Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 3, nov. 2021/fev. 2022
DOI: 10.36517/rcs.2021.3.d01
ISSN: 2318-4620

 

 

Escola e LGBTfobia:
articulando possibilidades educativas para uma vida vivível

 

Robson Guedes da Silva OrcID
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
robsonguedes00@hotmail.com

Mitz Helena de Souza Santos OrcID
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
mitzhelena@yahoo.com.br

 

Em nossa contemporaneidade, atravessada por tantos desafios político-sociais, produzir e aglutinar pesquisas que promovam a interlocução entre as ciências sociais e a educação — abarcando as mais diversas perspectivas teórico-metodológicas e construindo, a partir das relações entre esses campos do saber, importantes debates sobre gênero e sexualidade na educação — apresenta-se como potente ferramenta na investigação e enfrentamento das práticas de LGBTfobia em suas variadas dimensões: nos processos educativos,  nos espaços formais ou informais de ensino, no cotidiano da relação entre discentes e docentes, na elaboração e implementação de políticas educacionais, etc.

Enquanto campo de conhecimento, a educação dialoga com variados campos a exemplo das ciências sociais, da filosofia, da antropologia e tantos outros. Não se fixa a uma concepção unitária, mostrando-se — desde seu surgimento e consolidação, como um campo teórico que empreende problematizações sobre o fazer pedagógico — sempre aberto a variadas significações, através de permanentes articulações teórico-práticas sobre o pensar a pedagogia (SILVA, 2020). Ao teorizar a escola, vários campos do saber tensionavam seu suposto estatuto natural, a exemplo das ciências sociais, as quais denunciavam a escola e seu poder institucional.

Constituída para fabricar a modernidade tal como a compreendemos, a instituição escolar nos seus fundamentos e práticas educacionais, longe de algo natural, foi inventada visando atender as demandas específicas do projeto que a produziu, colocou-a em funcionamento e a naturalizou. A modernidade atribuiu à instituição escolar a responsabilidade de fabricar cidadãos em similitude com o intuito do projeto civizatório que engendrava (SIBILIA, 2012).

A escola moderna, fortemente influenciada pelo humanismo, vai, através da disciplina (FOUCAULT, 2014), pensar na pedagogia — em seu processo civilizador — como instrumento convertedor de animalidade em humanidade. Nesses termos, a instituição escolar deve em seu funcionamento “humanizar o animal da nossa espécie, disciplinando-o para modernizá-lo e, desse modo, iniciar a evolução capaz de convertê-lo num bom cidadão” (SIBILIA, 2012, p. 18).

Algumas produções teóricas vão funcionar, neste sentido, como fundamentos para o que vai despontar como campo da educação como formação humana, fruto da modernidade. O discurso da formação humana ganha largamente terreno no campo pedagógico, sofisticando-se em variadas vertentes teóricas, versada pelo projeto pedagogizador e humanizador da escola, imbuída da socialização. Diferentes correntes de pensamento adentram na educação, a exemplo do positivismo e do liberalismo. Contudo, são as chamadas teorias críticas que irão tensionar a instituição escolar e seu estatuto natural, percebendo-a como um aparelho ideológico do Estado — sob a luz de Althusser (1980) — assim como denunciando a maneira pela qual a escola estabelece um capital cultural dominante — se atendo aqui a Bourdieu e Passeron (1975). Perspectivas materialistas vão igualmente ganhar corpo no campo da educação, como contraponto às visões positivistas e liberais já difundidas no cotidiano escolar.

Para além dessas tendências, outras produções, a partir do final dos anos de 1980, principalmente pós-estruturalistas, vão adensar o questionamento à escola, provocando o debate ao interrogar sua naturalização e suspeitando de sua importância em nossa sociedade. Para tal provocação, a denúncia pós-estruturalista evidencia a escola como uma maquinaria, funcionando por meio de tecnologias diversas que possuem um mesmo objetivo: fabricar subjetividades (DUSSEL; CARUSO, 2003).

Possuindo como finalidade a produção de sujeitos, é no espaço escolar que as práticas pedagógicas e o currículo funcionam como aparatos de subjetivação, fabricando formas difusas de sujeição. A escola produz em seu cotidiano uma política do reconhecimento, ou seja, certa visualidade normativa, estabelecendo através da naturalização de suas práticas uma inteligibilidade social que circunscreve universais, assim como fabrica formas de vidas precárias, não passíveis de luto e vítimas de variadas formas de violência (BUTLER, 2018).

Ao nos debruçarmos sobre o problema da LGBTfobia em seus atravessamentos no campo da educação, devemos entrever que a instituição escolar vem se apresentando como um espaço de sofisticadas práticas de violências para com um conjunto de corpos que não mimetizam determinadas conformidades normativas prescritas para seu cotidiano.

No Brasil, ainda que o campo dos estudos de gênero e sexualidade tenha se consolidado e construído importantes debates e produções científicas, as problemáticas das diferenças, das identidades, dos corpos e das formas variadas de violência, estão cada vez mais urgentes em nosso presente. O Brasil segue, de acordo com dados do Grupo Gay da Bahia-GGB, sendo o país que mais mata pessoas LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexuais, não bináries, queers), evidenciando a violência como uma prática constante no cotidiano social, inclusive na escola.

