmentos importantes da classe dominante.

E aí está o mutualismo da relação entre o neofascismo e o liberal-conservadorismo. Por um lado, o bolsonarismo vem viabilizando a implementação de uma agenda de retirada de direitos — portanto, liberal — por meio de um apelo a valores familiares e religiosos — portanto, conservadora. Por outro lado, essa agenda liberal-conservadora precisou se apoiar em uma ideologia neofascista para ganhar corações e mentes de forma a lhe conferir legitimidade.

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  1. De 1982 até 1989, chanceler da Alemanha Ocidental, de 1989 até 1998, da Alemanha reunificada.↩︎

  2. Guedes: vou propor medidas ‘duras’ e Bolsonaro e Congresso vão ‘amaciar’. Veja, 24.ago.2018. Disponível em: veja.abril.com.br. Acesso: 9.set.2020.↩︎

  3. Ernesto Araújo, ministro das relações exteriores do governo Bolsonaro, diz que a ditadura no Brasil é questão de interpretação. Carta Capital, 07.fev.2020. www.cartacapital.com.br. Acesso: 07.fev.2020.↩︎

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  5. Olavista, escolhido defende expurgo do ‘marxismo cultural’. Folha de São Paulo, 09.abr.2019, p. B2.↩︎

  6. Bolsonaro diz que combate ao marxismo vai melhorar o desempenho na educação. Folha de São Paulo, 31.dez.2018. www1.folha.uol.com.br. Acesso em: 07.fev.2020.↩︎

  7. Escritório da ONU e CIDH condenam uso excessivo da força durante manifestações e operações de segurança no Brasil. Nações Unidas, 26.abr.2017. nacoesunidas.org. Acesso em: 07.fev.2020.↩︎

  8. “Não há guerra que não seja letal”, diz Torquato Jardim ao Correio. Disponível em: www.correiobraziliense.com.br. Acesso: 25.out.2021.↩︎

  9. BERGAMO, M. Folha de São Paulo, 24.jul.2019, p. C2.↩︎

  10. ‘O RISCO TÁ BEM PAGO RS’. The Intercept Brasil, 26.jul.2019. theintercept.com. Acesso em: 07.fev.2020.↩︎

  11. Moro cometeu quatro tipos de crimes ao atuar na Lava Jato, afirma juíza. Rede Brasil Atual, 19.ago.2019. www.redebrasilatual.com.br. Acesso em: 07.fev.2020.↩︎

  12. Flávio Bolsonaro homenageou policiais acusados de participar de “guarnição do mal”. O Globo, 03.fev.2019, p. 5.↩︎

  13. Promotoria suspeita que Flávio lavou ‘rachadinha’ em imóveis. Folha de São Paulo, 19.dez.2019, p. A8.↩︎

  14. MARCHESAN, R. Volks, BMW, Hugo Boss: essas e outras gigantes ajudaram Alemanha nazista. Uol, 12.set.2017. Disponível em: economia.uol.com.br. Acesso: 28.set.2020.↩︎

  15. Não temos receio algum de um governo Bolsonaro, afirma presidente da CNI. Folha de São Paulo, 27.set.2018. Disponível em: www1.folha.uol.com.br. Acesso: 28.set.2020.↩︎

  16. FERRARI, H. Dólar vai a R$5,67 e Bolsa cai 2,75% com reação às mudanças no teto de gastos. Poder 360, 21.out.2021. Disponível em www.poder360.com.br. Acesso: 28.out.2021.↩︎

Resumo:
O objetivo do artigo é analisar a dimensão ideológica no Brasil contemporâneo a partir da identificação de uma sobreposição de ideologias na sociedade brasileira, que se tornou hegemônica a partir das eleições de 2018. O artigo combina discussão teórica com evidências factuais. Partimos de uma discussão epistemológica acerca do conceito de ideologia, categorizamos o fascismo e o liberal-conservadorismo e analisamos a evolução das disputas entre diferentes vertentes ideológicas, protagonizadas pela esquerda socialdemocrata e a direita neoliberal, na história recente do país. Concluímos, finalmente, que o quadro político brasileiro atual é resultado do mutualismo entre o liberal-conservadorismo e o fascismo.

Palavras-chave:
Ideologia; Liberal-conservadorismo; Fascismo; Brasil.

 

Abstract:
The aim of the article is to analyse the ideological dimension in contemporary Brazil from the identification of an overlapping of ideologies in Brazilian society, which has become hegemonic since the 2018 elections. The article combines theoretical discussion with factual evidence. We started from an epistemological discussion about the concept of ideology, categorized fascism and liberal-conservatism, and analysed the evolution of the disputes between different ideological strands, led by the social-democratic left and the neoliberal right, in the country’s recent history. We conclude, finally, that the current Brazilian political framework is the result of the mutualism between liberal-conservatism and fascism.

Keywords:
Ideology; Liberal-conservatism; Fascism; Brazil.

 

Recebido para publicação em 26/08/2021
Aceito em 01/02/2022