Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 1, mar./jun., 2022
DOI: 10.36517/rcs.2022.1.d01
ISSN: 2318-4620
Burguesia e extrema direita no
Brasil:
nota introdutória
Caio
Bugiato
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil
bugiato@gmail.com
Sara
Freitas
Universidade Estadual de Campinas, Brasil
sarafs77@yahoo.com.br
A ascensão da extrema-direita como força política organizada é um fenômeno atual e mundial. Com uma articulação transnacional, a intensidade desta força e seus êxitos variam de país para país e em alguns casos ela chega a ocupar as mais altas posições estatais. Suas diferentes e complexas inserções nos processos políticos nacionais possibilitam caracterizá-la de formas distintas, tais como tradicionalismo, populismo de direita, (neo)fascismo, entre outras. Suas críticas e oposições, conservadoras e por vezes superficiais, igualmente variam: são frequentes os ataques, sobretudo no plano discursivo, ao Estado capitalista, ao programa neoliberal, à democracia liberal, ao sistema partidário, ao sistema eleitoral. Contudo, um elemento que não varia e caracteriza a natureza da extrema-direita é seu objetivo principal de eliminação do pensamento e da prática política da esquerda, no passado e no presente, inclusive como forma de governar. Atualmente esta esquerda é entendida de modo geral, como todos os que não se enquadram e se posicionam contra os valores e o projeto político dos extremistas (os inimigos a serem exterminados). Outro elemento aparentemente invariante é a tendência de cooptação dos movimentos de extrema-direita pela burguesia. Como um movimento político tradicionalmente originado em camadas intermediárias das sociedades capitalistas, a ascensão da extrema-direita é acompanhada de influência, interferência e dominação da classe dominante sobre o processo. Uma dinâmica de cooptação pelo alto, no passado e no presente, inclusive como constituição de hegemonia política.
Assim, este número da Revista de Ciências Sociais oferece um panorama da produção acadêmica sobre as transformações ocorridas nos últimos anos na política brasileira, com a ascensão da extrema direita, a eleição do governo Bolsonaro — que congrega os elementos invariantes descritos acima — e o papel da burguesia e outros agentes políticos na conjuntura. O primeiro conjunto de artigos reúne trabalhos teóricos diante de tais transformações, revisitando conceitos clássicos como fascismo, ideologia, bem como a relação destes com a psicanálise, em perspectiva crítica.
O artigo de Victor José Alves Fernandes e Daniel Spotorno Moreira Machado recorrem a Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, abordando a configuração do poder político como articulação da hegemonia política. Com o objetivo de discutir os processos através dos quais operam-se interpelações discursivas e conformações identitárias sintetizadas no termo “bolsonarismo”. Os autores revisam a problemática do conflito como categoria fundacional da psicanálise e avançam em sua hipótese de que moções inconscientes são capazes de orientar a ação social racionalmente justificada. Assim, os autores argumentam que o sujeito é incapaz de relacionar-se com o mundo e com a si mesmo com espontaneidade e aproveitar da experiência de si mesmo como devir, como incerteza, criatividade e constante produção de alteridades. Pode ser um sujeito especialmente suscetível às interpelações discursivas que conformam o autoritarismo característico dos matizes políticos de extrema-direita em geral e o que os autores denominam bolsonarismo, em particular. O texto encerra-se com o debate acerca da hipótese de que indivíduos mais propícios às interpelações neofascistas são os que negam a transitoriedade e apegam-se a uma fantasia de fixidez identitária, subjetiva, bem como de posições no espaço social.
O artigo de Mateus Mendes e Márcia Ribeiro Dias apresenta uma reflexão instigante sobre as afinidades eletivas entre o liberal-conservadorismo e o fascismo e observa traços deste mutualismo no processo político brasileiro atual. Os autores analisam a dimensão ideológica no Brasil contemporâneo a partir da identificação de uma sobreposição de ideologias na sociedade brasileira, que se tornou hegemônica a partir das eleições de 2018. Os autores fazem uma discussão teórica partindo de uma discussão epistemológica acerca do conceito de ideologia, categorizam o fascismo e o liberal-conservadorismo e assim analisam a evolução das disputas entre diferentes vertentes ideológicas, protagonizadas pela esquerda socialdemocrata e a direita neoliberal na história recente do país.
O Dossiê segue com um segundo conjunto de artigos, composto por trabalhos que trazem análises da luta ideológica e da relação capital-trabalho no Brasil, para além do plano teórico, e que podem ser compreendidos como ações da burguesia brasileira, do governo e de seus aliados.
Ana Livia Rodrigues e Ramayana Costa em seu artigo mostram a adesão de mulheres a ideias e práticas ultraconservadores e fascistas. As autoras contextualizam a participação das mulheres nos diferentes fascismos europeus e no integralismo brasileiro no século XX, dando ênfase ao fenômeno no Brasil atual: a participação das mulheres no governo Bolsonaro, bem como de apoiadoras desse governo e suas atividades/ações em defesa do ultraconservadorismo no Brasil. As autoras afirmam que a partir da adesão e das mulheres a governos misóginos na sociedade brasileira tem contribuído, de maneira ativa, para o fortalecimento e perpetuação do domínio masculino. Trata-se, em última instância, de mulheres que defendem as suas condições de mulheres “belas, recatadas e do lar” e que procuram ocupar os espaços públicos para reforçar tais ideais, utilizando o Estado como este lugar de imposição autoritária de uma moral cristã, de um ideal familista burguês.
