Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 2, jul./out., 2022
DOI: 10.36517/rcs.2022.2.d04
ISSN: 2318-4620

 

 

O Ministério Público Federal e sua “vocação” de combate à corrupção:
conflitos sociais e ideologia institucional

 

Milena Brentini Santiago OrcID
Universidade Estadual de Campinas, Brasil
milenabrentini@gmail.com

 

Introdução1

Através da alegoria de uma “guerra de todos contra todos”, Pinto et al. (2019, p. 110) buscaram explicar a multideterminação da crise brasileira “nos planos da acumulação, da cena política (sistema partidário, partidos e representação) e das instituições”, desde 2015. Atentos às razões de economia política para os desencadeamentos da crise — como a luta distributiva pela renda entre capital e trabalho, ou a radicalização das políticas de austeridade — os autores também destacaram um evento jurídico-político. A Operação Lava Jato foi descrita como “mecanismo” responsável pelo intencional desequilíbrio nas relações entre as diferentes frações da classe dominante entre si, bem como delas e o bloco no poder (PINTO et al., 2019).

É vasto o campo de autores que se debruçaram sobre as circunstâncias da crise. Por diferentes perspectivas das ciências sociais, foram analisados os arranjos sociais, os alinhamentos partidários e os diversos interesses de classe que contribuíram para o impedimento da presidente Dilma Rousseff, em 2016, bem como para a posterior ascensão política e eleição de Jair Bolsonaro ao Executivo Federal. Nestes estudos, o papel assumido pelas instituições do sistema de justiça ao longo da crise e a inserção dos agentes judiciais, nas lutas e conflitos de classes do período, foram temas fundamentais.

Nesse sentido, enquanto forma de ação jurídica orientada à intervenção no processo político, o combate da corrupção assumiu tamanha preponderância contemporânea nas lutas sociais, também, por uma confluência de fatores que antecederam esta crise e a própria Lava Jato.2 Um exemplo disso foi o fortalecimento das iniciativas e instituições nacionais de combate à corrupção, possibilitado pela ação dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). A criação da Controladoria-Geral da União (CGU), em 2001, a formulação da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), em 2003, e a adesão à Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, em 2006, estão entre essas ações.

Além de serem produtos da importação de políticas transnacionais anticorrupção (ALMEIDA, 2018; ENGELMANN, 2020), essas iniciativas, igualmente, dizem respeito às permanentes reformas gerenciais do Estado brasileiro pós-redemocratização que, nos primeiros anos da década de 2000, tiveram seus principais alvos no sistema de justiça e nas instituições de controle das funções do Estado. Considerando tais argumentos, o presente texto discutirá aspectos relevantes da agenda temática de uma dessas instituições, o Ministério Público Federal, que se tornou uma peça-chave no desencadeamento da conjuntura mencionada acima.

Os aspectos de análise preconizados por este artigo são: as históricas mobilizações corporativas dos membros da instituição frente à agenda do combate à corrupção, a reorganização de suas áreas temáticas em meados dos anos 2010 e algumas características da ideologia institucional desse combate.

Ministério Público e conflitos sociais

Nos estudos clássicos em ciências sociais sobre o Ministério Público,3 tradicionalmente mais abundantes na ciência política, o caráter sui generis de sua capacidade de inserção nos conflitos sociais é precipuamente analisado por abordagens teóricas que ressaltam três diferentes aspectos constitutivos desse objeto de estudos. Em primeiro lugar, tal como em Kerche (2010), é destacado o desenho institucional ímpar conferido ao MP na nova República. Em um entendimento complementar, estudos como o de Arantes (2002), investigam de que maneira, na defesa de prerrogativas profissionais robustas e competências alargadas, o engajamento político dos membros da instituição impacta o arranjo democrático nacional. Finalmente, com grande relevância do trabalho de Maciel e Koerner (2014), há análises voltadas à compreensão dos processos políticos nos quais se realizou essa construção institucional e suas transformações.4

Para além das perspectivas mencionadas, aliás, já bastante consolidadas, mais recentemente, a sociologia política do campo jurídico e da circulação internacional das ideias jurídicas tem ganhado destaque nos estudos da instituição. Nestes trabalhos, assim como naqueles focados na compreensão do processo político, a suposta autonomia técnica do direito em relação à política é problematizada (ALMEIDA, 2015; ENGELMANN; MENUZZI, 2020). Por fim, vertentes de estudos ainda pouco exploradas são as possibilidades de investigação da função ocupada pelo Ministério Público na organização do Estado capitalista no Brasil, bem como das condicionantes estruturais e racionalidades sociais que regem suas transformações históricas.

Em diálogo com as demais correntes explicativas, este último entendimento ajuda a qualificar as singularidades do Ministério Público, bem como de sua emergência e reconhecimento enquanto “instituição de combate à corrupção”, nos anos 2000. Deste ponto de vista, é preciso considerar que, com uma história relacionada à reorganização do direito estatal iniciada no Império, fruto das revoltas escravistas, o surgimento do Ministério Público tem como contexto a violenta repressão aos levantes populares. Em contraparte, reconheceram-se juridicamente demandas sociais, alterando-se a forma do Estado e da circulação econômica. Essas transformações tanto eram vigorosamente impelidas pelas lutas sociais da classe escravizada, quanto mitigadas pelo direcionamento dado à reorganização jurídico-política pelas classes dominante e emergente (SAES, 1985; KOERNER, 1998).

Entretanto, foi apenas nas primeiras décadas da República que o Ministério Público assumiu incumbências legais ligadas à atuação na mediação da unidade social, adquirindo uma função chave no rearranjo capitalista do Estado nacional como fiador da legalidade e garantidor de uma juridicidade formalmente moderna (capitalista), no âmbito penal. Significativamente, foi com o declínio da quarta República, durante a ditadura militar, que, embora menos independente em relação ao Poder Executivo, o órgão ministerial adquiriu mais importância e prestígio, bem como estruturas física e de ação ampliadas (ARANTES, 2002; MACIEL; KOERNER, 2014).

De acordo com Arantes (2002, p. 44 e 39), para além de o Ministério Público conseguir se “antecipar à transição democrática” como representante legítimo do interesse público, seus membros compartilhavam anseios com os mandatários da ditadura no que tange ao “controle da administração pública, especialmente dos casos de corrupção e de desobediência dos administradores às normas editadas pelos governos militares”. Assim, foi nas décadas de 1970 e 1980 que se multiplicaram as ferramentas e o ideário de combate à corrupção no MP, especialmente da corrupção política. Do mesmo modo, o incremento de atribuições e de poder conquistado no período contribuiu para que, no pós-ditadura, a instituição alcançasse tamanhas independência e credibilidade social, quando, inclusive, granjeou sua primeira Lei Orgânica Nacional (ARANTES, 2002).

Esse aporte institucional criou condições para que, ao final da ditadura e no processo de redemocratização controlada, o MP conquistasse importantes instrumentos de ação jurídica e, junto aos Constituintes, seus membros exercessem uma ativa militância. Desse modo, eles construíram teses na defesa de que a organização não estivesse submetida a nenhum dos Poderes do Estado, possuísse amplo escopo de atuação e prerrogativas equiparadas àquelas conferidas aos membros do Poder Judiciário.5 Ao longo do tempo, o Ministério Público acumulou atribuições que vão desde atividades investigativas na esfera cível até a defesa dos interesses das populações indígenas, fiscalização das polícias e da execução penal (LEMGRUBER et al., 2016).

Logo, na Constituinte, auge de sua “reconstrução institucional”, o Ministério Público assumiu o papel de representante independente e autônomo dos interesses e direitos da sociedade civil, recorrentemente considerada como hipossuficiente nas teses construídas pela instituição. Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 teria criado um corpo de agentes judiciais paradoxais, “com a independência típica dos órgãos judiciais inertes e neutros, porém destinado à ação política de defesa de interesses da sociedade, num quadro em que a lei, como o céu, é o limite” (ARANTES, 2002, p. 80).

Sob outro enfoque, no entanto, Maciel e Koerner (2014) constroem alguns contrapontos em relação à caracterização e avaliação de Arantes quanto à “politização” da instituição e à ação política de seus membros. A partir da análise de conjuntura da transição política, os autores consideram a liberalização controlada da estrutura judicial no final da ditadura, as relações tensas entre as cúpulas das carreiras jurídicas e o regime militar, bem como o associativismo dos membros do MP. Dentre os pontos abordados, eles destacam a conquista de legitimidade dos representantes da carreira junto aos movimentos em prol da democracia e a assimilação das pautas corporativas ao domínio mais amplo de reivindicações pelo Estado de direito, tal como pela conquista e expansão de direitos civis e políticos.