A violência funciona como uma engrenagem constitutiva, materializando por meio da sua ação um posicionamento discursivo que se efetiva pela força. Sua veemência reside na ação arbitrária de efetivar no outro uma força desmedida que o lesa em vários sentidos. A violência em tempos neoliberais é ao mesmo tempo a denúncia do fracasso do modelo neoliberal — em sua meritocracia e empreendedorismo — de governo da população (SANTOS; SILVA, 2020), como também um dos seus instrumentos produtivos, fabricando formas de vidas violentas e violentadas. A violência, neste sentido “[...] renova-se em face da aparente inesgotabilidade do seu objeto. A desrealização do ‘outro’ significa que ele não está nem vivo nem morto, mas interminavelmente espectral” (BUTLER, 2019, p. 54).

No que tange às concepções da sociedade brasileira em torno da diversidade sexual, em particular, dados da UNESCO (2009), em pesquisa realizada em várias capitais brasileiras, revelaram que, nas escolas, 39,6% dos meninos e 22,1% das meninas dizem não gostar de ter um colega homossexual em suas salas; 60% dos pais e 42,7% das mães revelaram que não gostariam que seus filhos tivessem um colega homossexual. Quanto ao corpo técnico das escolas, 5,8% dos homens e 3,11% das mulheres não gostariam de contar com a presença de homossexuais nas escolas em que trabalham.

Além disso, a despeito das novas orientações da Organização Mundial de Saúde, para 18,7% dos meninos e para 12,3% das meninas, a homossexualidade é vista como doença. São dados preocupantes, e trabalhar em quaisquer níveis da educação requer percebê-la como processo de transformação dos indivíduos nos próprios espaços em que são formados, uma vez que a escola congrega pessoas que são social, política e economicamente diferentes em razão de gênero, idade, religião, cultura, dentre outros fatores que fazem os indivíduos serem singulares e diferentes. 

No âmbito da educação, os primeiros documentos oficiais que pautaram as temáticas de gênero e sexualidades, ainda que de forma inicial e marcadamente biologizante, foram os Parâmetros Curriculares Nacionais-PCN, publicados pelo Ministério da Educação em 1997. Localizando o debate como algo transversal durante todo o percurso escolar, o documento aglutinava, em três blocos de conteúdo, diversas discussões, como por exemplo: corpo e sexualidade, relações de gênero e prevenção às Infecções Sexualmente Transmissíveis-ISTs. 

Tal documento fomentou a construção de caminhos para se emergir dentro da educação um campo importante de produção de conhecimento que buscou pensar práticas pedagógicas que pudessem corroborar com a construção de uma problematização das diferenças no cotidiano escolar ainda marcado por muita desigualdade e formas de violência.

Provocado pelos debates das ciências humanas, principalmente pelo surgimento da teoria queer, o campo da educação começa desde os anos 2000 com Guacira Louro (2001), a tecer investigações abraçando as temáticas de gênero e sexualidade na educação — fortemente nutridas pela teoria queer —, constituindo neste percurso um rico repertório teórico problematizando questões importantes do nosso presente e interrogando a escola em sua produção normativa (SILVA; ALVES, 2020).

Em 2004, foi criado ainda, no âmbito do governo federal, o programa “Brasil sem Homofobia”, visando combater o preconceito e a violência para com a população LGBT. Como fruto do programa, foi lançado, em 2011, o Caderno “Escola sem Homofobia”, tendo sido tal material pedagógico perseguido e apelidado pejorativamente como “kit-gay” por deputados vinculados ao fundamentalismo religioso, tendo sido proibida sua distribuição nas escolas. 

Percebendo igualmente a necessidade do trato dessas temáticas no cotidiano escolar, várias redes municipais e estaduais no Brasil, com o passar dos anos, perpassadas pelo incentivo da formação continuada, buscaram construir práticas pedagógicas que visavam combater as desigualdades ainda muito acentuadas no nosso país, pautando uma educação em gênero e sexualidade nas suas políticas de ensino. Os efeitos dessas políticas de ensino muitas vezes não foram satisfatórios, tanto pela falta de interesse dos professores de se abrirem para estudar e trabalhar a temática, quanto pela própria ausência de formações continuadas que abracem gênero e sexualidade na educação como objetos de formação. A LGBTfobia continua sendo uma realidade na sociedade e não menos praticada no ambiente escolar.

Neste dossiê, almejando constituir um pertinente debate sobre Escola e LGBTfobia, apresentamos quatro trabalhos que construíram investigações diversas sobre a problemática do enfrentamento aos enquadramentos normativos violentos, cada vez mais crescentes nos espaços educativos.

