Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 2, jul./out., 2022
DOI: 10.36517/rcs.2022.2.d06
ISSN: 2318-4620
Entre cooperação e concorrência:
jornalistas e operadores do direito em empresas de moralização da
política no Brasil
João Gilberto do Nascimento
Lima
Doutor em Ciência Política pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
joaogilberto@ymail.com
Ao longo das últimas décadas, uma rica bibliografia demonstrou a fecundidade de se considerar as críticas da política e os agentes que as empreendem para a compreensão da (des)legitimação de regimes democráticos. No Brasil, trabalhos recentes têm se debruçado sobre esse tipo de problemática, com foco principalmente no espaço jurídico (ENGELMANN, 2016, 2017, 2021; ENGELMANN; PILAU, 2021; BENTO, 2018, 2019; ALMEIDA, 2018). Contudo, nota-se uma escassez de estudos relativos ao lugar dos jornalistas e dos meios de comunicação para além da dimensão noticiosa dos “escândalos”, já largamente explorada pelas pesquisas nas ciências sociais e no campo da comunicação.1
Aqui discute-se como esses julgamentos eventualmente se transformam em “cruzadas morais”, no sentido de Becker (2008), que mobilizam agentes situados em diferentes universos em prol da correção da conduta dos ocupantes de postos públicos (eletivos ou não). Toma-se como exemplo a atuação de jornalistas “investigativos” e as intersecções possibilitadas por esta condição com outros espaços, notadamente o do direito. Nesse sentido, uma ordem específica de julgamentos é priorizada: aquela que está ligada à revelação de casos, à propagação de escândalos, denúncias de corrupção e do “imoralismo” dos detentores do poder, ou ainda críticas mais ou menos difusas dirigidas à “política” e às suas representações oficiais (BRIQUET; GARRAUD, 2001, p. 13). Articulada a esses julgamentos, a confluência entre causas profissionais e políticas (CHAMPY; ISRAËL, 2009) fornece uma entrada para compreender a inserção dos jornalistas em circuitos de exportação-importação de saberes e concepções profissionais, mas também de representações acerca do “bom funcionamento” da ordem política e, assim, como eles se convertem em atores importantes na busca pela reforma das instituições políticas nacionais. O que está em jogo, buscando seguir as sugestões de Becker (2008) e Mathieu (2005, 2009), não é avaliar as posturas consideradas ilegais ou desviantes — tampouco se os julgamentos sobre elas são “justos” ou não —, mas a própria mobilização daqueles que se engajam em empresas dessa ordem.
É preciso então levar em conta a diversificação das maneiras de julgar e a variedade dos grupos portadores da crítica (BRIQUET; GARRAUD, 2001, p. 16) que se envolvem nestas mobilizações, independentemente de qualquer consideração acerca dos interesses, reais ou presumidos, que os mesmos possam ter (BRIQUET, 2001, p. 103). A preocupação em dar conta dessa diversificação e variedade reside na constatação de que os profissionais do direito não detêm o monopólio da acusação, e os locais de julgamento não se restringem aos tribunais. Assim, campanhas internacionais de “luta contra a corrupção”, contra a violação dos direitos humanos, contra a emissão de poluentes e pelo meio ambiente, em torno de causas humanitárias, etc., são exemplos de mobilizações que envolvem fortemente os agentes do mundo jurídico, evidentemente, mas também outras categorias, como os próprios jornalistas “investigativos”, profissionais do desvelamento (BRIQUET; GARRAUD, 2001, p. 16) que frequentemente sobrepõem a sua prática profissional ao engajamento em torno de causas diversas, percebidas como mais ou menos próximas à atividade profissional.
Os repertórios críticos em relação à política frequentemente contêm um forte cunho moral, questionando os modos de fazer dos agentes políticos, que passam a ser apresentados e concebidos como não estando conformes às exigências éticas consideradas necessárias ao exercício das suas funções. Eles estão ligados principalmente às ações empreendidas por diferentes categorias de agentes que operam segundo lógicas heterogêneas, com significações e efeitos variados, mas que favorecem a constatação corriqueira da existência de uma “degradação” do sistema político como um todo.2
Refletindo sobre o problema da (des)legitimação de governantes e sistemas políticos, Dobry (2009, p. 105) propõe apreender as lógicas de ação social a partir do que chama de “transações colusivas”, um tipo particular de trocas sociais que faz parte do conjunto das trocas “intersetoriais”. A complexidade em pauta reside na diferenciação de “setores” dotados de lógicas sociais específicas a cada um, mais ou menos institucionalizados e objetivados. Dentro deste enquadramento, as transações colusivas são trocas entre atores sociais situados em setores distintos, cada qual se encontrando imerso em jogos e questões específicas, mas não se restringem a interações de caráter pessoal: são fluxos constantes entre setores sociais.3
Um dos pontos levantados por Dobry (2009, p. 120) é a centralidade da crença na democracia nas justificações avançadas nessas trocas, que implica não haver qualquer outra alternativa, uma vez que se considera muito custoso ou arriscado jogar outro jogo que não o democrático. Agir “em nome da democracia” (no caso em pauta, da “boa democracia”), portanto, pode ter efeitos de legitimação (das práticas, dos agentes que as empreendem e das instituições políticas) não negligenciáveis (GUILHOT, 2005). No contexto aqui tratado, essa atuação em prol da defesa da democracia e de valores a ela idealmente atribuídos (igualdade, transparência, liberdade de expressão etc.) conforma uma representação de jornalistas e operadores do direito como guardiões da virtude cívica e reformadores das instituições e práticas políticas que atuam na condição experts.4 Há aí uma busca pela conformação a ideais éticos e profissionais que delineiam os contornos das formas morais de relação com a política (BEZES; LASCOUMES, 2005, p. 785).
Boa parte dessas cruzadas de moralização da política se dá concomitantemente ao surgimento de “escândalos”, que não raro têm por efeito o desencadeamento de crises políticas com efeitos duráveis. Essa constatação faz com que seja necessário deslocar os esforços de pesquisa do conteúdo dos atos considerados “escandalosos” para inquirir sobre as condições de possibilidade de mobilizações “multissetoriais” em torno de um componente ético ou moral. Entre elas, a “luta contra a corrupção” tem se mostrado central nas últimas décadas, sendo ela produto e produtora de uma série de rearranjos tanto no escopo de atuação próprios aos agentes que nela se engajam quanto no próprio campo do poder de Estado.
Marchetti (2001), no seu estudo sobre o jornalismo investigativo na França, indica que ele é produto de um processo de disputa por legitimidade tanto dentro da profissão quanto junto à sociedade, reivindicando para si as “nobrezas” do métier. No Brasil, o jornalismo investigativo tornou-se uma categoria que tende a aglutinar em torno de si grande parte daquilo que remete à “boa” profissão (LIMA, 2019). Os promotores desse jornalismo defendem, em geral, uma concepção que implica mais profissionalismo e mais autonomia face ao poder político, como se vê no apego a valores mais gerais como objetividade e neutralidade e, por conseguinte, aos “fatos” (NÉVEU, 2006).
Para Lemieux (2001b, p. 59), o estabelecimento do jornalismo de investigação como um gênero novo no jornalismo francês é inseparável da reivindicação de novas prerrogativas “justiceiras” por parte dos jornalistas. Esse jornalismo seria um dos aspectos mais flagrantes de mudanças recentes nos modos pelos quais os jornalistas são levados a conceber a sua contribuição para a realização da “justiça coletiva”.
A atividade jornalística, assim concebida e praticada, pode contribuir para a criação ou imposição de regras ou convenções sociais. No primeiro caso, situam-se as ocasiões em que uma investigação jornalística revela algum desvio e funciona como uma espécie de “chamado à ordem”, difundindo na sociedade demandas por punições daqueles que adotaram condutas consideradas reprováveis e/ou criminosas. No segundo, tomando um exemplo limiar e relativamente atual, está a contribuição, não necessariamente visada enquanto tal, dos jornalistas e das suas publicações para percepções negativas da política, que conduzem frequentemente a uma criminalização difusa da “classe política” ou à constatação da “degradação” geral do sistema político.5
Sempre que se observam tentativas de criação ou imposição de regras (ou reforma dos costumes e condutas), é preciso se interrogar sobre a atuação dos indivíduos ou grupos nesses processos, que pode ser interpretada como uma empresa moral (BECKER, 2008, p. 151), uma vez que o que está em jogo é a criação de um novo fragmento da constituição moral da sociedade, que contribui para estabelecer os parâmetros do que é socialmente considerado como certo ou errado.6 Segundo Mathieu (2009, p. 171), o que distingue esse tipo de empresa não é seu engajamento no terreno da moral, mas sua pretensão à universalidade: além de promoverem os valores e normas que defendem para o grupo de adeptos, buscam a difusão e imposição generalizada do seu respeito.
Aqueles que se lançam nas cruzadas morais podem ser caracterizados como indivíduos que buscam revestir suas ações de um sentido de “missão” e de certo “humanitarismo” (BECKER, 2008, p. 153; MATHIEU, 2009, p. 169), e acreditam que a sua contribuição não apenas é benéfica para si, mas para toda a coletividade. Podem, por isso, esposar outras causas que consideram igualmente boas, para além daquela à qual se dedicam originalmente. De imediato, no jornalismo, a própria defesa da profissão e da sua qualidade é apresentada como a defesa de um bem coletivo, dada a indissociabilidade, nas representações mais difundidas, entre o jornalismo e uma democracia “sadia” (LIMA, 2019).