Fabio Lanza e Maryana Marcondes apresentam o papel das instituições religiosas para a compreensão da realidade contemporânea. São essas instituições, como a Bola de Neve Church (BNC), que ajudaram a eleger e a manter o plano político conservador brasileiro nos últimos anos. É importante salientar que grupos religiosos de vertente cristã, principalmente a vertente neopentecostal, como é o caso da BNC, tiveram significativa participação na eleição do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Os autores propõem uma análise das narrativas neoliberais compartilhadas pela Bola de Neve Church. Para isso, elaboraram suas reflexões acerca do vídeo publicado na plataforma do YouTube, intitulado Como enfrentar a atual crise política/financeira, um discurso do fundador da BNC, Apóstolo Rinaldo Seixas, realizado no Congresso Recrie, em 2016. Como resultado, apontam uma aproximação da BNC com o ideário neoliberal a partir de uma perspectiva religiosa, com um discurso que fornece explicações místicas da crise econômica e da política brasileira e soluções inspiradas na economia de rede para proteger os fiéis do desemprego. Assim, desenvolvem-se, via religião, os valores do empreendedorismo como alternativa à crise da empregabilidade.
Danilo Enrico Martuscelli e Nayara Letícia Sartori da Silva evidenciam a centralidade e o papel dos grandes bancos na política econômica brasileira, para os quais direitos trabalhistas são obstáculos a serem retirados. Desse modo, os autores examinam a posição do capital financeiro diante da questão trabalhista e da questão sindical na conjuntura brasileira de 2011 a 2021. Analisam o conteúdo da Agenda do Setor Financeiro produzida pela Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), órgão máximo de representação das instituições financeiras no país. Ao longo do referido período, a CNF tratou os direitos trabalhistas como inibidores do crescimento econômico, causadores do desemprego e obstáculos para a competitividade das empresas. Tal posicionamento conservador desempenhou papel relevante no debate e na elaboração de medidas que promoveram a redução de direitos trabalhistas e impuseram limites à ação reivindicatória dos trabalhadores, por meio do primado do negociado sobre o legislado, nas relações de trabalho.
O artigo de Gabriel S. Vaccari e Mateus C. M. Albuquerque encerra esse dossiê com um assunto de pertinência significativa, que diz respeito justamente ao apoio empresarial ao governo Bolsonaro. Os dados e análises apresentados são bastante esclarecedores sobre a relação do setor comercial com o governo Bolsonaro. Os autores analisam a relação do empresariado comercial com o governo entre os anos de 2018 e 2020. Como resultado, identificam forte apoio às reformas liberais, de maneira ativa, pautando especificidades nestas reformas e um engajamento favorável ao governo, no período eleitoral e em seu primeiro ano. Também identificam que os comerciantes se mobilizaram ativamente por pautas específicas do setor. Referente a medidas sobre a pandemia, os autores destacam que todas as associações defenderam a necessidade de ajuda por parte do governo para os empresários, mas somente no Instituto para o Desenvolvimento do Varejo (IDV) constataram pressão pela reabertura do comércio.
Resumo:
Este texto é a apresentação do Dossiê
Burguesia e Extrema Direita no Brasil. A necessidade de um
Dossiê com essa temática no Brasil surge com a ascensão da extrema
direita e a eleição do governo Bolsonaro. Nesse processo é possível
identificar uma tendência: a cooptação dos movimentos de extrema-direita
pela burguesia. Como um movimento político tradicionalmente originado em
camadas intermediárias das sociedades capitalistas, a ascensão da
extrema-direita é acompanhada de influência, interferência e dominação
da classe dominante sobre o processo. Uma dinâmica de cooptação pelo
alto, no passado e no presente, inclusive como constituição de hegemonia
política. Dessa forma, apresentamos os artigos do dossiê, teóricos e de
análise da conjuntura, que captam a relação entre a extrema direita, a
burguesia e outros agentes políticos no Brasil.
Palavras-chave:
Burguesia; extrema direita;
Brasil.
Abstract:
This text presents the dossier
Bourgeoisie and extreme right in Brazil. A dossier about this theme
becomes necessary in Brazil due to the rise of the extreme right and the
election of the Bolsonaro administration. In this process, it is
possible to identify a trend: the co-option of extreme-right movements
by the bourgeoisie. As a political movement traditionally originated in
the middle sectors of capitalist societies, the rise of the extreme
right is accompanied by the influence, interference, and domination of
the ruling class over the process. A dynamic of co-optation from above,
in the past and present, and towards the constitution of political
hegemony. In this way, we present theoretical and analytical articles
that capture the relationship among the extreme right, the bourgeoisie,
and other political agents in Brazil.
Keywords:
Bourgeoisie; extreme right; Brazil.
Recebido para publicação em 17/02/2022
Aceito em 20/02/2022