O artigo LGBTfobias no contexto escolar de Crateús e Sertão dos Inhamuns: relatos de violência, resistência e vivência LGBT+, de Marcela Bruna de Oliveira e Lia Pinheiro Barbosa, realizado no contexto educacional de Crateús e Sertão dos Inhamuns no Ceará, relata situações de LGBTfobia a fim de evidenciar mecanismos de produção e reprodução desta violência em diversos contextos e situações, ressaltando, desse modo, seu caráter estrutural. O estudo tomou por base o arcabouço teórico de Butler, Preciado, Foucault e Louro, em relação ao estudo do gênero e da sexualidade, bem como da produção de mecanismos e discursos de poder. Em seu procedimento metodológico, realizou entrevistas com pessoas da LGBT+ da região. Concluindo — em sua análise de dados — que as diferentes situações de LGBTfobia experienciadas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e pessoas transgêneras no contexto educacional apontam para a emergência de que sejam viabilizados o debate e a formação continuada dos profissionais da Educação nas áreas de gênero e sexualidade.

No texto de Marcelo Chaves Soares, Da caça às bruxas à caça ao menino afeminado: um relato de memórias queer na escola, por sua vez, o autor apresenta memórias de um professor que foi um menino afeminado na escola. Para tanto, faz uso de memórias do autor, que também é sujeito da pesquisa e portador das memórias queer. Nesse contexto, narra as suas memórias e demonstra a sua relação com a teoria queer, além de esclarecer a maneira negligente com que a escola atuava e colaborava para a caça ao menino afeminado. O ensaio buscou aporte teórico em Guacira Lopes Louro, Michel Foucault e Judith Butler para discutir o papel da escola na docilização de corpos, na produção dos gêneros, sexualidades e sujeitos nas estruturas de poder.

No artigo Movimento estudantil online contra lgbtifobia: práticas discursivas e educativas em mídias digitais da UBES, Gabriel Merlim Moraes Villela e Maria Cristina Giorgi, analisam a construção de práticas discursivas e educativas que se opõem à LGBTIfobia por meio das mídias digitais do movimento estudantil, entendidas como espaço de formação de práticas educativas e político-ativistas, vinculadas, mas não restritas à escola. Para tanto, partindo de uma perspectiva interdisciplinar e pautados no referencial teórico-metodológico da Análise do Discurso, os autores selecionaram como corpus de análise dois vídeos postados na rede social Instagram da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Os resultados da pesquisa apontam para a construção de saberes e de consciência das opressões contra corpos LGBTI, aliados a uma perspectiva de saber vinculada às relações de poder, à coletividade e a um dever ético com a emancipação social.

Por fim, no quarto e último artigo, intitulado Diversidade sexual e de gênero no currículo escolar e na formação docente: desafios e práticas de respeito, João Tomaz dos Santos Neto propõe um diálogo entre o currículo e a formação docente no que diz respeito à diversidade sexual e de gênero. Para tanto, parte de uma revisão bibliográfica integrativa da literatura disponível e aponta, a partir dela, alguns caminhos já percorridos historicamente, bem como algumas possibilidades para a construção de uma educação mais inclusiva, respeitosa e diversa. Por conseguinte, o autor conclui que a diversidade sexual pode ser considerada um dos sustentáculos para uma educação acolhedora.

Cada estudo, neste dossiê, em sua singularidade e especificidade, conforma um pertinente movimento de provocação crítica, articulando, com isso, problemas potentes ao pensamento. Assim, as contribuições presentes nesta edição da Revista de Ciências Sociais, poderão engendrar importantes experimentações educativas, desbravando outras possibilidades de habitar o presente e viver uma vida possível de ser vivida.

Referências

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. 3. ed. Lisboa: Presença, 1980.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Tradução Reynaldo Bairão. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora S/A, 1975.

BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Tradução de Andreas Lieber. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Tradução Fernanda Siqueira Miguens. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

DUSSEL, Ines; CARUSO, Marcelo. A invenção da sala de aula: uma genealogia das formas de ensinar. Tradução de Cristina Antunes. São Paulo: Moderna, 2003.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a Educação. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2, p. 541-553, 2001.

SANTOS, Mitz Helena Souza; SILVA, Robson Guedes da. Perspectivas sobre o presente: educação, governamentalidade e políticas de produção de vidas precárias. Diversidade e Educação, [S. l.], v. 8, n. 2, p. 74-98, 2020.

SIBILIA, Paula. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

SILVA, Robson Guedes da. Sobre a pedagogia em disputa: entre perspectivas e desafios no campo da educação. Revista Filosofia e Educação, v. 12, n. 1, p. 209-217, 29 jun. 2020.

SILVA, Robson Guedes da; ALVES, Karina Mirian da Cruz Valença. Interrogações queer ao currículo: subjetividades, diferença e educação. Revista Fórum Identidades, v. 32, n. 1, p. 149-161, jul.-dez., 2020.

UNESCO. Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas — JUNQUEIRA, Rogério Diniz (org.). Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2009.

Resumo:
Texto de apresentação do Dossiê Escola e LGBTfobia.

Palavras-chave:
Escola; Educação; LGBTfobia.

 

Abstract:
Presentation to the Special Issue School and LGBTphobia.

Keywords:
School; Education; LGBTphobia.

 

Recebido para publicação em 20/10/2021
Aceito em 23/10/2021