Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 3, nov. 2022/fev. 2023
DOI: 10.36517/rcs.2022.3.d04
ISSN: 2318-4620

 

 

“Madrinhas”, “cunhadas”, “irmãs” e “peregrinas”:
o encarceramento de mulheres e as dinâmicas do Primeiro Comando da Capital (PCC)

 

Rosângela Teixeira Gonçalves OrcID
Universidade Federal do ABC, Brasil
rosangela.teixeira@ufabc.edu.br

 

Introdução

No Brasil, mesmo com um considerável avanço na última década,1 a maioria das pesquisas sobre o Primeiro Comando da Capital — PCC e o Comando Vermelho — CV, continua a investigar a atuação exercida pelos homens, enquanto os papéis desempenhados pelas mulheres nas organizações criminosas2 permanecem nas sombras dos estudos e políticas públicas.

Supostamente, a relativa invisibilidade das mulheres nos debates sobre o crime organizado é um produto da percepção geral destas como apêndices de seus companheiros. Entretanto, ignorar que as mulheres desempenham funções nas organizações limita uma compreensão abrangente e não traz uma imagem completa do fenômeno.

Portanto, o presente artigo, fruto da pesquisa de doutorado desenvolvida pela autora, traz para a reflexão, narrativas que apresentam a dimensão das dinâmicas estabelecidas pelas mulheres em três diferentes unidades prisionais femininas do estado de São Paulo e que perpassam as relações com o PCC, evidenciando as diferentes posições que as mulheres ocupam, bem como a natureza dos vínculos, das conexões e os pontos de contato na organização.

No estado de São Paulo, desde o ano de 2010, o pesquisador que tem como objeto de estudo o sistema prisional deve submeter seu projeto ao Comitê de Ética em Pesquisa da Secretária de Administração Penitenciária (CEP/SAP). Com o objetivo de realizar entrevistas com as mulheres em cumprimento de pena, encaminhei o projeto de pesquisa para a apreciação, que resultou em um parecer positivo, após um ano de trâmites, devoluções e ajustes.

Posteriormente a realização de reuniões com as equipes diretivas das unidades prisionais, foi possível entrevistar trinta e cinco mulheres, sapatões, homens e mulheres transexuais em três diferentes penitenciárias, localizadas no estado de São Paulo. Optou-se neste trabalho por identificar as unidades nas quais a pesquisa foi realizada através das siglas Penitenciária Feminina I — PI, situada na zona da Alta Paulista, inaugurada no ano de 2001, fez parte do chamado Plano de Expansão3 das unidades femininas da SAP, Penitenciária Feminina II- PII, localizada na capital paulista, diferenciava-se das demais por possuir um pavilhão que custodiava majoritariamente mulheres estrangeiras e a Penitenciária Feminina III, também localizada na capital, sendo essa a maior penitenciária feminina da América Latina, cuja gestão do cotidiano, no momento das entrevistas, estava sob o domínio do PCC.

Nas três penitenciárias as entrevistas buscaram apreender nos discursos, as representações sobre as unidades, realizada pela direção, administração, grupos de mulheres presas e os eventuais acordos entre a administração da unidade e as lideranças do Comando. O que as narrativas das trinta e cinco entrevistadas, que vivenciavam os dias e as noites dentro das celas e entre os muros e as grades das prisões apontaram é que suas trajetórias, relações e conexões estabelecidas com as dinâmicas do PCC são múltiplas e diversas. Histórias e vidas marcadas pela interseccionalidade de gênero, cor, classe social, idade, que se fazem e se fizeram possíveis, dentro e fora do cárcere impactando diretamente o cotidiano e as relações estabelecidas com as administrações penitenciárias, com as agentes, com as companheiras de cela, com as irmãs, os setores, as cunhadas, as peregrinas, os sapatões etc.

Para garantir o sigilo das mulheres entrevistadas, a identificação das narrativas será realizada através do uso de nomes fictícios, sendo ressaltadas suas principais características, de forma a sem revelar suas identidades, possibilitar que os leitores compreendam a produção de suas interpretações sobre o cotidiano nas unidades penitenciárias pesquisadas.