De modo geral, um empreendedor moral busca intervir de modo ativo e orientado em relação ao que acredita ser um mal (corrupção, descaso, violência etc.) que o afeta e sensibiliza de modo agudo, e que precisa ser erradicado ou, pelo menos, contido. Em grande medida, a atividade do jornalista “investigativo” está voltada para a identificação e exposição desse “mal”. A busca por “escandalizar” e revelar as “verdades ocultas” está diretamente relacionada a isso: “É pra chocar mesmo. Se um cara roubou, as pessoas têm que saber disso, e tem que se sentir mal mesmo, porque isso é ruim” (Entrevista). Portanto, a atividade jornalística que se pretende “investigativa” comporta um irredutível julgamento moral ao arrogar para si a condição de identificar e denunciar violações de regras ou normas como posturas que precisam de alguma correção ou reprovação social. Além disso, é possível identificar que os que se dedicam a esse tipo de jornalismo trazem nos seus itinerários um histórico de socialização política bastante marcado, que frequentemente se traduz por um “humor anti-institucional” (BOURDIEU, 2014, p. 33; MARCHETTI, 2001, p. 176)
Como mais adiante será melhor discutido, frequentemente vem à tona um aspecto de realização pessoal, que pode ser visualizado na ambição dos jornalistas de que as suas revelações possam se transformar em “escândalos” ou gerar algum impacto mais ou menos visível, trazendo assim para si algum tipo de reconhecimento pelo “feito”.
Nessas “empresas de denúncia e de moralização” (BRIQUET, 2001, p. 108), com frequência os jornalistas não se encontram sozinhos, operando junto a outros empreendedores que, em maior ou menor grau, comungam da postura ativa no sentido de exigir a obediência às regras por parte dos agentes públicos. Nessa linha, alguns trabalhos recentes têm destacado a participação de empreendedores morais na agenda da “luta contra a corrupção” e na promoção do catecismo da “renovação da política” (VAUCHEZ, 2017, p. 52; ENGELMANN, 2017, p. 307; ALMEIDA, 2018).
Práticas de corrupção, abusos, violências e violações diversas etc. não constituem fenômenos recentes e não têm ares de novidade. Mas as formas pelas quais os agentes “abrem os olhos” para eles e decidem que é necessário fazer algo, e os mecanismos pelos quais estas práticas se constituem em “escândalos” que fomentam as críticas e julgamentos da política, compõem atualmente arranjos mais ou menos inéditos e convergentes, aos quais as seções seguintes pretendem contribuir para elucidar.
Nas últimas décadas, o referencial da transparência se impôs como proposição universal e ligada a uma concepção “gerencialista” da democracia (FILGUEIRAS, 2011, p. 143). No bojo das iniciativas de reforma do Estado brasileiro após a redemocratização, a transparência ocupa lugar central.7 Enquanto um elemento da accountability, a promoção da transparência cria expectativas de uma melhor organização da administração pública e, consequentemente, de diminuição da corrupção.
Internacionalmente, diversos fóruns e instituições (Transparência Internacional, Banco Mundial, Carter Center, Open Society Institute, UNESCO, ONU etc.) têm buscado promover a agenda da transparência nos regimes políticos e o debate sobre a necessidade de leis de acesso para atingir esse fim. Essa agenda compõe um conjunto de prescrições internacionais anticorrupção que visam conformar os Estados nacionais a “boas práticas” de gestão, com a proposição de pacotes de reforma das instituições políticas, que são incorporadas às lutas no espaço do poder nacional.8 A observação, feita por alguns analistas, de que vários países sucessivamente têm aprovado a inclusão nos seus respectivos ordenamentos jurídicos de dispositivos que garantem maior transparência vai no sentido de que essas ações em nível internacional têm logrado êxito (ANGÉLICO, 2012, p. 13).
Dentre as modalidades de relacionamento entre jornalistas e agentes judiciais, a mobilização no país em torno da transparência pública é reveladora de um conjunto intrincado de empresas que convergem para a alegada necessidade de modernização das instituições políticas brasileiras, visando alinhá-las às “boas práticas” internacionais. Isto culminou, em 2011, na promulgação da Lei de Acesso a Informações Públicas (LAI), dispositivo jurídico daí em diante largamente acionado por jornalistas nas suas coberturas, muitas delas tendo desencadeado “escândalos” de repercussão nacional.9
A mobilização em torno da defesa do direito de acesso se iniciou no Brasil com o debate pela abertura dos arquivos do período militar, e levou em conta experiências de aprovação de leis de acesso em outros países para subsidiar as reivindicações em favor de uma lei semelhante no Brasil, principalmente nos Estados Unidos, onde as chamadas sunshine laws existem desde 196610 (APURAÇÃO, 2004, n. 1, p. 1). Em resumo, essa mobilização ganhou contornos mais nítidos no início dos anos 2000, com a criação das ONGs Transparência Brasil (abril de 2000) e ABRAJI (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo). Esta última, criada na esteira da repercussão do assassinato do jornalista Tim Lopes, erigiu a transparência como uma de suas bandeiras, e a promulgação de uma lei de acesso no Brasil como uma “missão”11 (TOGNOLLI, 2009, p. 74).
O apoio de organizações internacionais para o desenvolvimento da mobilização no Brasil se deu praticamente desde o início da ABRAJI, como é o caso da Article 19, uma ONG inglesa criada em 1987, que “busca promover globalmente a liberdade de expressão”, se especializando em fomentar campanhas de direito de acesso.12 Nos dias 11 e 12 de abril de 2005, foi realizada, na Cidade do México, uma reunião com entidades da América Latina para “desenvolver uma estratégia para a região” e “debater as situações específicas de cada um dos países com relação a uma lei de acesso à informação”. Na reunião, estavam presentes representantes da Article 19, da ABRAJI, das ONGs Liberdad de Información (LIMAC, México) e Asociación por Derechos Civiles (ADC, Argentina). A partir das parcerias firmadas nesse encontro, a ABRAJI passou a “fazer parte de uma rede de ONGs latino-americanas que trocam experiências e informações sobre liberdade de expressão e direito a informação pública no continente”. A parceria envolveu financiamentos para a associação (US$ 18 mil, no primeiro ano) e a assessoria de consultores legislativos da Article 19, em Londres, para “analisar leis em vigor e projetos no Congresso” e “redigir uma proposta semelhante a leis internacionais”. Também estava prevista a produção de materiais didáticos (pela Article 19 e pela ABRAJI) para divulgação no México e na Argentina, e seu conteúdo incluiria informações sobre a “importância de uma lei de acesso para a garantia de direitos sociais e econômicos, para o combate à corrupção e para a transparência da gestão pública”13 (APURAÇÃO, 2005, n. 5, p. 2).
Em novembro de 2004, a ABRAJI tomou a frente na criação do Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, que pode ser definido como uma reunião de “missionários modernos que pregam o novo evangelho internacional da ‘boa governança’” (DEZALAY; GARTH, 2002, p. 23), e que defendem o estabelecimento da rule of law e a preservação e/ou aprimoramento das instituições democráticas. Um levantamento (feito em 2016) permitiu ter a medida da pluralidade e do caráter multifacetado das organizações e interesses que compunham o Fórum à época. Em linhas gerais, trata-se de uma composição entre ONGs com amplas conexões internacionais e entidades de representação profissional, tanto do jornalismo14 como do direito.15 Dirigido pelo jornalista Fernando Rodrigues (então presidente da ABRAJI),16 o Fórum foi criado após uma decisão tomada em 30 de setembro de 2003, ao final do “Seminário Internacional sobre Direito de Acesso a Informações Públicas”, realizado em Brasília e promovido pela ABRAJI. O lançamento oficial do Fórum ocorreu pouco mais de um ano depois, na sede do Conselho Federal da OAB, em Brasília, e contou com a presença de jornalistas, magistrados, procuradores, familiares e representantes de vítimas da ditadura (grupo Tortura Nunca Mais), arquivistas e deputados federais envolvidos com o tema no Congresso Nacional. No encontro, o jornalista comprador17 e professor da Universidade do Texas, Rosental Calmon Alves — “a maior autoridade latino-americana em leis de acesso”18 (TOGNOLLI, 2009, p. 81) —, fez uma intervenção onde contrastava a “ordem jurídico-administrativa que herdamos” e a “ordem jurídico-administrativa que avança rapidamente nas democracias modernas”, para fundamentar a necessidade do país adotar uma lei de transparência e se alinhar assim aos “ventos democráticos [que] levaram o conceito de acesso a informações públicas a todo o mundo” (TOGNOLLI, 2009, p. 86).
Apesar da multiplicidade de entidades identificadas, os relatos coletados em pesquisa de campo são unânimes em identificar os dois principais artífices dessa articulação e do trâmite formal e informal do projeto de lei: os jornalistas Fernando Rodrigues e Claudio Weber Abramo, este último sendo reconhecido como um dos maiores “cruzados profissionalizados” (BECKER, 2008, p. 158) na causa da transparência pública no país, além de ser um dos fundadores da ONG Transparência Brasil. Esses jornalistas atuaram em diferentes frentes nesse processo.
No caso de Fernando Rodrigues, quando da fundação da ABRAJI, foi-lhe designada a função de, em nome da associação, pesquisar junto ao Congresso Nacional se já havia algum projeto de lei relacionado ao tema.19 Rodrigues fez uso dos contatos que dispunha na capital federal, boa parte deles adquiridos através da sua atuação profissional. Nesse caso, o capital de relações sociais e a sua mobilização enquanto um recurso político, assim como a política concebida enquanto representação de interesses, permitem calcar sua atuação num aparente distanciamento da política (CORADINI, 2017, p. 64), no seu sentido mais imediato, uma vez que teria agido em nome de uma causa ao mesmo tempo profissional e do “interesse de todos”. Na sua leitura, o protagonismo assumido pela ABRAJI no processo que levou à criação da LAI foi algo natural.
Em geral, em todos os países nos quais há esse debate [sobre o direito de acesso a informações públicas], ele começa dentro do circuito daqueles que precisam mais urgentemente ter acesso a informações. Quem são eles? Os jornalistas [...]. Ele é uma ferramenta de cidadania [...]. Eu defendi sempre essa ideia [de] que era importante ampliar o debate [...]. Eu trabalhei muito pra trazer entidades pra dentro desse Fórum, e pela facilidade até de eu estar em Brasília, e conhecer, por dever de ofício, pessoas que ocupam os cargos no governo e que se relacionam com esse tema, trabalhei bastante a favor da aprovação da lei (Entrevista).