Não obstante, foi nesse cenário que, afora a autonomia política, financeira e administrativa conferida à instituição, seus membros conquistaram garantias de independência funcional e organização monocrática. Nesta conformação institucional sem hierarquia entre pares, a atuação individual de cada membro não se subordina ao mando de superiores ou chefias, razão pela qual toda a atividade do Ministério Público acaba dependendo “estreitamente do desempenho de seus integrantes” (CASTILHO; SADEK, 2010; SADEK, 2012, p. 256). Portanto, consoante a sistemática legal das diferentes áreas de sua competência, seus agentes podem alcançar alto grau de ação discricionária, sem contrapartida equivalente na prestação de contas de suas funções (KERCHE, 2007).6

Ainda, é preciso apontar que essa construção institucional foi atravessada por disputas internas ao MP, bem como em relação a outros atores sociais, comportando contradições e intercorrências do complexo processo político no qual se insere sua reestruturação (MACIEL; KOERNER, 2014). Com isso, toda a concepção de representação dos interesses sociais pelo MP, assim como as escolhas de atuação no combate à corrupção, carrega o legado de conflitos que extrapolam os limites institucionais. Um exemplo reside no fato de que a “primeira ação coletiva brasileira” (artigo 14, §1º da Lei nº 6.938/81), precursora da ação civil pública, foi conferida como instrumento de uso exclusivo do Ministério Público (ARANTES, 2002, p. 52).

Em consequência, ao travar disputas para instituir-se como protetor e representante da sociedade, decorreu que “o Ministério público estava disposto a se transformar no defensor desses novos direitos, nem que para isso tivesse que afastar a própria sociedade civil do seu caminho”. Sob essa ótica, Arantes analisa os projetos de lei que propunham a ação civil pública na década de 1980: em meio a várias propostas concorrentes, houve uma concertação entre representantes do Ministério Público e parlamentares defensores do fortalecimento desta instituição, “em detrimento do papel das associações civis na defesa judicial de direitos coletivos”, justamente em um período no qual a chefia do MP permanecia subordinada ao Poder Executivo (ARANTES, 2002, p. 54 e 59).

Por conseguinte, o desenho constitucional do Ministério Público, em 1988, não foi uma novidade em sentido estrito e nem mesmo uma ruptura. Na verdade, a renovação de suas atribuições foi uma consolidação das contendas políticas e das teses institucionais defendidas nas duas décadas anteriores que, em contrapartida, não podem ser exclusivamente resumidas a uma defesa de interesses corporativos (ARANTES, 2002; MACIEL; KOERNER, 2014). Por esta razão, guarda-se algumas divergências em relação a Kerche (2010, p. 116), que compreende esse modelo institucional como aberto à “politização interna”, ou a Arantes (2002, p. 13-17) para quem o “ativismo judicial” do MP o teria tornado um “agente político da lei”. Isso porque não se concebe que mudanças intrinsecamente institucionais ou uma atuação exclusivamente “técnica” das instituições jurídicas significaria sua correspondente despolitização, ou a necessária neutralização das estratégias de defesa dos interesses pessoais e de classe de seus membros.

Inevitavelmente, o Ministério Público brasileiro, instituição judicial de um Estado capitalista periférico, desempenha funções próprias da organização política e jurídica da dominação social. Logo, ao mesmo tempo em que cria e opera os mecanismos, os procedimentos e a linguagem intrínsecos à realização do direito — como forma de regulação social capitalista —, o MP atua nos conflitos sociais reivindicando representar a sociedade ‘como unidade’. Com isso, no desempenho dessa função, precisa construir mediações entre a técnica jurídica e as necessidades, expectativas e interesses — que portam fundamentos e causas sociológicos — de forças e agentes sociais diversos.

Consequentemente, expectativas normativas e justificativas formais não são suficientes para afastar as funções sociais ou as dinâmicas conflituosas (e seus fundamentos sociológicos) da atuação desses agentes estatais. A busca por aspectos de neutralidade no direito e nas instituições judiciais ante as lutas sociais, gera contradições em um terreno já minado por elas. Diante disso, referindo-se ao universo mais geral de intervenção política dos juristas, Almeida (2016, p. 72) contribui para esta discussão, ao argumentar que,

a redefinição das relações entre direito e política passa também pela redefinição das intervenções políticas dos juristas, agora reformuladas em termos técnico-profissionais, e de seus discursos políticos, reformulados como ideologias institucionais, doutrinas jurídicas e produção jurisprudencial; são essas redefinições que vão orientar concretamente os juristas em seu trabalho de classificação dos conflitos sociais em termos legais. No caso do combate à corrupção, essas redefinições são visíveis na produção bibliográfica especializada e na produção de discursos institucionais e manifestações públicas nos quais a redefinição do político e das práticas políticas é defendida por meios técnico-jurídicos ancorados no direito administrativo e no direito penal.

Nessa perspectiva, o desenvolvimento da técnica e da burocracia judiciais são resultantes de uma forma especificamente moderna de incorporação dos conflitos e lutas sociais nas estruturas de poder. Partindo dessa concepção, primeiramente, nota-se que os enfrentamentos politicamente orientados do MP se dirigiram pela busca do monopólio de ações judiciais e outros instrumentos de atuação, bem como pelas controvérsias com diversas instituições na conceituação doutrinária da noção de interesse público (MACIEL; KOERNER, 2014; ARANTES, 2002). Ademais, nessas disputas históricas travadas pelos membros do Ministério Público em sua reconstrução institucional, concepções jurídicas progressistas coexistiram (com) e constituíram substancialmente o papel exercido pelo MP nas dinâmicas de dominação política e social de uma época.

Além disso, esses empreendimentos refletem estratégias profissionais que compõem os interesses de classe desses agentes. Portanto, importa investigar de que modo e por meio de quais mediações isso ocorre. Para contribuir na compreensão da complexa inserção desses agentes nas lutas sociais, através do exercício profissional, é fundamental examinar as teses defendidas e teorias adotadas não só em sua prática judicial anticorrupção, mas, também, na atividade extraprocessual e extrajudicial. No que diz respeito especificamente ao objeto de análise deste artigo, propõe-se explorar uma das concepções doutrinárias presentes na produção de alguns membros do Ministério Público Federal: a vocação no combate da corrupção que decorreria da vocação de defesa dos interesses sociais. Antes, porém, é necessário contextualizar a dimensão organizacional de especialização dessa área de atuação institucional.

Gestão especializada do combate à corrupção no MPF: a 5ª CCR

Considerando o sistema de justiça brasileiro, o Ministério Público foi a instituição que mais se notabilizou ao reivindicar e assumir um verdadeiro protagonismo no campo do combate à corrupção, antes mesmo da deflagração da Operação Lava Jato. O próprio modelo de atuação no formato de força-tarefa (noção oriunda de formas de organização estratégica militares) e a inspiração na experiência italiana da Operação Mãos Limpas não foram exclusividade da Lava Jato, ou mesmo da FT-CC5 que atuou no Caso Banestado cerca de uma década antes.7 Segundo Arantes (2002), no final da década de 1990, o Ministério Público paulista foi pioneiro nesse tipo de ação com o Caso da Máfia dos Fiscais de São Paulo.

Entretanto, argumenta o mesmo autor, características do funcionamento do Poder Judiciário e a sistemática do direito brasileiro, no período, teriam sido os principais elementos responsáveis para que o MP só se destacasse verdadeiramente enquanto instituição de combate à corrupção nos anos 2000 (ARANTES, 2002, p. 158-159). Notadamente, a temporalidade dessa proeminência temática foi igualmente determinada por razões vinculadas às mudanças na conjuntura política e social brasileira, bem como ao surgimento de um movimento transnacional de combate à corrupção (ENGELMANN, 2020; ENGELMANN; MENUZZI, 2020).

Particularmente, até mesmo após sua reestruturação na Constituição de 1988, houve importantes modificações ligadas aos conflitos intra e extrainstitucionais no MP, das quais algumas sequer tiveram reflexos normativos diretos. Exemplificativamente, em relação ao ramo federal da instituição, em 2003, o exercício de sua chefia passou por uma maior autonomização em relação ao bloco no poder, com a primeira nomeação do Procurador-Geral da República (PGR)8 a partir de uma escolha prévia da categoria dos procuradores da República, no formato de lista tríplice apresentada pela Associação Nacional dos Procuradores da República, a ANPR (AXT, 2017, p. 165).9

Os efeitos dessa autonomização e da nova dinâmica entre o chefe do Ministério Público Federal e a cena política logo se fizeram sentir: em 2005, quarenta pessoas foram denunciadas pelo PGR Antonio Fernando de Souza — nomeado através da lista tríplice pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva —, dentre as quais grandes figuras do partido do governo, o PT, na ação penal nº 470. Mais popularmente conhecida como Caso Mensalão, a denúncia alegava ilegalidades em repasses de recursos públicos e atingia o Executivo federal de uma maneira que seria impensável anos antes, durante o período em que Geraldo Brindeiro, nomeado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, ocupou e foi sucessivamente reconduzido à Procuradoria-Geral da República (AXT, 2017).