A pesquisa teve como objetivo analisar e compreender se os procederes do PCC, construídos a partir da hegemonia masculina, quando acionados no cotidiano das penitenciárias femininas, acabam por intensificar a opressão e ou a violência ou se conferem um caráter de representação e de legitimidade na defesa de direitos da população de mulheres presas. A análise também buscou investigar os batismos, interditos para o batismo, as punições, principalmente no que diz respeito à orientação do afeto e da sexualidade, com o objetivo de compreender os impactos no cotidiano das prisões. Para o presente artigo, foram trazidas reflexões acerca de como são estabelecidas ou negociadas, as relações dentro das diferentes unidades penitenciárias a partir das posições ocupadas pelas irmãs, cunhadas e guerreiras e com os membros do sexo masculino do PCC, os irmãos.

“Madrinhas e batismos”

Foi após a segunda megarrebelião, no ano de 2006, que o PCC deu início ao batismo de mulheres interditando naquele momento, as cunhadas, mulheres casadas ou que mantinham relações com os irmãos e as que estabeleciam vínculos e laços de afeto com pessoas do mesmo sexo.4 Nos últimos dez anos, com o crescimento do número de mulheres presas, o PCC passou ampliar os convites para o batismo, com o intuito de organizar o cotidiano, as relações e as regulações dentro das unidades prisionais, como por exemplo, a proibição do consumo de crack e a gestão dos corpos, cujo convívio não é permitido na mesma penitenciária.5

A escolha e o convite dos homens e mulheres para incorporar a organização através do batismo têm como responsabilidade os padrinhos e madrinhas, que realizam a indicação e que irão acompanhar e se responsabilizar pelas ações e decisões tomadas pelos integrantes. No caso da indicação de novos irmãos, o padrinho deve ser necessariamente um membro já batizado para poder indicar o novo membro (DIAS, 2013). Enquanto que para as mulheres, a pesquisa constatou que existem diferenças substanciais no que tange a figura da madrinha.

As madrinhas podem ser irmãs batizadas, como também mulheres com uma caminhada,6 ou seja, com uma trajetória no mundo crime, que não tenham passado pelo ritual de batismo, ou cunhadas, mulheres que mantém vínculos e relações de afeto com irmãos, membros batizados na organização.

Como exemplo da diferença entre as figuras dos padrinhos e das madrinhas, uma das interlocutoras da pesquisa, Margareth, 33 anos, branca, mãe de cinco filhos, presa há cinco anos na PIII, unidade penitenciária em que a gestão era realizada pelo Comando, exemplificou o caso de uma madrinha, acusada de cometer mais de dez homicídios e de pertencer ao que foi chamado de PCC de Saias pela imprensa, condenada a 90 anos de prisão e que mesmo sem ser batizada, teria uma “capacidade para além do Comando”.

Ela não se batizou, mas é uma madrinha. Só que armaram pra ela, aí ela foi excluída de dentro da cadeia, agora ela tá em Tremembé, agora ela foi pra igreja. Ela ajudava muito, não deixava ninguém tomar pau, as meninas tava devendo e ela ia lá chorar, colocava escola de samba aqui pra dentro. As irmãs escutavam, ela tinha uma capacidade pra além do Comando. (Margareth, 33 anos, branca, presa na PIII).

A madrinha que possui uma caminhada, ou seja, uma trajetória reconhecida no mundo do crime7 é necessariamente uma figura respeitada entre a massa, e a sua indicação é considerada como um privilégio para a nova integrante do Comando. Como aponta Dias (2013), os padrinhos conferem um grau de credibilidade, diante da confiança que depositam no afilhado e na relação estabelecida com a organização. Caso os afilhados dos padrinhos e madrinhas, contraiam dívidas ou sejam excluídos, aqueles que fizeram a indicação, de acordo com o dicionário disciplinar, ficam necessariamente durante o período de um ano, sem poder realizar a indicação de novos indivíduos para o batismo.8