Nesse tipo de empresa frequentemente são evocadas tendências internacionais e o imperativo de não seguir no sentido contrário, caminho imediatamente associado a um retrocesso.20 A busca pela arregimentação de apoios para além do grupo de origem (no caso, os jornalistas envolvidos na criação da ABRAJI, ONGs de transparência pública e operadores do direito), e o uso dos meios de comunicação visando criar uma atitude pública favorável em relação à nova regra proposta, legitimando assim a demanda formulada, são elementos recorrentes nas cruzadas morais (BECKER, 2008, p. 145).
Além do processo de elaboração e promulgação da LAI, outro caso exemplar dessa relação entre atuação jornalística, relações com operadores do direito e engajamento em prol da transparência pública é o de uma jornalista que se especializou ao longo da carreira no que chama de “jornalismo jurídico”. Iniciou sua atuação profissional no final de 2002, como redatora no Consultor Jurídico (Conjur), a partir de uma “ponte” feita por um jornalista mais experiente, de quem se tornou amiga durante a faculdade. No primeiro emprego alega ter descoberto seu interesse por justiça criminal, direito penal e temas correlatos.
Filha de advogados de formação que enveredaram para o ramo empresarial no interior de São Paulo, estudou em escolas privadas conceituadas e se formou em Jornalismo pela PUC-SP, com recursos da família. Define a parte materna da sua família como “bastante conservadora” e politizada: seu avô materno foi vereador de um município do estado e sua mãe foi secretária municipal da criança e do adolescente da sua cidade natal, filiada ao PFL. Se envolveu com atividades políticas ligadas à esquerda durante a faculdade, o que teria criado conflitos com sua genitora, que “se sentia muito decepcionada em ter uma filha de esquerda”. Posteriormente, alega ter revisado seus posicionamentos políticos dos tempos de estudante, movimento que em parte pode ser observado pelo seu próprio trajeto profissional, pautado pela passagem por veículos de imprensa que são costumeiramente considerados como tendo linhas editoriais mais “conservadoras”, como O Estado de S. Paulo (onde foi repórter entre 2004 e 2007) e a revista Veja (onde foi editora-assistente e repórter entre 2008 e 2013).21 Seu interesse por trabalhar no primeiro destes dois veículos decorria de uma avaliação de que “na época, era o jornal que [...] fazia a melhor cobertura de judiciário, tanto em São Paulo quanto em Brasília”. Pela Veja, cobriu o julgamento do “Mensalão” no STF, na condição de “especialista em judiciário”. Em 2014, se tornou cofundadora de uma plataforma especializada na cobertura do mundo do direito (JOTA).22
Por meio da sua atuação profissional, a jornalista em questão acumulou um conjunto amplo e diversificado de relações com agentes do mundo jurídico, que constituíam suas fontes para as coberturas que realizava. Contudo, como é bastante frequente no meio jornalístico, a relação com as fontes não é meramente instrumental (isto é, contatos pontuais para obter informações para uma cobertura específica), mas também envolve o estabelecimento de vínculos duráveis de amizade ou de outras ordens: um capital social (BOURDIEU, 2008) que pode ser mobilizado para fins que extrapolam o exercício profissional mais imediato. É este o caso do convite que recebeu de um procurador de justiça do Ministério Público de São Paulo para um jantar na sua residência, em 2015. Especializado no “combate à corrupção”23 e definindo-se, em evento recente em comemoração aos 10 anos da LAI, como um “azucrinador de corruptos”, o procurador promoveu este encontro com amigos igualmente interessados pela temática para discutir aquele que viria a ser o Instituto Não Aceito Corrupção (INAC), uma espécie de think tank que se define como uma “associação civil, nacional e apartidária, sem fins econômicos24”. O INAC foi criado na esteira das manifestações que pautavam uma depuração do sistema político brasileiro, animadas pelos impactos da “operação Lava Jato” sobre o establishment político da época.
Após esse primeiro encontro de “especialistas” em torno do tema da corrupção, a articulação capitaneada pelo procurador agregou — segundo informações do próprio INAC — um grupo inicial de 32 pessoas engajadas na causa do “combate inteligente e estratégico da corrupção”, visando disseminar “conhecimento sobre compliance empresarial e estatal, instrumentos de fiscalização do Poder Público, transparência e acesso à informação, entre outros, com o objetivo de reverter a cultura de corrupção que há tanto tempo vigora no Brasil”.25 A jornalista em pauta se torna a primeira vice-presidente do INAC, posição que ocupou de modo voluntário até 2017.26
Mesmo que não necessariamente se desenrolem de modo oculto ou “secreto”, uma parte importante das transações colusivas (DOBRY, 2009) não é facilmente identificável, como no caso de algumas relações e trocas de informações entre jornalistas e magistrados, policiais, entre outras categorias de agentes.27 É preciso então considerar mais do que aquilo que tem condições de ser enunciado explicitamente, seja pela falta de interesse na sua apresentação pública, seja porque a própria condição de eficácia depende da sua dissimulação ou ocultação, ou ainda porque remete a algo da ordem do “impensado” (CORADINI, 2017, p. 75).
Nesse movimento de denúncia mais geral, destaca-se primeiramente o papel desempenhado pelos agentes e instituições do espaço jurídico que, não apenas no Brasil, conquistaram maior autonomia em relação ao poder político, reforçando sua capacidade de identificar e julgar atentados à probidade pública. Contudo, como já salientado, o sucesso de algumas empresas de denúncia não é tributário somente das transformações ocorridas na arena jurídica, devendo ser relacionado a mudanças mais ou menos homólogas ocorridas em outros domínios, sobretudo — para o que aqui está em jogo — no espaço jornalístico, por meio do qual as ações de investigação são largamente publicizadas nas últimas décadas. Inversamente, a conformação dessa interdependência permite que a mídia instrumentalize os produtos jurídicos em prol dos seus interesses próprios (profissionais, comerciais e políticos) algo que não deixa de gerar impactos substantivos sobre as representações e práticas dos jornalistas.
Essa imbricação entre judiciário e imprensa é analisada por Briquet (2001, 2009), que identifica nos escândalos políticos que sacodem a Itália nos anos 1990, particularmente no contexto da “operação Mãos Limpas”, uma relação entre o jornalismo investigativo, a magistratura e ONGs voltadas para pautas como a “transparência política”. Naquele contexto, o debate político acabou sendo bastante judicializado devido às disposições de denúncia dos veículos de comunicação e à punição de políticos envolvidos nos escândalos.28 Roussel (2002, p. 175-186), tratando do caso francês, apresenta as lógicas de situação que impelem magistrados a buscar “aliados” entre seus interlocutores, com destaque para os jornalistas. A autora identifica na cooperação entre magistrados e jornalistas uma das particularidades dos escândalos que estuda.29
Os campos jornalístico e jurídico, na França, a partir da segunda metade do século XX, entram num concomitante processo de maior autonomização em relação às injunções do campo político, o que aumenta muito as condições de publicização e juridicização dos casos político-financeiros e, portanto, da construção pública de escândalos. Tal como afirma Garraud (1999, p. 138), as transformações internas ao espaço midiático e ao meio judiciário permitiram o desenvolvimento de uma interação nova, e mesmo de uma interdependência, entre magistrados e jornalistas. Algo semelhante ocorre no caso brasileiro: as relações de cooperação e concorrência que jornalistas estabelecem, por exemplo, com agentes de instituições como Ministério Público e Polícia Federal têm efeitos diretos sobre as formas como as práticas dos profissionais passam a ser concebidas e enunciadas, mas também sobre os universos político e econômico onde, em geral, as condutas identificadas e denunciadas como “escandalosas” ou passíveis de uma apreciação moralmente condenável têm lugar.
No Brasil, as mudanças ocorridas no jornalismo com a redemocratização são acompanhadas por transformações nos espaços político e jurídico, inaugurando-se novos usos do direito, como destaca Engelmann (2006). Em trabalho mais recente, o mesmo autor discute as implicações políticas do que chama de “nova versão do protagonismo político das instituições judiciais”, atentando para a relação entre o processo de autonomização (relativa) do sistema judicial em contextos latino-americanos e a dinâmica de instabilidade política que os caracteriza (ENGELMANN, 2016, p. 9). Nessa interpretação, o crescimento do protagonismo político das instituições judiciais é o corolário da progressiva independência que estas conquistaram em face dos espaços político e econômico, observável principalmente a partir da Constituição de 1988.30 Paralelamente, a garantia constitucional das liberdades de expressão e de imprensa permitiu uma aproximação mais evidente entre jornalistas e operadores do direito, que passam a cooperar para a publicização de atentados à probidade pública.
Abreu (2017, p. 41) aponta que o processo de abertura política possibilitou o aparecimento de “novos personagens denunciantes”, que passaram a atuar junto com a imprensa, particularmente os procuradores da República. Com os poderes e a autonomia adquiridos pelo Ministério Público a partir da Constituição de 1988, os procuradores se encontravam dotados de competência legal para investigar de modo mais amplo, mas algumas limitações teriam tornado o cenário propício para o recurso aos jornalistas e à midiatização das suas investigações na imprensa, esperando colher da repercussão assim obtida a possibilidade de avançar nos processos. Essa cooperação muitas vezes é o objeto de leituras positivadas, no sentido de que tanto procuradores quanto jornalistas trabalhariam em conjunto em nome do “interesse público”. Surgiriam, então, interesses convergentes:
Os procuradores usam a mídia como forma de abrir caminho para suas investigações, muitas vezes meras especulações ou processos ainda em fase de investigação. A mídia utiliza essas informações, principalmente quando se trata de temas envolvendo personalidades da vida pública, para ampliar suas vendas, no caso de jornais e revistas, ou sua audiência, no caso de rádio e televisão (ABREU, 2017, p. 43).
De modo muito semelhante, Grün (2018, p. 80), afirma que:
É flagrante que a configuração brasileira nutre-se [...] do processo paralelo que ocorre no campo jurídico, no qual as procuradorias ganharam o poder que ostentam recentemente. A homologia de posições [...] acabou gerando uma sintonia na qual os métodos e propósitos de um grupo profissional alimenta e também depende da ação, aparentemente concatenada, do outro.