Transformada em emblema de uma retomada à direita das manifestações de rua contra a corrupção,10 a atuação do MPF no Caso Mensalão reiterou a capacidade de ação dessa instituição que, conforme descrito acima, foi constitucionalmente desenhada para ser independente em relação aos poderes do Estado e competente para perseguir os ditos interesses públicos ou sociais. Por conseguinte, estudiosos do sistema nacional de justiça, como Sadek (2012), apontam singularidades incomuns no Ministério Público em relação a todas as instituições e órgãos incumbidos de monitorar, investigar e denunciar casos de corrupção no país.

Diante da extensa gama de incumbências previstas na legislação, e de sua possibilidade de ampliação, conforme permite o artigo 129, IX da Constituição Federal, o Ministério Público Federal passou a organizar sua atuação em áreas especializadas, buscando otimizar o desempenho de suas funções. Estruturadas pela cúpula institucional, cada uma dessas áreas é representada no organograma da instituição pelas Câmaras de Coordenação e Revisão, ou CCRs. As CCRs são órgãos colegiados e setoriais do MPF, organizados de acordo com as temáticas de atuação por função ou matéria. Com gestão orçamentária própria desde 2015 (Portaria SG/MPF nº 299), são compostas por três integrantes da carreira e respectivos suplentes, indicados a mandatos bienais pelo Conselho Superior do MPF (dois integrantes e respectivos suplentes) e pelo PGR (o membro que desempenhará a função de coordenador da Câmara e seu suplente).

Atualmente, há sete CCRs, incumbidas das seguintes temáticas: 1ª Câmara — Direitos Sociais e Fiscalização de Atos Administrativos em Geral; 2ª Câmara — Criminal; 3ª Câmara — Consumidor e Ordem Econômica; 4ª Câmara — Meio Ambiente e Patrimônio Cultural; 5ª Câmara — Combate à Corrupção; 6ª Câmara — Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais; 7ª Câmara — Controle Externo da Atividade Policial e Sistema Prisional. Em vista do princípio monocrático, citado acima, e para garantir unidade institucional, o principal objetivo desses órgãos é a gestão administrativa, que orienta, integra e revisa a atuação dos procuradores, procuradores regionais e subprocuradores-gerais da República nos âmbitos em que sejam competentes (BRASIL, MPF, 2014b).

Tais Câmaras podem funcionar destacada ou conjuntamente e suas atribuições foram estabelecidas na Lei Orgânica do Ministério Público da União. Dentre elas estão: harmonizar a atuação dos órgãos e membros da instituição, respeitando a independência funcional; promover interações e trocas com outros órgãos e instituições sobre as matérias de sua alçada; manifestar-se sobre arquivamentos e decidir conflitos de competência em inquéritos, feitos, procedimentos, peças de informação, bem como quanto às atribuições de seus membros (BRASIL, 1993, arts. 43 e 58-62).

No caso da Câmara responsável pelo combate à corrupção, suas atividades de revisão consistem em harmonizar e corrigir as atuações processual e pré-processual dos membros do MPF nessa temática, promovendo arquivamentos, apreciando “declínios de competência, conflitos de atribuições e remessas judiciais de inquéritos” (BRASIL, MPF, 2019, p. 66). Ainda, compete-lhe expedir enunciados de consolidação dos entendimentos jurisprudenciais internos. Já as atividades de coordenação são bastante amplas e envolvem orientações, apoio teórico e técnico, intercâmbios com outras instituições, além de intermediação em temáticas e matérias conexas entre as câmaras (atuação intercameral) (BRASIL, MPF, 2019).

Afora a expedição de notas técnicas, orientações, a homologação de acordos de leniência e colaboração premiada, a realização de eventos, a elaboração de projetos e o desenvolvimento de ferramentas de controle e intensificação do combate à corrupção, também compete às atividades de coordenação realizar estudos e produções teóricas, assim como promover o aprimoramento técnico e tecnológico do MPF sobre a temática. Com caráter preponderantemente técnico-jurídico, boa parte daquela sistematização teórica é realizada através dos Grupos de Trabalho (GTs). Instaurados no intuito de discutir e monitorar assuntos específicos dentro da temática geral, eles acompanham, entre outros, a alocação de recursos públicos e o cumprimento da legislação em políticas públicas, grandes eventos, licitações e repasses de recursos entre entes federados.11

Da mesma maneira, as Câmaras são as principais responsáveis por viabilizar as articulações internas e externas do Ministério Público Federal, como a participação dos membros da instituição em iniciativas nacionais e internacionais. No caso do combate à corrupção, estão entre elas a ENCCLA, mencionada acima, rede de articulação nacional criada em 2003 pelo Ministério da Justiça; o Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI/FATF), organização intergovernamental criada em 1989; e a Associação Iberoamericana de Ministérios Públicos (AIAMP), organização dos Ministérios Públicos da América Latina e países ibéricos, criada em 1954, mas, cuja rede de procuradores especializados no combate à corrupção se organizou em 2019.

Quanto a seu histórico, a 5ª Câmara de Coordenação e Revisão foi implementada com o escopo de defesa do patrimônio público e social pela subprocuradora-geral da República Ela Wiecko Volkmer de Castilho, que a coordenou no biênio de 1994 a 1996. Quando de sua criação e nos anos subsequentes, a noção de corrupção não constituía o vocabulário central do órgão, sendo que seu combate estava subordinado à atuação na proteção do conjunto de bens, direitos e valores atribuídos ao domínio da administração pública. Por conseguinte, o foco da 5ª CCR era sobretudo delimitado à atuação cível e administrativa contra a improbidade na gestão pública (BRASIL, MPF, 2003 a 2014).

Todavia, já no início da década de 2000, a ênfase do debate institucional sobre a proteção do patrimônio público começou a mudar. Com base nos relatórios de atividades publicados pela 5ª Câmara,12 2003 foi um ano significativo porque reuniu diversas atividades voltadas propriamente à discussão da corrupção. Estão entre elas o seminário intitulado “O Ministério Público no Combate à Corrupção em Defesa da Democracia”; as reuniões exclusivas para os membros discutirem os temas do seminário; e o concurso de monografias “O Papel do Ministério Público no Combate à Corrupção”, destinado à participação dos integrantes da carreira. As monografias vencedoras ganharam uma publicação no formato de livro, anos depois (BRASIL, MPF, 2004; ALBUQUERQUE, MEDEIROS; BARBOZA, 2006).

Já, em 2005, os procuradores demandavam parcerias e maior cooperação com outras instituições de fiscalização do patrimônio público e de combate à corrupção. Esta reivindicação se tornou tema do “VII Encontro Nacional” da Câmara, do qual participaram organizações não-governamentais, como a Transparência Internacional, representantes da CGU, do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), entre outras entidades. No mesmo ano, as então procuradoras regionais Isabel Cristina Groba Vieira, Mônica Nicida Garcia, Márcia Noll Barboza e Raquel Branquinho participaram como expositoras do “IV Fórum Global de Combate à Corrupção” realizado em Brasília (BRASIL, MPF, 2006).

Em 2006, o “VIII Encontro Nacional” da 5ª CCR discutiu as estratégias institucionais a serem adotadas no combate à corrupção. Nessa ocasião, foram estabelecidos alguns dos primeiros entendimentos, no que tange à temática, sobre parcerias e cooperações extrainstitucionais, publicações de enunciados para harmonizar a atuação individual e compartilhamento de informações entre entidades públicas. No mesmo ano, um grupo de trabalho coordenado pela procuradora regional Mônica Nicida Garcia, passou a discutir a implementação da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção no âmbito do MPF (BRASIL, MPF, 2007).

Se o combate à corrupção foi tema dos encontros nacionais da Câmara em 2007 e 2008, a gestão da 5ª CCR abrandou o enfoque nesse debate nos dois anos seguintes, para que ele reemergisse, no início dos anos 2010, já acompanhado das noções de eficiência, modernização, prestação de contas e transparência (BRASIL, MPF, 2008 a 2013). A nova tônica da discussão sinalizava importantes mudanças, diretamente relacionadas ao novo delineamento da esfera temática da 5ª Câmara, no qual o conceito de improbidade administrativa passou a se subordinar ao caráter de ‘guarda-chuva conceitual’ e categoria acusatória da noção de corrupção.

Ademais, nesse período, foi notável esforço de direcionamento não apenas da 5ª CCR, mas, dos objetivos institucionais do MPF em geral, ao combate da corrupção. O estabelecimento da corrupção como uma prioridade institucional, nos anos 2010, pode ser conferido no primeiro planejamento estratégico plurianual da instituição, publicado em 2011, e consecutivamente em relatórios de resultados do MPF e da PGR de 2013 a 2018 (BRASIL, MPF, 2011a; 2015; 2016a; 2018a). Finalmente, o corolário destas mudanças foi a publicação da Resolução do Conselho Superior do MPF nº 148/2014, cujo projeto foi apresentado pelo PGR Rodrigo Janot, que reorganizou diversas áreas de atuação temática do MPF, atribuindo à 5ª Câmara todos os procedimentos relacionados à definição administrativa e penal de corrupção.