Moreira (2015) apontou que os núcleos familiares ultrapassam os limites da vida social básica, resultando em organizações políticas e em produções materiais. As relações de compadrio são resultado na maior parte das vezes, da cerimônia de batismo, segundo as primeiras constituições do arcebispado no Brasil. Aos padrinhos cabia a garantia de assessorar os afilhados na fé cristã, o que com o passar dos anos extrapolou a religião, passando a significar proteção e trocas de favores. A autora assinala para os ganhos adicionais das escolhas daqueles que seriam os compadres, as inúmeras possibilidades e obrigações, resultantes da instituição de compadrio, na qual tantos os padrinhos, os afilhados e os pais, poderiam se beneficiar mutuamente, cabendo a cada um, distintos papéis na manutenção de uma instituição de vínculo. Segundo a autora, a presença das madrinhas, não se faziam presentes com frequência nos batismos, sendo por vezes comum a figura de dois padrinhos e de nenhuma madrinha.

Ou seja, historicamente, no Brasil, a família que incluía relações simbólicas como afinidade, quando se contraia o parentesco através do matrimônio, une também através do parentesco simbólico, como as relações de compadrio. Tanto as primeiras quanto as últimas podem estar relacionadas a interesses comuns, que ligam as famílias a redes amplas de clientelismo, como trocas e favores (MOREIRA, 2015).

No PCC, o compadrio passou a ser estendido para as famílias que se formam dentro, ao redor e através dos muros da prisão, formando a família original, a família 15:33, na qual os irmãos e as irmãs, convidam um novo integrante e formam com o novo membro, um elo. De acordo com Dias (2013), é o padrinho quem irá se vincular a pessoa convidada para fazer parte da organização, sendo ele, quem irá avaliar a capacidade do indicado pertencer ao Comando, constituindo-se enquanto o seu fiador.

Dias (2013) e Biondi (2010) apontam como características e qualidades fundamentais para que os homens sejam indicados para integrar o Comando: a capacidade de oratória, articulação, negociação, planejamento e reflexão, sendo esses elementos imprescindíveis para o convite. No contexto das relações estabelecidas no mundo do crime, a disposição de todas essas características, associadas à capacidade de antecipar movimentos, é chamada de “visão”. Biondi (2018) define um “ladrão de visão”, como sendo aquele que percebe e avalia movimentos, situações, traça estimativas de configurações futuras, é capaz de expressar-se bem, assim como de argumentar, sendo ainda, na maior parte das vezes, inteligente e bem informado.

No que diz respeito aos atributos necessários para que uma mulher possa ser convidada para ingressar nos quadros da organização como irmãs foram mencionadas a importância de uma “caminhada no mundo do crime”, ou seja, uma trajetória de feitos e a disposição e a ausência de temor para o cometimento de crimes, o que leva a respeitabilidade entre os pares. Além desses atributos é indispensável uma conduta ilibada e honesta em relação aos fundos da organização, além da capacidade para dialogar com a população e com a direção, os diretores de disciplina, agentes prisionais, entre outros atores.

Porque hoje em dia se você entrar na cadeia e for uma mina malandra que souber trocar ideia você vai ser convidada pra ter um papel. Se você é uma mina malandra, que tem uma visão você recebe o convite, eu já recebi o convite, pra entrar na irmandade, pra gente tá se unindo, pra gente ser grandes (Margareth, 33 anos, branca, presa na PIII).

O procedimento do batismo para as mulheres dentro do sistema prisional é diferente do que ocorre quando elas estão em liberdade. A “rua é campo aberto”, em oposição à prisão enquanto “campo fechado”, foi à elucidação de Margareth, quando falava sobre o processo, para explicar o porquê à quantidade de trâmites burocráticos serem maiores do que nas ruas. Dentro da prisão, após a indicação para o batismo, são reunidas informações sobre a vida pregressa da mulher, com o intuito de analisar a conduta e a caminhada, fora da unidade prisional. Questionamentos como “com quem você andava e com quem você falava”, são inventariados para verificar a possibilidade de ingresso na organização.