As duas faces da moeda que, de um lado, constata a existência de “crises” e, do outro, a necessidade da afirmação da legalidade, não representam uma evolução necessária, nem um processo irreversível (BRIQUET; GARRAUD, 2001, p. 21). Assim, ainda que atualmente algumas análises apresentem leituras muito parecidas sobre as relações entre indivíduos situados nos espaços jurídico e jornalístico, nada autoriza a ver nestas alguma estabilidade ao longo do tempo, tampouco postular um desenvolvimento inexorável e unívoco, uma vez que respondem a lógicas heterogêneas, com significações e efeitos sociais diversos.31
Por mais convergentes que possam ser os interesses nessas empresas de denúncia, existem diferenças substantivas, por exemplo em se tratando da possibilidade que os operadores do direito têm de ter acesso a dados em primeira mão (através quebras de sigilo, mandados de busca e apreensão, coletas de depoimentos, “delações premiadas”, etc.), o que impele os jornalistas a direcionarem esforços para tentar readquirir protagonismo no “desvelamento de verdades ocultas” (BRIQUET, 2001, p. 111). Ponderando a esse respeito, o diretor de redação da sucursal em Brasília de uma das principais revistas do país, diz que:
[Sobre Ministério Público, Polícia Federal, etc.] Esses são órgãos principalmente voltados pra si mesmos, eles têm interesses corporativos, e que não necessariamente coincidem com o da imprensa, não necessariamente coincidem com o do leitor. Somando isso ao poderio de investigação que dispõem [...], você pode ficar muito dependente de uma agenda que eventualmente, circunstancialmente, coincide [...]. Mas eu digo: eles não são parceiros, eles têm um objetivo que é distinto do nosso. Então, por isso que envolve um esforço maior, de você tentar não ser porta-voz de um interesse oculto [...]. Exige um esforço de você tentar acessar fontes que sejam da instituição, mas que não estejam operando coordenadamente com a assessoria e com a direção da instituição, pra você tentar revelar uma coisa genuína, né? (Entrevista).
Essas transações também são marcadas por atritos e críticas de ambos os lados, algo que pode ser melhor observado ao se cotejar momentos em que tentativas mais claras de defesa de prerrogativas mais ou menos exclusivas podem ser identificadas. Este é o caso de um seminário internacional realizado em novembro de 2002 no auditório do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que teve como foco debater a “imprensa investigativa”. Nele, algumas tomadas de posição de membros da alta cúpula do judiciário brasileiro e latino-americano são explicitadas. Do evento, participaram juristas, advogados e jornalistas, todos atuantes no eixo Rio-São Paulo-Brasília. Entre os temas debatidos estava não apenas a relevância da “imprensa investigativa”, mas também alguns dos seus “inconvenientes”, quando esta por exemplo interferia no funcionamento do poder Judiciário, segundo a percepção dos magistrados. As preocupações que nortearam o seminário estavam relacionadas mais aos vícios do que às virtudes da imprensa: “sensacionalismo”, “denuncismo”, “vitimização”, eventuais atentados à honra, mídia como um “juiz paralelo”, e assim por diante. Com efeito, este evento pode ser tomado como ilustrativo do estado das relações entre imprensa e Judiciário entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000.
De modo similar ao que se observou na França ao longo dos anos 1980 (LEMIEUX, 2001a, p. 93), muitos eventos foram dedicados a discutir os problemas e os desvios em relação às boas práticas jornalísticas no país. No contexto francês, estas ocasiões se deram no bojo das profundas resistências que as “novas missões justiceiras”, que a si atribuíam alguns jornalistas, geravam tanto entre os jornalistas, quanto entre os outros grupos profissionais.32 No Brasil, pontualmente, os anos 1990 testemunharam iniciativas nesse sentido, mas é a partir do início dos anos 2000 que se pode observar uma frequência maior de reuniões, debates etc., promovidos por instâncias variadas, sobre o papel da imprensa e das instituições judiciais em torno de investigações e denúncias.
Parte das conferências proferidas no seminário foram publicadas no ano seguinte na revista do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), responsável pela promoção das atividades. A partir das publicações, é possível refinar a percepção das tomadas de posição que ali tiveram lugar. Logo no editorial que apresenta o dossiê do periódico, Cesar Asfor Rocha, então coordenador geral da Justiça Federal e diretor do CEJ, destaca a “enorme relevância” do tema, e apresenta a capacidade “inquisitória” da qual se dotou a imprensa com a redemocratização do país como uma “tormentosa questão”, pois confronta a independência paralelamente adquirida pelo Poder Judiciário no mesmo processo e período. Enquanto “pressupostos básicos de qualquer democracia contemporânea”, a independência do poder Judiciário e a liberdade de imprensa são apresentadas como conquistas do “recém-consolidado Estado de Direito” brasileiro (ROCHA, 2003, p. 5). Padecendo de males semelhantes durante a ditadura, como intimidação e censura, Poder Judiciário e imprensa desfrutariam, numa democracia constituída, do mesmo princípio: a liberdade, tanto de julgamento quanto de expressão. Contudo, na visão de Rocha, a imprensa teria insuflado demandas por reparação e depuração do Estado brasileiro — uma espécie de “faxina moral” — que teriam sobrecarregado as instituições judiciais e os seus agentes que, não habituados aos níveis de cobrança e exposição midiáticas, se viram eles próprios no centro do “tribunal da opinião pública”.
O que se pode depreender do editorial é que, do ponto de vista do Poder Judiciário, a imprensa teria abusado da liberdade conquistada ao assumir uma prerrogativa estatutária que não seria a sua. Essa postura ativa dos meios de comunicação atingiria algumas das principais pilastras que sustentam o procedimento judiciário, como a presunção de inocência e o direito à privacidade. De modo sintético, pode-se inferir que, naquele momento, se encontrava estabelecido um conflito de competências que tinha no seu âmago a reivindicação do monopólio da legitimidade do poder de julgar a política.
O editorial demarca o relativo consenso que perpassou todas as intervenções no seminário: o de que, apesar de importante para a democracia, o jornalismo brasileiro vinha dificultando a atuação do Poder Judiciário. Esse conflito aparece de modo bastante claro no texto de Naves (2003), que constituiu a conferência de abertura do seminário do CEJ. Embora o autor — à época presidente do STJ e do Conselho da Justiça Federal (CJF) — enalteça a importância da imprensa e do jornalismo investigativo para o “benefício da comunidade” e para o “fortalecimento da cidadania”, seu objetivo principal é manifestar as suas inquietudes sobre as “derivas” da imprensa investigativa e os perigos aí contidos. Diferenciando “interesse público” de “interesse do público”, Naves (2003, p. 7) considera que o segundo “é desculpa frequente invocada pela mídia para exigir informações e até justificar invasões de privacidade”.
O mais interessante da posição de Naves (2003) é sua ambivalência. O magistrado reconhece as limitações do Poder Judiciário, do Ministério Público e das forças policiais na época. Nesse cenário, o jornalismo investigativo atuaria como um complemento, trazendo à luz fatos que ocasionalmente passaram ao largo das autoridades. Pontua inclusive que “a imprensa tem muito a recomendar à Justiça”. Não obstante as contribuições da imprensa, e particularmente do jornalismo investigativo, para a punição de desvios diversos, o ministro passa então a refletir sobre os seus “inconvenientes” e “distorções”, e a tecer críticas sobre o modo de funcionamento do espaço jornalístico. Começa pela crítica da “corrida pelo furo”,33 que levaria os profissionais da imprensa a apressadamente publicar informações sem checar, podendo assim incorrer em injustiças e destruir reputações de pessoas inocentes nos chamados “linchamentos midiáticos”.34 A “corrida pelo furo” teria contribuído para colocar a imprensa à frente do judiciário na penalização de investigados ou, nos termos utilizados no texto, para a “pretensa transformação de jornalistas em autoridades judicantes” (NAVES, 2003, p. 8).
Sim, sempre e sempre a imprensa investigativa terá papel relevante, todavia apresenta inconvenientes, dos quais o mais sério, sob a ótica do julgador, encontra-se nos casos em que a notícia transcende a apuração e a divulgação dos fatos e invade o terreno do Judiciário.
Devemos ter em mente que procedimento preparatório, acusação, julgamentos e condenação são atos que competem, constitucional e legalmente, ao Poder Judiciário, com a valiosa colaboração do Ministério Público e da polícia judiciária. Assim, não é correto que a notícia leve a coletividade a concluir pela culpabilidade do acusado antes do pronunciamento judicial. Não é justo que se inverta, na mente das pessoas, a ordem das coisas, e a sentença seja passada antes mesmo da instauração do procedimento preliminar ou preparatório de ação penal, a cargo da autoridade policial.
E mais: se os fatos não são levados a julgamento, cria-se a suspeita de que a Justiça faz parte de conluio para acobertar o pretenso crime. Jamais percamos de vista que, entre os direitos e garantias fundamentais de nossa Constituição, encontra-se inscrito que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (NAVES, 2003, p. 7-8, grifos no original).
Corroborando a posição do editorial, aqui o magistrado afirma a prerrogativa da anterioridade da Justiça no ato de julgar.35 A “invasão” desta seara pela imprensa e a reivindicação do monopólio da competência legítima demonstram uma tentativa de relativo fechamento da instituição judicial em relação às injunções externas, representadas aqui pelas interferências dos jornalistas, na sua busca por uma autonomia formal. Para tanto, Naves (2003, p. 8) avança o postulado da presunção de inocência que, para ele, é “eterno, universal e imanente”. Este tipo de tomada de posição revela uma configuração relativamente diversa daquela observada por alguns autores em relação ao período recente, que colocam o acento na convergência de interesses entre judiciário e imprensa.