Segundo a justificativa apresentada pelo MPF, essa mudança buscava “refletir os anseios da sociedade” (MPF..., 2014). Ela impactou a atuação especializada, não só com a reorganização da 5ª CCR, mas, com o reestabelecimento das normas de funcionamento da estrutura de atuação especializada, visando maior eficiência da organização administrativa do MPF (BRASIL, MPF, 2014b). Em vídeo institucional de 2014, acerca daquela resolução, o subprocurador-geral Nicolao Dino, então coordenador da 5ª CCR, afirmava:

Esse tema é prioritário para o Ministério Público porque é um tema prioritário para a sociedade brasileira. Nós precisamos otimizar as ferramentas de combate à corrupção. A corrupção é um grande mal para o nosso país e, pior do que a corrupção, é a impunidade em relação a esse fenômeno (MPF..., 2014).

Com sua reorganização, a 5ª CCR encampou parte do trabalho que, antes, era objeto de coordenação e revisão pela 2ª Câmara, outrora responsável pela atuação criminal e controle externo da atividade policial. Logo, muitos registros de discussões e materiais acerca dos primórdios do combate criminal à corrupção pelo MPF se encontram no acervo documental da 2ª CRR.13 A partir daquela resolução, entre outras mudanças, a 2ª CCR perdeu atribuições tanto para a 5ª como para a 7ª Câmara, a qual, por sua vez, tornou-se exclusivamente incumbida do controle externo da atividade policial e do sistema prisional. Todavia, essa redistribuição de atribuições não representou a retração da atuação penal do MPF, mas, ao contrário, sua dispersão e aprofundamento nas diferentes áreas temáticas, assim como ocorreu quando, com a Resolução CSMPF 163/2016, competências criminais foram fixadas para a 4ª CCR, responsável pelo Meio Ambiente e Patrimônio Cultural (BRASIL, MPF, 2016c).

Igualmente no ano de 2014, a partir de desdobramentos dos GTs da 5ª CCR, desenvolveram-se projetos de maior envergadura no âmbito do MPF como a formulação de manuais, roteiros de atuação e desenvolvimento de ferramentas de inteligência (BRASIL, MPF, 2016b). Além da reconfiguração interna, a ênfase na temática da corrupção ensejou um incremento nas atividades de cooperação nacional e internacional, tanto com a adesão a amplas redes e organismos internacionais que dizem respeito ao tema, quanto com a criação de “diversas forças-tarefa”, como aquela que atuou na Operação Lava Jato, nas quais o MPF trabalhou junto a outras instituições nacionais (BRASIL, MPF, 2015, p. 6 e 29-33).

Essas circunstâncias colaboram na compreensão de que a reorganização da 5ª CCR esteve vinculada a transformações na forma de combate à corrupção realizada pelo MPF que concernem à temporalidade da Operação Lava Jato, mas, também, a outros fatores da dinâmica institucional. Nesse sentido, a análise dos relatórios de atividades da Câmara apresenta mais uma variável nessa recomposição: a noção de eficiência adotada pela instituição no alcance de seus objetivos organizacionais. Segundo descreve o relatório de gestão do biênio de 2014 e 2015, as novas competências abarcadas pela atividade da 5ª Câmara, em 2014, resultaram de um projeto de modernização da gestão administrativa (BRASIL, MPF, 2011a).

Iniciado no ano de 2010, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), o Projeto de Modernização do MPF tinha o intuito de alinhar a própria organização interna e ações institucionais (“as atuações administrativas, temáticas e estratégicas”), com o propósito de direcionar e especializar ainda mais a ação dos membros da carreira. Como objetivo estratégico mais amplo, estava o cumprimento da missão institucional de promover “a realização da justiça, a bem da sociedade e do Estado democrático de Direito” e a concretização da visão do MPF de até “2020, ser reconhecido, nacionalmente e internacionalmente, pela excelência na promoção da justiça, da cidadania e no combate ao crime organizado e à corrupção” (BRASIL, MPF, 2016b, p. 12-14).14

De acordo com o projeto, esse planejamento estratégico seria responsável pelo “direcionamento” da organização (BRASIL, MPF, 2011a, p. 10). Elaborado para implementação a longo prazo (2011-2020), em toda a estrutura organizacional, uma de suas perspectivas centrais é a percepção da atuação do MPF junto à sociedade (BRASIL, MPF, 2011a). Com seu desenvolvimento, em 2012, a 5ª CCR formulou os objetivos e prioridades de sua atuação na área correspondente à temática do patrimônio público e social assessorada pela empresa PriceWaterhouseCoopers, grupo de auditoria e consultoria fiscal, tributária e de negócios, que auxilia a harmonização legal e administrativa das corporações e Estados pelo mundo (BRASIL, MPF, 2014a; 2016b).

Desse modo, a criação do “Mapa Temático”15 da 5ª Câmara também foi responsável por delimitar e orientar a ação dos seus membros, de modo que a própria busca por uma gestão institucional moderna e eficiente desencadeou escolhas políticas e consequências tanto racionalmente almejadas, quanto imponderáveis na atuação institucional. Por ora, vale registrar uma mudança quantitativa notável: pesquisado em todos os relatórios de atividades da Câmara disponíveis online, o termo corrupção não ultrapassa quinze ocorrências por relatório entre 2002 e 2013.16 Já a menção à corrupção, nas publicações seguintes, foi verificada, no mínimo, trinta e oito vezes (2016), alcançando cem registros no relatório de 2018 (BRASIL, MPF, 2003 a 2019).

Outra mudança vinculada aos processos de modernização, racionalização e direcionamento privilegiado no combate à corrupção foi a criação dos Núcleos de Combate à Corrupção (NCCs) nas unidades das procuradorias da República e procuradorias regionais da República. Com o intuito de uniformizar e unificar procedimentos na apuração de casos de corrupção nos Estados, sua implantação implicava que um mesmo procedimento investigatório passaria a fornecer elementos tanto para ações de improbidade administrativa e atuações na esfera cível, quanto para os expedientes criminais. Dessa forma, haveria compartilhamento de provas, evitando-se duplicidade em investigações e instruções processuais ou a falta de ação em algum dos âmbitos competentes (BRASIL, MPF, 2015; CORRÊA FILHO, 2013).

O primeiro Núcleo de Combate à Corrupção do MPF foi implantado experimentalmente no Rio Grande do Norte, em 2007. Anos depois, a adoção desse novo modelo de organização interna foi recomendada à instituição, na plenária anual da ENCCLA, em 2011. Contudo, a maior parte dos NCCs foi implantada entre 2014 e 2015, justificando-se a partir do planejamento estratégico e finalístico por possibilitarem a promoção de celeridade e efetividade na ação anticorrupção. Somando-se às funções já descritas, os Núcleos também organizam e destacam integrantes para participarem de eventos, bem como auxiliam o planejamento temático da 5ª CRR (QUEIROZ, 2018; BRASIL, MPF, 2016b; CORRÊA FILHO, 2013).

Há poucos trabalhos voltados à compreensão das dinâmicas sociais de atuação dos NCCs, de seu impacto e de sua capilaridade nas localidades em que foram implantados. Entretanto, o trabalho de Londero (2021), precursor dessa análise, aponta que não houve unicidade quanto ao acolhimento da orientação da 5ª CRR para a criação dos Núcleos em todas as unidades do MPF. Desde 2014, o acolhimento da recomendação para adoção dos NCCs em todas as unidades do MPF e da proposição de um número mínimo de membros variou muito. Em 2018, por exemplo, apenas a Procuradoria no Estado Piauí não possuía um Núcleo organizado (LONDERO, 2021, p. 2013). Já em 2020, somente a PR-SP e a PRR1 não possuíam NCCs, contando apenas com representantes da 5ª CRR, quadro que se modificou nos últimos dois anos.

Atualmente, as Procuradorias dos estados do Piauí, de Santa Catarina e as Procuradorias Regionais da República da 1ª, 3ª e 4ª Regiões (PRR1, 3 e 4), não possuem Núcleos de Combate à Corrupção, contando apenas com representantes da 5ª CRR.17 Nesse sentido, as variações temporais observadas indicam que há dissonâncias, disputas e recuos no processo de racionalização e emergência da atual forma de combate à corrupção adotada pelo MPF. Ademais, a pesquisa de Londero (2021) apresenta desigualdades nas estruturas e na quantidade de membros destacados para essa atuação, nas diferentes procuradorias dos Estados e procuradorias regionais, bem como destaca a resistência na adoção desse modelo por parte de alguns integrantes da carreira.