Uma vez mais, esse tipo de configuração tem efeitos nas interpretações das práticas e concepções profissionais dos jornalistas. Em particular, ela fomentou discussões sobre o chamado “jornalismo sobre investigações” — isto é, o jornalismo que, em vez de produzir informações exclusivas, passa a depender de dossiês e desdobramentos de investigações efetuadas por outros atores e instituições, a ponto de se conceber a existência de uma “relação simbiótica com as fontes” (FERNANDES, 2011, p. 217). Nascimento (2010, p. 57), dedicado especificamente a diagnosticar as causas desse fenômeno, analisa uma série temporal de reportagens em revistas de projeção nacional, e afirma que “foi justamente a partir do começo da redemocratização que o jornalismo investigativo se firmou como uma tendência na imprensa brasileira”. O crescimento da presença das investigações de outras instituições nas reportagens jornalísticas “de segunda mão” se deu, segundo o autor, a partir do início dos anos 2000, com destaque para o ano de 2002. As características dos promotores e procuradores os transformam então numa “superfonte jornalística” (NASCIMENTO, 2010, p. 82), mais do que os políticos e fiscais de outros órgãos do governo. Esse tipo de diagnóstico encontra eco nas próprias percepções dos jornalistas, no seu cotidiano. Mais do que as transações entre jornalistas, magistrados, procuradores e policiais que envolvem trocas de informações, documentos, dicas, para alguns há uma certa “cultura” em pleno desenvolvimento, que muda substancialmente o tipo de postura que estes agentes passam a ter em relação à política, e que encontra ressonância nas próprias expectativas do público relativamente a uma moralização da política.
Eu acho que [o desenvolvimento do jornalismo investigativo] acompanha o crescimento dos órgãos de fiscalização e controle, não só no sentido de que eles abastecem o jornalista, mas de que se criou uma cultura da investigação, da denúncia, que é uma cultura que talvez, 40 anos atrás, não existisse [...]. Hoje existe uma cultura, de um político ter a vida devassada... que talvez antes não tivesse. O fato é que hoje tem, e as pessoas esperam isso (Entrevista).
Ao se comparar, em linhas gerais, o contexto da época do seminário promovido pelo CEJ e o momento recente, a partir principalmente do conjunto das entrevistas, é possível observar uma relativa mudança de cenário. Se, por um lado, a tônica anterior era a de um marcado conflito de competências relativamente à capacidade legítima de julgar os agentes políticos e econômicos, os dados obtidos permitem inferir que a proximidade e cooperação entre profissionais situados em diferentes esferas, com ênfase para os jornalistas e membros do Ministério Público e do Judiciário, se mostram muito mais frequentes e intensas.36 A partir dessa constatação, pode-se avançar a hipótese de que a modificação do padrão geral das relações entre imprensa e judiciário que se deu ao longo dos anos 2000 está relacionada à “emergência de um ativismo em torno do controle punitivo dos agentes políticos” (ENGELMANN, 2017, p. 305).
A “Operação Lava Jato” (considerada como tendo desencadeado “o maior escândalo de corrupção já investigado no Brasil”), entre outros efeitos, desnudou disputas intestinas na mais alta corte de justiça do país, assim como deu lugar a reconversões de recursos de poder e passagens entre os espaços jurídico e político (ENGELMANN; PILAU, 2021, p. 16). Para os propósitos deste texto, o caso da Lava Jato se apresenta como paradigmático das tendências observadas quanto à relação entre jornalistas e operadores do direito, ao fomentar e/ou tornar mais evidentes os fluxos e os múltiplos usos dessas relações e seus subprodutos (matérias jornalísticas e peças jurídicas, principalmente) na busca pela (re)legitimação do jornalismo na “esfera pública”.
Seguindo as indicações de Dobry (2009), para compreender o que está em jogo, para os jornalistas, no contexto da cobertura da Lava Jato, é preciso indicar pelo menos dois condicionantes situacionais próprios ao métier. O primeiro é a já mencionada “corrida pelo furo”, que pode levar os jornalistas a avaliarem determinados fatos como dignos de denúncia pública, ou a se sentirem impelidos a noticiá-los, já que “todos mundo está dando”.37 O segundo condicionante refere-se às frequentes defasagens que existem entre diretrizes editoriais de veículos de imprensa e as concepções, posições ou preferências pessoais dos jornalistas que trabalham para eles. Embora se possa estabelecer correspondências entre umas e outras, este ajustamento nem sempre se dá, e sua ausência é por vezes destacada como uma virtude do veículo, que contrataria seus profissionais exclusivamente por sua competência, independentemente de outros aspectos, como posicionamentos políticos. Essa disparidade, e os possíveis conflitos daí decorrentes, tendem a impelir os jornalistas a noticiar determinado fato, ou, ainda, a noticiá-lo a partir de um enquadramento específico, e isto apesar de suas crenças, valores ou disposições38 (DOBRY, 2009, p. 113-114). Além destes dois condicionantes, cumpre ainda destacar o quanto as denúncias e revelações que contam com protagonismo dos jornalistas contribuem para sedimentar notabilidades (MARCHETTI, 2001) e retroalimentar as transações colusivas em questão, na medida em que elementos novos descobertos pela imprensa foram incorporados ao escopo da operação, gerando novos desdobramentos que foram então uma vez mais cobertos pela imprensa.
Como apresentado acima, existe uma discussão no interior do jornalismo a respeito da perda de protagonismo da imprensa em investigações de impacto junto às instituições políticas. A concepção otimista de que a mídia foi anteriormente capaz de “fazer e desfazer” um presidente (LATTMAN-WELTMANN, 1994) deu lugar a leituras mais obscuras a respeito do futuro da profissão, tanto pela crise do modelo de negócios da imprensa tradicional39 quanto pelo desafio lançado aos jornalistas pela autonomização do sistema de justiça no país.
Durante um seminário anual organizado pela ABRAJI, no ano de 2016, uma das mesas se dedicava exatamente a apresentar casos de sucesso na cobertura da Lava Jato, ou seja, momentos em que os jornalistas conseguiram “furar” a operação, revelando fatos, histórias e personagens que os encarregados da operação ainda não tinham conhecimento. Estes eram considerados, naquela ocasião, como momentos em que o jornalismo não foi pautado pela “força-tarefa”, provando que a imprensa, apesar da disparidade de armas relativamente aos instrumentos de que dispõe a justiça, seria capaz de ainda ter protagonismo em investigações. Remetendo à oposição entre o “verdadeiro” jornalismo investigativo e o “jornalismo sobre investigações”, o mérito do profissional residiria na capacidade de mostrar “como o jornalismo conseguiu andar lado a lado com a Lava Jato”, sendo este textualmente o nome da mesa mencionada. Constituída em grande parte por estudantes de jornalismo, a audiência presente esperava então ouvir dos repórteres convidados os bastidores das matérias que fizeram, os “truques”, atalhos e anedotas sobre as respectivas coberturas.
Um dos componentes da mesa era jornalista da revista Veja, e ganhou notoriedade na cobertura jornalística da operação quando publicou uma reportagem em 2014 que revelava a compra, por meio de uma empresa sediada no Uruguai, de um apartamento na cidade do Rio de Janeiro por parte de Nestor Cerveró, um alto funcionário da Petrobrás à época. Outra reportagem, sobre o mesmo caso e de autoria do mesmo jornalista, seria publicada em 2015. As duas reportagens foram utilizadas pelo MPF na denúncia apresentada junto à Justiça Federal, e uma delas consta no conteúdo da sentença proferida contra o réu. Em função da revelação dessa transação ilegal, Cerveró foi condenado em 2015 a cinco anos de prisão pelo crime de lavagem de dinheiro.40
O caso dessa cobertura permite vislumbrar uma série de aspectos relativos ao relacionamento de um jornalista com suas fontes em geral, e com operadores do direito em particular. Aqui são apenas indicados alguns elementos que demandam análises posteriores. O primeiro deles é relativo à pressão pela publicação de matérias exclusivas antes dos concorrentes. Na sequência da primeira matéria publicada sobre Cerveró, o jornalista recebeu no seu local de trabalho um dossiê enviado anonimamente, composto por trocas de e-mails do então diretor da Petrobrás com uma série de pessoas, e que comprovavam a ilegalidade da aquisição do apartamento. Após, mediante contato com o advogado de Cerveró (que já conhecia de outras coberturas), conseguiu se encontrar pessoalmente com o então acusado, ocasião em que lhe apresentou os e-mails aos quais tinha tido acesso. O jornalista saiu da conversa com a expectativa de que Cerveró se tornasse sua fonte, ajudando-o a chegar a outros “furos” em meio às investigações da Lava Jato. Em face dessa possibilidade, adia a publicação da segunda matéria, onde apresentaria os e-mails e “cravaria” que o apartamento, que constava como sendo propriedade da empresa Jolmey, era na verdade de Cerveró. A decisão de “segurar a matéria” foi questionada pelos presentes na mesa, pois, para os jornalistas, a publicação de um furo de repercussão nacional não pode ser adiada, sob pena do veículo ser “furado” pelos concorrentes.41 A aposta na colaboração de Cerveró com o jornalista não se concretizou, e, após a sua prisão, é publicada a segunda matéria.
Como dito, essa cobertura é citada em uma das condenações de Cerveró. Durante audiência no âmbito do processo, o acusado questionou o fato de a denúncia do MPF ter por base a primeira das duas reportagens, ao que se segue as palavras do juiz responsável na sentença, que sinaliza para a legitimidade da cooperação entre imprensa e judiciário na revelação de malfeitos por parte de autoridades públicas.
A única verdade na afirmação [de Cerveró] é que o fato foi revelado originariamente em reportagem de revista de relevante circulação nacional (Revista Veja, “Negociata permitiu que Cerveró morasse em imóvel de R$ 7,5 mi”, de 06/09/2014). Não se vislumbra qualquer demérito na origem da revelação, não sendo o jornalismo investigativo um mal a ser censurado, muito pelo contrário, constituindo um dos elementos que conferem vitalidade à imprensa livre e que permitem maior controle dos governantes pelos governados. Rigorosamente, na história brasileira, há diversos exemplos de casos criminais relevantes e posteriormente submetidos às Cortes de Justiça que tiveram seu impulso inicial ou que receberam auxílio posterior em publicações da imprensa.42
O segundo elemento a ser destacado é a já mencionada retroalimentação nestas transações entre jornalistas e operadores do direito no contexto de investigações de atentados à probidade pública. Embora não se possa pressupor que este circuito de trocas seja a regra, o caso em pauta representa bem este ponto. Após as publicações, o jornalista foi chamado a Curitiba — “de forma até muito humilde43” — pelos procuradores da operação, para que ele apresentasse o conjunto de provas de que dispunha e que embasaram as suas reportagens.
A cooperação do jornalista com os procuradores de Curitiba continuou para além do “caso Cerveró”, como indicam diálogos com um procurador da Lava Jato, datados de abril de 2015 a junho de 2016 e obtidos por meio da chamada “Operação Spoofing”. Segundo matéria publicada no Conjur,44 o jornalista teria assumido uma postura ativa ao fornecer documentos e fazer pedidos a um dos procuradores, como quando buscou auxílio em um caso que envolvia um senador da República: “Assim como eu colaborei lá atrás entregando todos os e-mails do Cerveró para vocês, por favor, peço essa ajuda para desmontarmos essa farsa”. O procurador teria feito uma brincadeira em determinado momento desses diálogos, ao dizer que o jornalista já poderia entrar para o Ministério Público.45 Em entrevista, o jornalista expôs a sua forma de se relacionar com as fontes, particularmente a sua “colaboração ao inverso” (isto é, auxílio aos procuradores) com os membros da Lava Jato no âmbito do “caso Cerveró”:
[...] nesse trato com fonte, uma das coisas que eu acho que [é importante] é tentar também fornecer informações pra essas pessoas [agentes judiciais, policiais, etc.], que é uma forma também importante de colaborar. Eu já tive, em vários momentos de matérias minhas, informações que eu não podia publicar, que eu não tinha como provar, mas se usa essa informação pra abastecer um promotor que tem instrumentos que eu não tenho [...]. Se eu tenho uma informação que pode ajudá-lo… Em muitos momentos, a partir do momento em que ele é abastecido, ele vai, faz um procedimento formal e tem acesso a alguma coisa que eu jamais teria e, “pum!”, a minha informação tava certa. E, portanto, eu colaborei ali e possivelmente eu vou ter essa exclusividade aqui, porque fui eu que dei aqui pra ele uma possível informação que gerou a ele uma prova. Então, eu acho que no jornalismo investigativo essa questão da colaboração da imprensa com algumas investigações é muito importante. E aí a imprensa tem que ter uma responsabilidade grande, porque em alguns momentos um promotor, um delegado, pode tá fazendo uma investigação em que ele te fala as coisas, e o jornalista tem que entender uma coisa chamada “sigilo” em alguns momentos... É o seguinte: eu tô sabendo que ele tá escutando alguém e tal. Eu não posso divulgar aquilo porque eu vou acabar com a investigação dele, então tem que ter uma responsabilidade aí [...]. Então, eu tô indo mais pelo lado da colaboração ao inverso [...]. Quando eu fiz a matéria do Cerveró, eu recebi aqui um monte de e-mails, de maneira anônima [...], e aí o Ministério Público me chamou lá, e aí me pediu os e-mails. Só que o procurador, Deltan Dallagnol, falou assim: “Pô, mas eu não posso pegar esse e-mail e botar no inquérito. Eu preciso ver o endereço e pedir a quebra, pra aí ter de forma oficial esses e-mails”. Mas foi graças a levar os e-mails lá e ele ver qual era o e-mail lá... E aí, obviamente, tendo a noção de que tudo isso [colaboração] tem que ser feito com algum distanciamento [...]. Eu já tive milhões de casos em que eu fiz denúncia de pessoa com quem eu falava. Tem um determinado momento que tem que descolar [...]. As pessoas confundem um pouquinho o que é o nosso trabalho (Entrevista).
Nesse circuito de trocas de dádivas (BOURDIEU, 1996) está em jogo expectativas mútuas que são próprias aos universos profissionais dos quais os agentes fazem parte. No caso, há uma ideia de lealdade tácita que parece reger parte dessas transações: na medida em que o jornalista proativamente forneceu informações e elementos de prova para além do “caso Cerveró”, havia a expectativa, fundada nas pressões próprias ao jornalismo, de que o jornalista tivesse exclusividade na cobertura dos desdobramentos que aquelas informações fornecidas pudessem vir a ter. Ao mesmo tempo, o recurso aos jornalistas e à mídia em geral foi muito frequente por parte dos membros da operação, com recorrentes coletivas de imprensa e entrevistas. Na leitura feita por muitos jornalistas entrevistados durante o período de incursões a campo, reforçada quando das observações in loco durante o evento da ABRAJI, a Lava Jato teria o mérito de representar uma espécie de “modelo de transparência”, na medida em que o desenrolar dos trabalhos no âmbito do MPF e da vara de Curitiba era tornado acessível para jornalistas e para a opinião pública com agilidade.46 Nas palavras do jornalista aqui tratado, durante sua apresentação na mesa:
[...] às vezes tem esse debate, que às vezes é até um pouco repetitivo, de “Ah, mas porque o Sérgio Moro vaza...”. Não é vazar. É um princípio básico do processo, ele torna público o processo. Acho que essa é uma das diferenças da Lava Jato: boa parte dos processos estão sendo tornados públicos. Só fica sigiloso o que pode comprometer uma investigação. Então, não é que há um vazamento…
O último elemento a ser indicado é a supracitada capacidade dessas transações contribuírem para a construção de reputações. Para o caso do jornalismo, dada a fluidez do recrutamento profissional e as fronteiras imprecisas que o demarcam de outras atividades, as retribuições extraídas do protagonismo na revelação de “escândalos” não são negligenciáveis, e frequentemente são decisivas para o desenrolar da carreira (convite para veículos maiores, para posições de chefia, palestras, e assim por diante). Em síntese, essa concepção carismática da profissão (CORADINI, 1997, p. 460) faz com que o furo seja perseguido não apenas por diretrizes editoriais, mas pelos lucros materiais e simbólicos que podem ser obtidos. Nesse sentido é que pode ser melhor compreendido o fato de o jornalista ter encarado a citação da sua reportagem na sentença de Nestor Cerveró como um “reconhecimento do Moro” ao seu trabalho47: o prestígio atribuído aos operadores do direito envolvidos na operação era de certa forma convertido em notoriedade para esses jornalistas que, cobrindo a Lava Jato, conseguiram atrair as atenções destes agentes para elementos exclusivos, e assim colaborar nas investigações.
Junto ao capital de relações sociais acumulado por meio da atuação profissional, é preciso considerar ainda, nessas empresas de moralização da política, a existência de diferentes formas e em graus variados de um certo “idealismo” que permite a estes agentes se elevarem acima do simples exercício profissional (DEZALAY; GARTH, 2002, p. 53). A atuação no sentido do desvelamento de casos pode ser considerada como um aspecto do engajamento profissional. De igual modo, não se pode esquecer os lucros que a conformação a regras ou crenças procura a esses jornalistas. Ou seja, se apresentar enquanto jornalista “investigativo” e se engajar a defesa dos valores “nobres” da profissão, dos seus poderes ou virtudes que são associados a princípios universais identificados à democracia (como a transparência, a probidade, entre outros), é uma tomada de posição que faz parte dos esforços mais gerais para a legitimação de si e para a adequação à “verdade ideal do grupo” (BOURDIEU, 1996, p. 218).
Bezes e Lascoumes (2005, p. 776) ressaltaram o quanto os julgamentos sobre a política e o lugar concedido à dimensão moral passam pela experiência profissional dos agentes. Como tentou-se demonstrar ao longo do artigo, a atuação profissional e os valores caros a uma representação ideal do métier condicionam a entrada em cruzadas pela moralização e reforma das instituições políticas.
A partir da análise de contextos práticos de ação, o artigo buscou então avançar no sentido de dar maior relevo para os jornalistas e os meios de comunicação em diferentes esforços de pedagogia moral (BRIQUET, 2009) relativamente aos agentes políticos. A mobilização para a constituição de um marco legal em torno da transparência (com atuação destacada de jornalistas com forte circulação internacional e relação com organismos estrangeiros), a confluência entre causas profissionais e engajamento em organizações da “sociedade civil” e as flutuações em torno do protagonismo em investigações e na revelação “escândalos” são exemplos, entre muitos outros, que permitem apreender como e em quais bases se constituem as redes de relações que os jornalistas estabelecem com autoridades públicas promotoras de operações anticorrupção. O engajamento no aprimoramento de dispositivos jurídicos de controle da atividade estatal (caso da LAI) evidencia, inclusive, uma faceta da atuação de jornalistas pouco considerada nos estudos do campo da comunicação.
Desde o início dos anos 2000, observa-se no Brasil a multiplicação de mobilizações em diferentes frentes que convergem para a deslegitimação dos representantes políticos e para uma ideia de “boa governança” alicerçada em prescrições internacionais. A deslegitimação da política se dá em paralelo a estratégias de legitimação por parte dos agentes envolvidos na “luta contra a corrupção” no Brasil. Essas estratégias estão ligadas a deslocamentos nas formas de intervenção no espaço político. No caso dos operadores do direito, tem-se a passagem de um perfil ancorado na defesa da Constituição e da expansão dos direitos sociais para um punitivismo dos agentes públicos (ENGELMANN, 2017, 2021; ENGELMANN; PILAU, 2021). Já no caso dos jornalistas, está em jogo a reconquista de uma relevância no “espaço público”, progressivamente erodida pela autonomização das instituições judiciais e incremento dos seus instrumentos de investigação, bem como pela concomitante precarização das condições de trabalho.
Apesar do enfraquecimento do seu protagonismo na revelação de atentados à probidade pública, é preciso considerar que os jornalistas não são meros intermediários instrumentalmente acionados por agentes judiciais, nem que os meios de comunicação são passivos nessas colusões. Se, concordando com Marchetti (2001, 2010), o espaço jornalístico se torna cada vez mais estratégico nas lutas políticas, é porque ele retraduz a seu modo e a partir de condicionantes que lhe são próprios, as disputas que têm lugar em outros universos sociais.