Além dos Núcleos, outro produto de destaque da especialização temática no combate à corrupção foram as campanhas públicas que buscaram uma interlocução com a sociedade. No ano de 2016, através da 5ª CCR, o MPF passou a patrocinar vultosas ações que promoveram o projeto de lei conhecido como 10 medidas contra a corrupção. Decorrente da campanha #CorrupçãoNão (2015), realizada em parceria com os MPs de vinte e um países ibero-americanos, pela AIAMP, as 10 medidas contra a corrupção contaram com peculiaridades em relação às campanhas geralmente promovidas pela instituição (BRASIL, MPF, 2015a).

O apelo à sustentação popular deste projeto foi veiculado através de mídias interativas, redes sociais, campanhas publicitárias aderidas por celebridades, contratos com agências de marketing e promoção de eventos com palestras de procuradores da República em instituições públicas e privadas, como universidades, igrejas e entidades de representação de classe. Um de seus resultados foi a proposição do projeto de lei, formulado pelos procuradores, como uma iniciativa popular endossada por milhões de assinaturas. Concomitantemente, setores críticos à proposta, bem como defensores de direitos e garantias que poderiam ser afetadas caso aprovado o projeto, foram associados à condescendência com a corrupção (BRASIL, MPF, s/d[a]).

Um dos motes da campanha demandava um “Brasil mais justo, com menos corrupção e menos impunidade”, abrindo a apresentação de um documento que reuniu os textos dos dezenove projetos de lei, de uma emenda constitucional, as justificativas destas reformas legais e artigos de cunho jurídico-doutrinário sobre os temas abordados nas proposições reunidas em dez pontos. Apresentadas sob a roupagem de um “pacote único”, entre os argumentos expostos no compilado, são profusos os lugares comuns e frases de efeito, tais quais as assertivas de que, como “o homicídio, a corrupção mata”, ou que a “corrupção é o maior obstáculo para o desenvolvimento” (BRASIL, MPF, s/d(a), p. 63; HOFMEISTER, 2000 apud BRASIL, MPF, s/d(a), p. 38).18

A mobilização do grupo de procuradores engajado na aprovação deste projeto de lei, recorrentemente, aderiu à retorica de desmoralização do “sistema político” e não foi capaz de angariar o apoio necessário à sua aprovação no Congresso Nacional. Portanto, essa recente tentativa de lobby legislativo dos membros do MPF — que, de resto, resultou em articulações daqueles agentes com partidos políticos lastreados na classe média brasileira — desta vez, não foi tão bem-sucedida quanto na Constituinte. Em votação na Câmara dos Deputados e depois no Senado, o projeto foi significativamente alterado e ainda segue em trâmite desde 2016 (BRASIL, 2019).

Por fim, a análise de características da gestão no combate extraprocessual da corrupção pela 5ª CRR, especialmente no decorrer da Lava Jato, suscita questões referentes ao direcionamento privilegiado das prioridades institucionais. Nessa perspectiva de interpretação, a experiência desse período indica que a atuação especializada, aliada à autonomia e à organização monocrática no desempenho das funções dos procuradores da República e da cúpula administrativa, implicou na realização de esforços prioritários em determinadas áreas em detrimento de outras (LEMGRUBER et al., 2016; LONDERO, 2021).19 Ademais, o arranjo que acarretou a “personalização” das escolhas de ação institucional (LEMGRUBER et al., 2016, p. 27) — abrindo espaço ao voluntarismo, já criticado por Arantes (2002), e às concepções justiceiras dos procuradores acerca de sua ação anticorrupção — impactou as atribuições legais do MP como um todo.

Tal direcionamento desequilibrado foi constatado no estudo do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (CESeC). Nesta pesquisa, três “áreas nevrálgicas” com maiores deficiências na atuação dos MPs estaduais e Federal são apresentadas: o controle externo da atividade policial, a supervisão da execução penal e a defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Segundo o trabalho,

aos imensos recursos postos à disposição do MP não correspondem padrões institucionais de atuação nas diferentes áreas de que o órgão está incumbido [...] a carência de padrões de atuação e a fragmentação das escolhas e prioridades colocam em dúvida não só o efetivo cumprimento do amplíssimo leque de funções constitucionais atribuídas ao MP como os próprios princípios de unidade e indivisibilidade que, em tese, o estruturam (LEMGRUBER et al., 2016, p. 14).

Ao retornar às escolhas de atuação dos membros da carreira, a análise do combate à corrupção pelo MPF nas últimas décadas recoloca a discussão proposta ao final do segundo tópico deste artigo. A seguir, serão observadas algumas das concepções e valores de atuação que orientam estratégias profissionais de membros da instituição, concernentes, inclusive, à maneira como — através do exercício de suas atribuições funcionais — eles representam sua própria inserção nas relações sociais e as posições que objetivamente ocupam na sociedade. Tais elementos são substanciais para avançar no entendimento da ideologia de combate à corrupção do MPF.

Vocação institucional?: combate à corrupção e a ideologia de representação da sociedade

Se, de maneira sistemática, o Ministério Público passou a estruturar suas práticas nos termos do “combate à corrupção” somente na década de 1990, sendo que o Ministério Público Federal encampou essa concepção no início dos anos 2000, por outro lado, a corrupção já era mobilizada como um problema político característico de épocas de crise, desde o declínio do Império e ao longo de toda a história republicana (AVRITZER et al., 2012; MARTUSCELLI, 2016). Segundo Koerner e Schilling (2015, p. 75),

[u]sada reiteradamente desde os inícios da República, a denúncia de corrupção reaparece em momentos-chave: no segundo mandato de Getúlio Vargas, no golpe de Estado contra João Goulart, no início da democratização, desvelando práticas corruptas durante a ditadura militar e, desde a redemocratização, com as denúncias de corrupção de representantes na Presidência e no Congresso.

Porém, em cada período histórico, diferentes sentidos foram atribuídos ao que se identificava como corrupção, aos motivos e à forma de combatê-la. Portanto, sua mobilização político-jurídica passou por transformações a depender dos arranjos de poder e da conjuntura nacional e internacional. No final do Império, por exemplo, a noção de corrupção passou a ser empregada para se referir ao poder político, “como forma de acusação ao sistema” monárquico — no qual ainda não havia a separação das esferas pública e privada. Então, sua denúncia era uma imputação contra aqueles que administravam os bens da Coroa e, com efeito, atingia a monarquia como um todo. Afinal, “criticar o monarca significava, de alguma maneira, lancetar o sistema em sua idoneidade”, sendo que poucos anos separaram as acusações de corrupção contra a monarquia de sua derrocada (SCHWARCZ, 2012, p. 199).

Já na República, a noção de corrupção foi cada vez mais se apartando de compreensões pré-modernas (que implicavam o sentido de declínio, decadência ou degeneração), para se vincular ao estabelecimento de limites mutáveis entre as esferas pública e privada, enquanto organizadoras e fontes de legitimidade da forma capitalista de Estado que emergia no país.20 Preponderantemente uma questão interna até a década de 1990, o conteúdo, a extensão e as ferramentas das lutas contra a corrupção variaram na história republicana, umbilicalmente ligadas às dinâmicas das lutas econômicas e políticas entre classes e frações de classe, sobretudo, da classe dominante (AVRITZER et al., 2012; MARTUSCELLI, 2016).

Diante disso, é importante colocar a discussão em perspectiva histórica e explicar como a mobilização da ideia de combate à corrupção abrange múltiplos significados e comporta contradições. Do mesmo modo, as práticas jurídicas desse combate, embora relativamente autônomas, não se dissociam dos conflitos políticos, econômicos e culturais de seu tempo. Em um sentido mais específico, uma ideologia de combate à corrupção não diz respeito apenas ao ideário que informa diferentes ações anticorrupção. Aqui, ela se refere principalmente aos aspectos desse ideário responsáveis por naturalizar tais práticas (até para seus próprios agentes), ao passo que dissimula os pressupostos da ação, os quais precisam ser perscrutados em meio a afirmações insuspeitas ou generalidades bem aceitas.

Para compreender aspectos das bases teóricas pelas quais o MPF reivindicou e assumiu maior destaque nas lutas sociais contra a corrupção, optou-se por remontar às teses jurídicas adotadas pela própria 5ª Câmara, no início do período de publicação de seus relatórios de atividades. Como mencionado anteriormente, em 2003, a então Câmara do Patrimônio Público e Social celebrou o primeiro decênio de promulgação da Lei Orgânica do MPU com um concurso de monografias que convidava os integrantes da instituição a produzirem trabalhos doutrinários acerca do papel do Ministério Público no combate à corrupção. Publicadas em um livro organizado pelo MPF, as três monografias premiadas — à época, escritas por dois procuradores regionais da República e uma procuradora da República — reivindicavam ao MP um papel de protagonismo e singularidade nesse combate (ALBUQUERQUE; MEDEIROS; BARBOZA, 2006).