Por fim, na mesma linha já indicada por Roussel (2002), é preciso romper com o discurso corrente que avança a existência de uma agenda coesa que uniria elites jurídicas e jornalísticas contra a “classe política” no período recente: o registro simplificador do “complô midiático-judicial” constitui um obstáculo a ser superado para a compreensão dos mecanismos de produção de “escândalos” políticos. Parece-nos que uma das vias para isso é investir no estudo da divisão do trabalho de denúncia (em nível nacional e internacional) que envolve confluências eventuais segundo as conjunturas, mas também profundas tensões geradas pela apropriação de ideias, modelos e concepções dos respectivos métiers e, consequentemente, pela recomposição das posições ocupadas por jornalistas/meios de comunicação e operadores do direito/instituições judiciais no espaço do poder nacional.
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Em Silva (2013), encontra-se um balanço relativamente recente da produção nacional e internacional sobre o tema.↩︎
Sobre a realidade e limites da contribuição das mídias para a difusão de percepções negativas da política, ver Gaxie (2003).↩︎
Apesar de não se limitar a elas, as observações de Dobry (2009) tomam como referência principalmente as democracias ocidentais, nas quais a política tem condições de se legitimar enquanto tal (BADIE, 1994, p. 141-178; BOURDIEU, 2006, p. 191-219). Entretanto, dinâmicas periféricas caracterizam-se por fronteiras precárias ou mesmo inexistentes, os “setores” não chegando a se constituir enquanto tais. Logo, aquilo que para Dobry (2009) aparece como um tipo de troca relativamente marginal e dotada de estatuto sociológico próprio em relação ao conjunto das relações entre “setores”, aqui tende a apresentar um nível de generalidade muito maior.↩︎
Sobre os lucros materiais e simbólicos do “interesse na virtude”, ver Bourdieu (1996, p. 221).↩︎
Para um estudo sobre as críticas endereçadas aos agentes políticos por parte de diferentes categorias de “profanos”, ver Gaxie (2001).↩︎
Sobre a diversidade das percepções dos cidadãos comuns sobre atentados à probidade pública, que muitas vezes recorrem a julgamentos baseados em binômios como justo x injusto, aceitável x inaceitável, legítimo x ilegítimo, ver Bezes e Lascoumes (2005, p. 781). Sobre a distribuição desigual da indignação ética, ver Bourdieu (2014, p. 374).↩︎
Para uma apresentação do desenvolvimento de um “sistema nacional de integridade” por parte do Estado brasileiro e o lugar da CGU nesse sistema, ver Corrêa (2011).↩︎
Sobre o protagonismo das ONGs enquanto atores centrais da globalização, que contribuem para estabelecer e aplicar standards globais relativos às liberdades civis e à corrupção econômica, ver Guilhot (2005). Sobre a criação da Transparência Internacional e seu lugar em empresas de moralização dos negócios e nas lutas pela governança da mundialização, ver Coeurdray (2004).↩︎
A despeito da aprovação da lei, muitos dos pedidos de acesso feitos por jornalistas ainda são negados, ou atendidos com bastante atraso, o que respalda diagnósticos na profissão de que a “militância pela transparência” deve ter continuidade face a opacidade com a qual os poderes públicos ainda atuam.↩︎
Entre elas está a Freedom of Information Act (FOIA), que foi objeto de uma campanha liderada por jornalistas e meios de comunicação para a sua aprovação e expansão (na esteira dos Pentagon Papers e do “caso Watergate”). A FOIA era a grande referência normativa que animava as discussões em torno da aprovação de uma lei semelhante no Brasil.↩︎
Mais detalhes sobre a criação, composição e atuação da associação podem ser encontrados em Lima (2019).↩︎
A Article 19 chegou mesmo a disponibilizar, em seu sítio eletrônico, um modelo de projeto de lei para auxiliar países que quisessem implementar leis de acesso.↩︎
A ABRAJI hoje em dia faz parte também da International Freedom of Expression Exchange (IFEX), uma rede global composta por mais de 70 ONGs que milita e advoga em prol do direito à liberdade de expressão. Além desse movimento internacional envolvendo uma série de ONGs, Angélico (2012, p. 94-96) vê outros dois acontecimentos internacionais que influíram para que o Brasil passasse a integrar foros internacionais de debate sobre transparência e liberdade de expressão: o primeiro seria a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, em dezembro de 2010, condenou o Brasil pelo desaparecimento de 62 pessoas no período da ditadura, alegando que o país violara a Convenção Interamericana de Direitos Humanos devido a “falta de acesso a informações”; o segundo teria sido a Open Government Partnership (OGP): lançada em 2011, paralelamente à 66ª reunião da Assembleia Geral das Nações Unidas, a OGP era capitaneada pelos EUA, que convidaram o Brasil para coliderá-la em parceria, sua tarefa consistindo em convidar diferentes países para que estes apresentassem planos de ação que aprimorassem a transparência no plano doméstico.↩︎
Associação Nacional de Jornais (ANJ), Associação Paulista de Jornais (APJ) FENAJ (Federação Nacional dos Jornalistas), além da própria ABRAJI.↩︎
Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ministério Público Democrático (MPD), Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas (ABRAT), Associação Latino-Americana de Advogados Trabalhistas (ALAL) e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA). A alta incidência de associações ligadas ao direito do trabalho confirma a tendência observada por Engelmann (2006a e 2006b) quanto ao engajamento desses operadores do direito em causas coletivas.↩︎
Graduado em Jornalismo pela Universidade Metodista de São Bernardo do Campo (1985), Rodrigues trabalhou durante 27 anos na Folha de S. Paulo, ocupando a posição de correspondente internacional em diferentes momentos e cidades ao longo do período (Nova Iorque, Washington e Tóquio). Em 1987 conclui um mestrado em Jornalismo Internacional pela City University, de Londres. Manteve um blog de política no portal UOL por 16 anos, quando o deslocou para o portal do Poder 360, seu próprio veículo. Entre 2007 e 2008, foi fellow na Universidade de Harvard, com recursos oriundos de uma bolsa da Nieman Foundation for Journalism. Sua circulação internacional pode ser vislumbrada ainda pelo fato de que Rodrigues participou da criação de entidades que hoje estão à frente da promoção do jornalismo “investigativo” em nível global, como o International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ) e a Global Investigative Journalism Network (GIJN). Pelo ICIJ, Rodrigues participou de investigações transnacionais envolvendo vazamentos de grandes bases de dados (“Swissleaks”, “Panama Papers” e, mais recentemente, “Pandora Papers”) que contribuíram para a acusação e condenação de inúmeros agentes dos mundos político e empresarial em vários países. Ganhou um prêmio Jabuti (em coautoria) por um livro-reportagem sobre os “anões do Orçamento”, além de três prêmios Esso, um deles sendo na categoria “Melhor contribuição à imprensa”, pela iniciativa de criação do site “Controle Público”, que disponibilizava informações de interesse público que, dadas as características das instituições estatais brasileiras, tinham seu acesso dificultado.↩︎
Expressão aqui utilizada seguindo o entendimento de Dezalay e Garth (2002, p. 16), que consideram o comprador como um intermediário que “pode invocar a autoridade de um saber estrangeiro para ser mais confiável junto a seus compatriotas, suplicando para que esses discursos cosmopolitas considerem mais as especificidades de uma história nacional da qual ele se faz o porta-voz”.↩︎
O caráter multifacetado dos capitais detidos por Rosental Calmon Alves favoreceu a sua implantação bem-sucedida no contexto universitário dos Estados Unidos e sua centralidade nos processos de importação-exportação e legitimação de esquemas de entendimento relativos inseparavelmente ao jornalismo e à democracia nos moldes norte-americanos. Ex-repórter no Brasil e radicado nos Estados Unidos desde 1990, Alves criou em 2002 (a partir de um grant da Knight Foundation), o Knight Center for Journalism in the Americas, instituição que visa melhorar os padrões profissionais e éticos do jornalismo na América Latina e no Caribe, oferecendo cursos e treinamentos, além de promover a criação e integração de entidades de jornalistas na região. Foi um ator decisivo na fundação da ABRAJI, ao se esforçar para trazer para o Brasil o modelo da Investigative Reporters and Editors (IRE). Sua atuação voltada para a modernização do jornalismo e incremento dos standards democráticos nos países do Sul faz com que Alves seja considerado “um benemérito do jornalismo em termos globais”. Maiores detalhes sobre os recursos, inserções e formas de atuação de Rosental Alves podem ser encontrados em Lima (2019, p. 123-150).↩︎
Na mesma época em que era criado o Fórum, foi instituído, no âmbito da Controladoria-Geral da União (CGU), o Conselho da Transparência Pública e Combate à Corrupção, um conselho-consultivo composto por dez membros do poder público federal e dez membros da sociedade civil (entre eles, Cláudio Weber Abramo), que formou um grupo de trabalho que tinha por tarefa aperfeiçoar o texto inicial a ser apreciado e votado. Antes do envio do PL ao Congresso, o texto de autoria do Executivo foi amplamente debatido no âmbito deste conselho.↩︎
Como destaca Coradini (2017, p. 70), as estratégias que permitem legitimar o interesse no “direito de acesso” como uma causa a ser defendida geralmente são proclamadas publicamente em nome de regras e valores morais que frequentemente remetem a redefinições de questões com origem em grandes burocracias internacionais.↩︎
Mais recentemente, outro investimento sinaliza no mesmo sentido: uma especialização em Direito, Economia e Negócios.↩︎
Foi ainda gerente da ABRAJI durante a primeira gestão da ONG.↩︎