Em um panorama significativo para o argumento deste artigo, na monografia que dá título ao livro, premiada em terceiro lugar, o patrimonialismo (desde uma definição típica-ideal weberiana), o clientelismo e o coronelismo foram apontados como elementos historicamente recorrentes da “vida sociopolítica brasileira”. O texto conclui que, a partir dessas raízes, o Brasil teria chegado à contemporaneidade com taxas elevadas de corrupção. Ante tal cenário, “ao menos” haveria no país uma “instituição ‘vocacionada’” a combater esse mal: o Ministério Público (BARBOZA, 2006, p. 103 e 108).

Além de citar o perfil constitucional do MP e os instrumentos legais à disposição desse combate, Barboza (2006, p. 117) compreende que essa vocação decorreria da independência conferida aos membros da instituição, constituindo-se em uma aptidão mais ampla: a função de controle jurídico do Estado pelos membros do MPF. No texto, a tese de que o MP teria um papel especial no combate da corrupção — por seu desenho constitucional e por seus encargos de controle interno das funções do Estado — invoca também um diagnóstico sociológico do país. Não apenas se busca endossar as atribuições legais, mas uma missão ou vocação social do Ministério Público. Com isso, “vocação”, noção que está no âmago das “afinidades eletivas” entre a ética do trabalho capitalista e a religiosidade (WEBER, 2004) opera mediações no argumento da autora entre a atuação técnico-jurídica e a moralidade social.

Afora o artigo de Barboza, a ideia de “vocação” para o combate da corrupção é mobilizada por outros procuradores, em produções teóricas ou declarações públicas, enquanto uma inclinação decorrente das competências atribuídas ou pleiteadas para o MP, especialmente, na defesa do interesse público. Assim, Queiroz (2018, p. 139) ao recomendar certas condições de trabalho nos NCCs, utiliza essa noção de vocação como dimensão volitiva do exercício profissional dos procuradores. Já em Albuquerque (2006, p. 36-37), ela aparece relacionada à defesa dos direitos públicos subjetivos e da cidadania pelo MP. Por fim, Corrêa Filho (2003, p. 23) a vincula à meta estratégica de o MPF “ser reconhecido, nacional e internacionalmente, pela excelência no combate à corrupção”. No cerne desses exemplos, as competências legais do combate à corrupção justificariam e legitimariam determinado destino de evolução institucional.

Essa indicação de uma espécie de “destino manifesto” institucional não é, contudo, um argumento que se encontra exclusivamente ligado às teses e construções doutrinárias relacionadas ao combate da corrupção. Há anos essa imagem de excepcionalidade e pioneirismo do papel do Ministério Público está presente entre seus membros,21 transparecendo ainda mais destacada quando eles se referem à importância de proteger a sociedade contra o Estado, sobretudo diante das instâncias político-representativas (ARANTES, 2002, p. 115-148). Por essa razão, a instituição precisaria de força e capacidades específicas para controlar e, na medida do necessário, combater o próprio Estado que integra. Conforme o ex-PGR Cláudio Fonteles,

Nós fomos questionar o Estado. E tudo isso se harmonizou bem, porque a Constituição criou a Advocacia Geral da União. Então o Estado-Administração passou a ter um corpo de advogados próprios: perfeito! E nós fomos ser a voz da sociedade. Questionar o Estado, enfim, de modo amplo (FONTELES apud AXT, 2017, p. 210).

Atentando para esta declaração, é importante retornar a Arantes (2002), cujo estudo apontou, no próprio histórico de construção institucional do Ministério Público, o lastro doutrinário da busca pela representação da sociedade na ficção legal da incapacidade. Dos “menores de idade, surdos-mudos, loucos de todo o gênero, ausentes, pródigos e silvícolas”22 seguiu-se, com a redemocratização, à concepção de incapacidade geral da sociedade em defender seus direitos indisponíveis (ARANTES, 2002, p. 30).

Do mesmo modo, no que tange especificamente à representação política, o MP teria presumido possuir mais legitimidade para agir na mediação entre Estado e sociedade que os próprios representantes eleitos. A isso, Arantes denominou “voluntarismo político”, ideologia formada por uma tríade de concepções — endógena, deliberada e paulatinamente fomentadas — que reúne “a crítica aos poderes políticos, a ideia de hipossuficiência da sociedade civil23 e o papel estratégico do Ministério Público como defensor dos interesses sociais” (ARANTES, 2002, p. 137).

Alinhadas a preocupações autênticas acerca da organização democrática brasileira, as conclusões de Arantes são fatores que, aqui, serão observados em cotejo aos argumentos de justificação moral e sociológica das práticas jurídicas e concepções mais gerais de atuação dos agentes do MPF. Afinal, estes são elementos que dão estofo ao que os procuradores compreendem como vocação da instituição. Para tanto, três pesquisas de opinião realizadas nos anos de 1997, 2008 e 2016 — respectivamente, duas com membros do MPF e uma com integrantes de todo o MP brasileiro — apresentam dados sugestivos. Embora, isolados, seus resultados não permitam conclusões generalizantes pertinentes ao tema em discussão, paralelamente às referências mobilizadas até aqui, podem ajudar à formulação de novos conjuntos de questões para futuras pesquisas.

No estudo de 2008 sobre o MPF, Azevedo apresentava que, nas concepções de política criminal, percentuais significativos de procuradores e subprocuradores-gerais: a) eram adeptos das teorias criminológicas da defesa social24 (34,7%); b) consideravam necessária a redução da maioridade penal (41,9%); c) concebiam a função primordial da pena como prevenção delitiva (55,7%); d) discordavam de que provas ilícitas deveriam ser descartadas dos processos penais, admitindo a ponderação judicial de seu uso (62,3%); e) acreditavam que a legislação penal e processual penal fosse excessivamente branda (67,6%); f) eram favoráveis à expansão do direito penal “ante os novos riscos sociais” (71,2%)25; g) apoiavam o uso de delações premiadas e sua reversão na diminuição da pena do delator, caso acarretassem na condenação de algum acusado (97%).

Já em entrevistas semiestruturadas, os membros do MPF demonstravam inquietações com as percepções da população acerca da corrupção e, principalmente, com a “impunidade” e com os “crimes de colarinho branco” (AZEVEDO, 2008, p. 45-95). As mesmas preocupações foram também registradas nas pesquisas realizadas com o MPF, em 1997, e com todo o MP, em 2016, nas quais o “controle da administração pública (improbidade administrativa)” e o “combate à corrupção” aparecem com altos percentuais entre as áreas de atuação consideradas prioritárias para procuradores e promotores de justiça (CASTILHO; SADEK, 2010, p. 39; LEMGRUBER et al., 2016, p. 29-30).

Nas opiniões dos procuradores quanto à eficácia do sistema penal, para a maior parte deles, a defesa dos direitos difusos e coletivos, bem como do interesse público, depende do alargamento de instrumentos penais para se fazer mais eficaz. Logo, a maioria dos procuradores enxergava a criminalização e o endurecimento de procedimentos processuais penais, bem como de cumprimento da pena, como mecanismos de efetivação de direitos. Ademais, muitos membros da instituição que patrocinavam a defesa de garantias e liberdades, admitiam a expansão da tutela penal na atuação em matéria de interesses econômicos e financeiros do Estado e do mercado, do mesmo modo que frente à corrupção (AZEVEDO, 2008). Nas palavras de um procurador regional da República entrevistado:

Eu defendo muito a ideia do Silva Sanchez quando ele fala na expansão do direito penal quando for um movimento racional. O que nós temos no Brasil é uma expansão irracional do direito penal, o que nós temos, muitas vezes, não pode ser considerado crime. [...] Então, o que eu acho é que deve haver uma expansão racional do direito penal, porque hoje em dia muitos dos crimes com os quais nós trabalhamos tem muita ligação com o sistema financeiro, porque a volatilidade dos capitais é muito grande. E o que é necessário são meios de apuração efetivos para esses casos, assim como uma punição efetiva. Aí, nesses casos, o direito penal tem que ser expandido, mas, em outros casos, o contrário (PRR4C apud AZEVEDO, 2008, p. 51-52, grifos no original).

Cabe considerar que esses estudos foram realizados ao longo de um intervalo de tempo no qual emergiram os efeitos da renovação dos quadros do MP, especialmente após a obrigatoriedade de ingresso por concurso público, com a Constituição de 88, que impactou o perfil dos profissionais e as ideologias institucionais.26 Desse modo, no decurso da redemocratização, processou-se um rearranjo nacional tanto no que concerne à prestação jurisdicional por parte do Estado e ao acesso da população à justiça, quanto na legitimação social daquela prestação e admissão de novos estratos sociais às carreiras jurídicas.27 Segundo Almeida, essa “democratização das carreiras” — entre outros fatores, tributada à “ativação política dos grupos profissionais da administração da justiça” — esteve “na base” dos demais aspectos constitutivos de reorganização judicial pós-ditadura (ALMEIDA, 2015, p. 642-644).

Outro importante elemento para considerar este quadro, foi a emergência de perspectivas críticas aos paradigmas teórico-jurídicos positivistas de pureza, isenção e neutralidade do direito e dos juristas frente à “realidade social” nos anos 1980 (ALMEIDA, 2015). Com elas, uma parte da atuação jurídica que não se encaixava na “tradição” passou a mobilizar elementos do progressismo jurídico, incorporando-o a ideologias de recrudescimento punitivista.28 No âmbito do combate à corrupção, esse amálgama reforçou, ainda, uma forma desse combate que tutela os pilares desiguais da ordem econômica capitalista, mantendo preservadas relações sociais que inviabilizam o controle verdadeiramente coletivo e a fruição comum dos recursos sociais.

Em que pese a mencionada abertura e diversificação da carreira, ao relacionar essas informações a outros dados trazidos pelos estudos de referência, verifica-se um perfil sociodemográfico dos membros do MPF muito diferente da estrutura geral da sociedade brasileira, por contar com porcentagens de homens, brancos, filhos de pais com ensino superior completo que superam, inclusive, os índices verificados entre a população de mesma idade e escolaridade (AZEVEDO, 2008; LEMGRUBER et al., 2016; CASTILHO, 2016). Isso se soma à inserção privilegiada na divisão social do trabalho em postos não manuais, de alto prestígio e com rendimentos que podem ultrapassar o valor de quarenta e cinco salários mínimos mensais. De modo algum essas informações devem ser entendidas como uma simples caricatura ou reflexo imediato da atuação jurídico-política desses agentes.29

Porém, o MP não é uma instituição de representação eleitoral — isto é, não conta mecanismos democrático-formais de prestação de contas (accountability vertical) —, nem é uma entidade pública que espelha a estrutura social na composição de seu quadro de pessoal. Logo, esta reivindicada vocação de representar os interesses sociais comporta interpretações que consideram mais do que a normatividade das teorias da democracia. Aqui, a partir de Poulantzas (1977, p. 120-129), considera-se que essa representatividade tem derivado da acomodação da instituição no seio das contradições entre Estado, sociedade e circulação capitalista (mercado). Especificamente, ela parece reunir, em seus princípios e atribuições fundamentais, os efeitos contraditórios das próprias estruturas jurídico-políticas capitalistas de isolar os indivíduos, ocultando a condição de classe de suas relações; e representar sua unidade social, tal como a de um povo com interesses e objetivos comuns e homogêneos.

O Ministério Público faz parte do Estado e precisa se contrapor a ele concomitantemente. Em outras palavras, essa contradição deriva da garantia à vivência individual e atomizada dos ‘membros da sociedade civil’, em um universo de relações necessariamente social, bem como dividido em classes antagônicas e lutas concorrenciais. Desde a Constituição de 1988 — e em momentos históricos anteriores, nos quais a representação dos interesses sociais foi apresentada como um papel do MP — sua atuação correspondeu amplamente a esses efeitos. Portanto, no conjunto dos elementos observados, tais considerações teóricas ajudam à formulação de novas questões, ante problemas diversos que se desdobram do exame da ação anticorrupção dessa instituição.

Considerações finais: notas para novos estudos sobre a ideologia anticorrupção do MPF

Os trabalhos consultados indicam a adesão dos agentes do MPF a tendências teóricas e jurídico-penais da “típica plataforma tecnocrática, reformista e eficientista que caracteriza a mediação política das contradições sociais nos sistemas de máxima concentração capitalista” (BARATTA, 2004, p. 158). Ademais, observam que as disputas pelo reconhecimento desses agentes como legítimos representantes dos interesses públicos ou sociais depende e varia de acordo com seu sucesso em lutas políticas e ideológicas, nas quais a moralidade é abundantemente mobilizada. Ao mesmo tempo, a adesão desses agentes às pautas de combate à corrupção, igualmente, mostra-se uma empreitada eficientista, na qual predomina uma perspectiva neoclássica de valorização dos mercados e suspeição do Estado e da disputa política institucional.

Logo, apresentados a título de sistematização, seguem dois conjuntos de questões a serem melhor exploradas futuramente. O primeiro diz respeito à contradição presente na alegada vocação do MP de representar interesses de toda sociedade — notadamente, extrapolando competências legais ou aspectos técnicos — e as afinidades de classe de seus membros com o ideal de combate à corrupção dentro dos limites de manutenção da ordem econômica capitalista. Deste ponto de vista, supõe-se que as disputas travadas por esses agentes estejam interconectadas em duas dimensões: aquela individual e corporativa de agência, conforme demonstra Arantes (2002), mas, também, no plano das lutas de classes, especialmente informadas pela divisão social do trabalho e, nesse caso, pela ideologia meritocrática que lhe é consequente.30

Por fim, é fundamental compreender como as práticas de combate à corrupção do MPF têm atualizado a dita expansão “racional” do direito penal no Brasil. Nesta esfera temática, demandam atenção os impactos sociais da contratualização do direito penal e da concepção de direito penal negocial, bem como do emprego de novas formas de organização do trabalho jurídico, como as forças-tarefa. Tais propostas reformistas e “panpenalistas” — que, conforme leitura inspirada em Baratta (2004, p. 215), acarretam a “extensão do direito penal ou em ajustes secundários de seu alcance” — incorporam apenas formalmente a criminalidade das classes dominantes. Consequentemente, produzem novos mecanismos de seletividade, outrossim, inescapáveis aos processos de criminalização. Por tabela, corroboram com a legitimação da massiva e violenta penalização das classes dominadas. Contudo, essas são apenas observações genéricas e iniciais para a construção de novos problemas de pesquisa.

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  1. Este artigo reúne e sistematiza parte dos dados e discussões da introdução, do terceiro capítulo e da conclusão de minha dissertação de mestrado. Cf. Santiago (2020).↩︎

  2. Os precedentes e as repercussões da Operação Lava Jato na forma de combate à corrupção empreendida pelas instituições judiciais não puderam ser abarcados neste artigo, dada sua complexidade e impacto que extrapola tal área temática. Para essa análise, cf. Kerche (2018), Rodrigues (2019), Marona e Kerche (2021).↩︎

  3. O Ministério Público brasileiro é regido por um princípio de unidade que integra seus diferentes ramos — o Ministério Público da União (MPU) e os Ministérios Públicos dos Estados (MPs) — em uma mesma e única instituição (BRASIL, 1988, art. 127, § 1º).↩︎

  4. Cf. a revisão crítica de Da Ros (2009) acerca da literatura sobre as relações entre o Ministério Público e a sociedade civil. Igualmente nesse âmbito, ver o estudo coordenado por Rodriguez (BRASIL, SRJ, 2013), dedicado a investigar a atuação das entidades de “advocacia de interesse público” junto ao MP e à Defensoria Pública, com aporte nas teorias sobre mobilização jurídica.↩︎

  5. A literatura caracteriza essa mobilização como lobbies da Confederação Nacional do Ministério Público que obtiveram consideráveis vitórias (ARANTES, 2002; KERCHE, 2010; LEMGRUBER et al., 2016).↩︎

  6. Em adendo, por um princípio de indivisibilidade, todo e qualquer membro é representante da totalidade institucional, podendo ser substituído por outro de seus pares no desempenho de suas funções, sem prejuízo legal (BRASIL, Constituição, 1988, art. 127, §1º). As diferentes competências (por matérias, instâncias, partes em litígio) não interferem nas funções desempenhadas, sendo que atribuições diversas espelham os diferentes tribunais e esferas perante os quais cabe a cada integrante atuar (SADEK, 2012).↩︎

  7. Entre 2003 e 2005, a “Força-tarefa CC5” (FT-CC5) do Ministério Público Federal investigou ilegalidades e crimes financeiros vinculados às contas exclusivas para pessoas físicas e jurídicas não residentes ou não domiciliadas no país (tipo CC5) do Banco do Estado do Paraná, o Banestado. Cf. Paludo (2011, p. 90-114).↩︎

  8. A Procuradoria-Geral da República é o órgão do Ministério Público que chefia administrativamente (sem hierarquia funcional) o Ministério Público da União (MPU), composto pelos Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Militar (MPM) e Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).↩︎

  9. Para um histórico da indicação do PGR pela lista tríplice e sua análise considerando a autonomia institucional, os arranjos e os conflitos em relação a outras instituições e poderes, cf. Arantes e Moreira (2019) e Londero (2021). Esta última autora faz um balanço do número de ações relacionadas ao combate da corrupção, por ano de mandato dos PGRs desde 1988 (LONDERO, 2021, p. 66 e ss.).↩︎

  10. Em 2007, o chamado Movimento Cansei capitalizou as primeiras manifestações de rua que trouxeram o combate da corrupção entre suas pautas centrais após as Direitas Já (TATAGIBA; TRINDADE; TEIXEIRA, 2015).↩︎