Roberto Livianu é procurador de justiça criminal de São Paulo desde 1992, dedicando-se especificamente à “luta anticorrupção” a partir de 1996. Graduou-se em Direito pela USP (1990) e defendeu tese de doutorado em Direito na mesma instituição (2004), sob orientação de Miguel Reale Jr., um dos juristas que tomou a frente na denúncia que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Intitulada “Controle penal da corrupção”, sua tese foi publicada posteriormente em livro (Corrupção e direito penal: um diagnóstico da corrupção no Brasil, Quartier Latin, 2006; publicado também em Portugal pela Coimbra Editora, em 2007). Outros livros publicados por Livianu atestam o seu interesse continuado pelo tema da corrupção. Dentre eles, destacam-se: Corrupção: incluindo a nova Lei Anticorrupção (Quartier Latin, 2013), A corrupção na história do Brasil (Mackenzie, 2019) e a organização do livro Justiça, cidadania e democracia (Scielo — Centro Edelstein, 2009). Entre 2012 e 2019, esteve vinculado à Procuradoria de Justiça de Direitos Difusos e Coletivos, além de ter sido, entre 2013 e 2015, presidente do MPD, associação componente do Fórum pelo Direito de Acesso a Informações Públicas. Foi ainda secretário da Federação de Associações de Juízes para a Democracia da América Latina e do Caribe. É professor das escolas superiores do Ministério Público de São Paulo e do Mato Grosso do Sul. Livianu é um dos operadores do direito que, em meio à “luta contra a corrupção” no Brasil, reconverteu recursos acumulados na sua atuação profissional para intervir no debate público, sendo recorrentemente convidado para participar de programas jornalísticos e se pronunciar sobre o tema. Além disso, é “articulista” dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, e colunista do portal Poder360 (fundado e dirigido por Fernando Rodrigues) e da rádio Justiça, do STF. Na condição de especialista no fenômeno da corrupção, ministra palestras dentro e fora do país.↩︎
www.naoaceitocorrupcao.org.br. Entre os financiadores e parceiros do INAC, constam instituições do sistema financeiro e iniciativa privada (Itaú, Federação das Câmaras de Dirigentes Lojistas do estado de São Paulo, grupo Aegea, Multiplan), instituições de ensino (Mackenzie), entidades filantrópicas (Instituto Betty e Jacob Lafer), movimentos e ONGs ligados à causa da transparência (Movimento Transparência Partidária, Transparência Internacional, Transparência Brasil), além do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial, que visa contribuir para a “integridade dos negócios” e para o desenvolvimento de relações adequadas entre o empresariado e o poder público (ibdee.org.br).↩︎
Sobre esse tipo de diagnóstico da política “tradicional” no Brasil, e como esse repertório se articula com estratégias de despolitização voltadas para o estabelecimento de uma concepção de “boa governança” calcada em preceitos técnicos e forjada em países centrais, ver Bento (2018).↩︎
Numa parceria com o JOTA e a Brazilian Legal Society, da New York University, foi inclusive criado o “Prêmio Não Aceito Corrupção”, que pretende estimular “a academia [...], jornalistas e gestores de empresas a aprofundar a discussão sobre conceitos e soluções práticas relacionadas à corrupção e seu combate no Brasil”, e contribuir “para a sensibilização, mobilização e a divulgação de conceitos relacionados ao tema”. Disponível: https://www.premionaoaceitocorrupcao.com.br.↩︎
Importante destacar que em geral essas trocas contam com amparo legal no Brasil, particularmente quanto à garantia do sigilo da fonte, para o caso dos jornalistas.↩︎
Para o caso italiano, ver também Musella (2001).↩︎
Sobre este ponto, consultar também a síntese elaborada pela mesma autora (ROUSSEL, 2009).↩︎
Ainda no âmbito do direito, o trabalho de Engelmann (2009) é importante no sentido de mostrar como a mobilização política da esfera judicial se intensificou, principalmente a partir do processo Constituinte de 1986. O que fundamentalmente estava em jogo era uma busca pela (re)legitimação do espaço jurídico no espaço mais amplo do poder de Estado, tendo em vista a perda de poder dos profissionais do direito no âmbito político e da gestão estatal, para segmentos com expertises mais ligadas à lógica do mercado, como os economistas. Esta retomada mostra-se bem-sucedida sobretudo na década de 1990, quando se reivindica o monopólio de um saber específico sobre o Estado, baseado na necessidade de “obedecer às leis” e “governar de acordo com a Constituição”.↩︎
Roussel (2002, p. 176) considera muito simplistas as visões que postulam alianças conjunturais entre justiça e imprensa e que se inscrevem num registro de estigmatização ou valorização. As leituras que veem nessas colusões o combate de “novos heróis da democracia” contra a corrupção política, ou, por outro lado, um “complô midiático-judicial” ilegítimo fazem parte dos afrontamentos e questões práticas dos “escândalos”. A autora explicita que esses registros valorativos dissimulam as diferenças que existem entre as lógicas de ação, a diversidade de interesses e as motivações de operadores do direito e jornalistas.↩︎
Assim, por exemplo, “uma parte da magistratura se inquieta com a violação generalizada do sigilo da instrução que as transações colusivas entre pessoas da imprensa e homens da lei sistematizam” (LEMIEUX, 2001b, p. 58)↩︎
Considerações sobre o peso da busca pelo “furo” na rotina do trabalho jornalístico podem ser encontradas em Néveu (2006) e Lima (2019).↩︎
Esse seria um dos principais efeitos do “denuncismo”, do qual os jornalistas buscam inclusive constantemente se distinguir nas suas estratégias de afirmação profissional e política. O “denuncismo” carregaria consigo não só o potencial de “assassinar reputações”, mas de levar a uma “autofagia do corpo político” diante da “plateia dos representados”, ameaçando a estabilidade política e econômica, assim como a legitimidade da democracia (ABREU; LATTMAN-WELTMAN, 2001, p. 8).↩︎
Esse tipo posição não se restringe a esse momento, nem aos membros do Judiciário. Os limites da atuação da imprensa e da sua capacidade “investigativa” é uma questão que segue animando debates no meio jornalístico, como se verá a seguir. Ver, por exemplo, a posição de Chagas (2005, p. 9).↩︎
Ao longo da pesquisa de campo, apesar da atenção dada a este problema e da busca por informações mais substantivas que permitissem avançar na análise, as ocasiões das entrevistas frequentemente não possibilitaram colocar esse tipo de questão, em parte pela premissa do sigilo da fonte, mas também porque, como já observado, parte dos efeitos de legitimação desse tipo de relações depende da sua ocultação ou dissimulação.↩︎
Estes são os casos em que, como regularmente se afirma, alguma pauta “domina o noticiário”, ou “atropela” outras, sem que se possa afirmar a existência de algum movimento deliberado por parte da “mídia” (entendida de modo reificado, como um coletivo homogêneo, dotado de uma “agenda”), ou que os jornalistas o façam de modo orquestrado, visando algum fim explicitamente postulado.↩︎
Sobre os condicionantes estruturais e as pressões externas sofridas pelo campo jornalístico, ver Bourdieu (1997), Néveu (2006) e Champagne (2016).↩︎
Para um diagnóstico recente sobre o cenário da profissão, ver Christofoletti (2019).↩︎
Em resposta, o jornalista afirmou que teve o aval do veículo: “[...] eu [...] avisei na redação que tinha estado com ele [...], eu não me aguentei e tive que falar na redação. Então falei que tinha os e-mails, e disse pra gente segurar um pouco. Esse foi meu discurso na redação: ‘Vamos ver o quê que ele pode fornecer pra gente. A gente já tem esses elementos aqui…’”.↩︎
Disponível em: www.conjur.com.br.↩︎
Palavras do jornalista na mesa do seminário da ABRAJI.↩︎
Disponível em: www.conjur.com.br.↩︎
A publicização dessas conversas deu lugar a críticas por parte de setores da imprensa, que consideraram que essa proximidade dos jornalistas que cobriam a Lava Jato com os seus protagonistas no âmbito da justiça seria “inaceitável” e “imprópria” (www.conjur.com.br).↩︎
Contudo, é importante destacar que o verso dessa transparência da operação seria, na visa dos jornalistas, a sobrecarga nas redações, que tinham que cobrir várias operações, processar grandes volumes de documentos, etc., em um contexto de esvaziamento das equipes, com sucessivas demissões em massa e acúmulo de funções nas coberturas. Isso tornaria ainda mais difícil contornar o “poder de agenda” dos membros da operação e oferecer um contributo exclusivo, produto de uma investigação protagonizada pela imprensa.↩︎
“[...] foi bem relevante pra mim essa coisa do próprio Sérgio Moro pegar e citar na sentença, que foi graças à reportagem que chegou-se àquela sentença” (Entrevista).↩︎
Resumo:
Este artigo visa contribuir para a
compreensão dos mecanismos por meio dos quais se empreendem “cruzadas”
de moralização da política no Brasil no período pós-redemocratização. A
ênfase recai sobre a atuação dos jornalistas “investigativos” e as
relações multifacetadas que estabelecem com agentes oriundos de outros
espaços, notadamente os operadores do direito. A partir de entrevistas
realizadas entre 2015 e 2016, são apresentados elementos que permitem
inserir as referidas “cruzadas” em um movimento mais amplo e complexo,
que envolve circuitos de importação-exportação de determinadas
concepções profissionais, institucionais e normativas que esposam
valores com pretensão universal relativamente à ordem social e política,
bem como estratégias de legitimação na “esfera pública” por parte dos
agentes em pauta.
Palavras-chave:
Críticas da política; cruzadas
morais; probidade pública; jornalismo; direito.
Abstract:
This article aims to contribute to the
understanding of the mechanisms through which “crusades” of moralization
of politics are undertaken in Brazil in the post-redemocratization
period. The emphasis is on the role of “investigative” journalists and
the multifaceted relationships they establish with agents from other
spaces, notably legal operators. Based on interviews conducted between
2015 and 2016, elements are presented that allow the insertion of the
aforementioned “crusades” in a broader and more complex movement, which
involves import-export circuits of certain professional, institutional
and normative conceptions that espouse values with a universal claim
regardind social and political order, as well as strategies of
legitimation in the “public sphere” by the agents in question.
Keywords:
Critiques of politics; moral crusades;
public probity; journalism; law.
Recebido para publicação em 21/02/2022
Aceito em 21/03/2022
ACESSO ABERTO
Copyright: Esta obra está licenciada com uma Licença
Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.