  11. Nos GTs, são elaborados “roteiros de atuação, que fornecem diretrizes de orientação e asseguram uniformidade e coerência ao exercício das atribuições institucionais” pelos membros do MPF. Cf. www.mpf.mp.br, acesso em 19 fev. 2022.↩︎

  12. O primeiro relatório da 5ª CCR publicado no sítio virtual do MPF é de 2002, no qual ainda se verifica a centralidade na noção de improbidade administrativa e não há sequer uma ocorrência do termo “corrupção” (BRASIL, MPF, 2003). O estudo de Londero (2021), traz dados quantitativos da atuação da 5ª CCR para avaliar as “capacidades institucionais” do MPF no combate à corrupção.↩︎

  13. Este arcabouço não foi objeto de análise nesse artigo, tanto por uma opção relativa ao recorte de análise, quanto pela dificuldade de acesso à documentação da 2ª Câmara anterior à reorganização operada pela resolução citada. A atuação pregressa da 2ª CCR, no combate criminal à corrupção, remanesce um material frutífero para compor novos estudos.↩︎

  14. Reflexo de alguns dos conflitos institucionais envolvendo essa iniciativa, em 2012, servidores do MPF, que não integram a carreira dos procuradores, produziram um documento de crítica a esse projeto de modernização, caracterizando-o como neoliberal e privatizante (MAIA; BERNARDES, 2012).↩︎

  15. Para aperfeiçoamento gerencial em diversos setores, incluindo: “Aprimorar a comunicação com a sociedade civil e a imprensa sobre a temática do Patrimônio Público” e “Reduzir a sensação de impunidade” (BRASIL, MPF, 2014a, p. 8, grifo nosso).↩︎

  16. Não há nenhum registro do termo nos relatórios dos anos de 2002, 2004, 2009 e 2010.↩︎

  17. Como o recorte temporal de Londero foi de 1988 a 2018, as informações atuais sobre os NCCs e aquelas referentes ao ano de 2020 foram obtidas no sítio virtual do MPF, em: www.mpf.mp.br, acessos em 10 fev. 2020 e 20 fev. 2022. Ver Queiroz (2018), para os primórdios dessa implementação.↩︎

  18. Conforme explica Bratsis (2017), a corrupção não é uma categoria heurística e, mesmo quando examinada desde bases teóricas econômicas, nada explica ao ser transformada em justificativa para mazelas sociais como pobreza, baixas taxas de desenvolvimento e crescimento ou outros problemas que dizem mais respeito à matriz de exploração econômica de uma sociedade. Tal como nas doutrinas colonialistas e positivistas, quanto ao uso da noção de raça, nas interpretações neoclássicas da corrupção, as falsas relações de causalidade possuem caráter culturalista sendo, nessa medida, evolucionistas e capciosas.↩︎

  19. Como consequência, em 2019, o próprio MPF lançou uma campanha para divulgar outras frentes de atuação e impulsionar a temática de defesa dos direitos fundamentais, contando com a chamada: “O MPF além do combate à corrupção”. Cf. www.contecomagente.mpf.mp.br, acesso em 22 fev. 2022.↩︎

  20. Bratsis (2017, p. 22) explica que o advento moderno do “problema da corrupção está inerentemente ligado à ascensão do Estado-nação, à questão de manter a legitimidade e organizar a sociedade por meio das categorias de público e privado”.↩︎

  21. Tal como sugestivamente indica uma declaração de Plínio de Arruda Sampaio — que foi membro do MP paulista e deputado na Assembleia Nacional Constituinte — na qual se referia aos membros do Ministério Público engajados em sua construção institucional, desde a década de 1930, como founding fathers: “uma instituição não existe sem founding fathers” (SAMPAIO apud ARANTES, 2002, p. 23).↩︎

  22. A citação de Arantes reproduz os dizeres dos artigos 5º e 6º do, já revogado, Código Civil de 1916, cuja redação, embora alterada em 1962, manteve os mesmos termos.↩︎

  23. Para o autor, a construção doutrinária de uma “sociedade civil hipossuficiente” assentaria o deslocamento do conflito social desde o âmbito político ao jurídico, viabilizando o “diagnóstico pessimista sobre a sociedade civil e mais ainda sobre as instituições políticas tradicionais” que, por sua vez, alimenta o voluntarismo político do MP (ARANTES, 2002, p. 16).↩︎

  24. Comum às escolas criminológicas clássicas e positivistas, essa doutrina nasceu com as revoluções burguesas — nos movimentos modernos de cientifização e codificação do direito penal — atribuindo: aos delitos, a condição de ameaça social; ao Estado, a legitimidade social punitiva dos delitos; à pena, a natureza preventiva de delitos (além de retributiva); ao “delinquente”, o caráter de “elemento negativo e disfuncional do sistema social”; aos interesses protegidos pelo direito penal, o status de “interesses comuns a todos os cidadãos”. Ver mais em Baratta (2004, p. 35-42, grifo nosso).↩︎

  25. Contudo, cerca de metade dos entrevistados respondeu, a seguir, que esse incremento penal poderia gerar uma “vulgarização da alternativa punitiva”, capaz de torná-la ineficaz (AZEVEDO, 2008, p. 50-51).↩︎

  26. A “diversificação social das carreiras jurídicas” foi paulatina. Iniciada com as transformações no aparelho estatal na década de 1930, ela seguiu com a “expansão do ensino jurídico a partir da década de 1960”, bem como com as mudanças na estratificação social brasileira no mesmo período. Todavia, sua culminância ocorreu através das modificações na justiça nacional advindas da Constituição de 1988 e da expansão do ensino jurídico na década de 1990 (ALMEIDA, 2015, p. 644-645 e 647).↩︎

  27. Houve, assim, uma diferenciação de perfil social em relação às antigas estruturas jurídicas do Estado (ALMEIDA, 2015, p. 667). No survey de 2008, menos da metade dos respondentes (41%) possuía parentes que exerciam atividade jurídica, dentre os quais, apenas 45,8% nas carreiras jurídicas estatais (AZEVEDO, 2008, p. 38-39).↩︎

  28. “[...] o próprio discurso de politização e crítica à tradição jurídica acabou sendo incorporado pelo campo, de forma mais moderada, passando a compor o repertório dos agentes em luta” (ALMEIDA, 2015, p. 670).↩︎

  29. Sobre as remunerações, ver www.transparencia.mpf.mp.br, acesso em 26 mai. 2022. Acerca das desigualdades internas à instituição, especialmente, quanto à composição e oportunidades de raça e gênero, bem como sobre os setores comprometidos em transformar as condições de equidade no MPF, ver Castilho (2016) e Brasil (CNMP, 2018).↩︎

  30. Cf. Cavalcante (2018) para desdobramentos de como o discurso anticorrupção de inspiração neoclássica possui anteparos e sustentações na ideologia meritocrática da classe média.↩︎

Resumo:
O presente artigo examinará a entrada do combate à corrupção na agenda temática do Ministério Público Federal (MPF), considerando a mobilização de procuradores acerca do tema em campanhas públicas e lobbies corporativos no pós-redemocratização, bem como a organização interna de uma estrutura administrativa especializada nos anos 2010. Ademais, o texto discute a construção doutrinária da ideia de ‘vocação institucional’ para esse combate, objetivando contribuir na compreensão da participação dessas práticas institucionais em lógicas de dominação social. No primeiro tópico, com uma revisão bibliográfica, as características gerais do MP brasileiro são apreciadas. A seguir, um breve histórico do combate à corrupção no MPF é reconstruído através do exame de relatórios da 5ª CCR. Finalmente, aspectos da ideologia anticorrupção da instituição são analisados a fim de sugerir, a título de conclusão, dois conjuntos de problemas para novas pesquisas.

Palavras-chave:
Ministério Público Federal; combate à corrupção; 5ª Câmara de Coordenação e Revisão; vocação institucional.

 

Abstract:
This article will examine the entry of the fight against corruption in the thematic agenda of the Brazilian Federal Prosecution Service (MPF), considering the mobilization of prosecutors around it in public campaigns and corporate lobbies in the post-re-democratization period, as well as the internal organization of a specialized administrative structure in the 2010s. Moreover, this text discusses the construction of a doctrine on an ‘institutional calling’ for this fight, aiming to contribute toward comprehending these institutional practices’ participation in the logic of social domination. In the first topic, with a literature review on the Brazilian Prosecution Service (MP), its general characteristics are appraised. Then, through the examination of MPF’s 5th Chamber of Coordination and Review’s reports, a brief history of its fight against corruption is reconstructed. Finally, some aspects of the institution’s anticorruption ideology are analyzed to suggest, in conclusion, two sets of problems for further research.

Keywords:
Brazilian Federal Prosecution Service; fight against corruption; 5th Chamber of Coordination and Review; institutional calling.

 

Recebido para publicação em 21/03/2022
Aceito em 21/04/2022

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