A lista de perguntas que vão compor o relatório colhido foi identificada durante a interceptação de uma investigação9 e serão trazidos aqui, levando em consideração as ressalvas que devem ser feitas ao material, fruto de uma operação policial.

Pergunta 1: Os irmãos e irmãs fizeram o convite para fazer parte do Primeiro Comando da Capital, vai aceitar de corpo, alma e coração?

Pergunta 2: Leu todo o Estatuto, do 1° ao 18° item e teve o entendimento da ideologia e da disciplina do Primeiro Comando da Capital?

Pergunta 3: Já fez parte de alguma gangue, quadrilha ou de outra facção?

Pergunta 4: Já fez uso de pasta base, de crack ou de outra droga proibida?

Pergunta 5: Já segurou algum tipo de flagrante que não era seu dentro do sistema ou na rua ou cobrou algum valor em dinheiro para benefício próprio?

Pergunta 6: Já teve algum envolvimento com pessoa do mesmo sexo ou ato de homossexualismo?

Pergunta 7: Os padrinhos te passaram total entendimento dos trabalhos implantados pela família?

Pergunta 8: Já fez alguma caminhada que fere a ética do crime e que possa desabonar a trajetória dentro do Comando?

Pergunta 9: Já foi conduzido a algum prazo particular ou a algum arame da família?

Pergunta 10: Está ciente das guerras que o PCC vem enfrentando com as facções inimigas?

Pergunta 11: Sabe quem são seus inimigos?

Após o extenso inventário, uma espécie de relatório é elaborado a respeito da vida da indicada, existindo, portanto, a necessidade de comunicação com o exterior da prisão. Esse processo pode levar entre dois e três meses, o que faz com que o batismo dentro do cárcere seja um processo moroso, em comparação com o processo que se dá fora dele, cujo ritual ocorre em um menor tempo.

Após findar o recolhimento das informações, a candidata deve ler o estatuto, concordar a assinar, dando ciência que conhece as regras e os procederes do PCC. Em seguida, o termo de batismo é encaminhado para a torre10 e pode levar mais alguns meses para regressar a resposta, que pode ser negativa ou positiva.

“As irmãs”

Conforme Varella (2017) e reiterado em outros trabalhos (DIAS, 2013; PADOVANI, 2010) as irmãs acabam atuando, como uma instância decisória nos pavilhões, semelhante a juízas, tendo autonomia para resolver desentendimentos e questões cotidianas. São definidas como um tribunal de primeira instância, pois caso a demanda seja considerada mais complexa, muitas vezes o caso é encaminhado através de um celular, para a “sintonia”, espécie de tribunal de segunda instância formado por presos do sexo masculino, que exercem liderança sobre um determinado território (PADOVANI, 2010).11 Para Yara, 37 anos, parda, mãe de dois filhos, presa há dez anos, filha de pai batizado no PCC, que cumpria pena na PIII e que trabalhava no momento da entrevista no setor da mudança,12 a irmã tem como uma das funções responsabilizar-se pela conduta das mulheres presas, no cotidiano da unidade prisional.

Se tiver uma irmã em um pavilhão ela vai cuidar de 300 presas, imagina na rua, quanto não vai ter pra ela cuidar. A gente fala cuidar, porque se for ver mesmo as irmãs e o setor é quase uma babá, né? (Yara, 37 anos, parda, cumprindo pena na PIII).

Durante sua pesquisa, Padovani (2010) afirmou ter escutado por mais de uma vez que uma das principais atribuições das irmãs, era a de “cuidar da vida das bandidas”, cuidado esse que por vezes recai sobre a vida sexual das mulheres presas, seja relacionado ao envolvimento com os homens do Comando ou com mulheres. Outras definições a respeito das irmãs identificadas pela autora e que carregavam uma carga pejorativa, diziam respeito às posições ocupadas pelos homens e pelas mulheres no PCC, como por exemplo, “as irmãs são as lagartixas dos irmãos”.

Nas três diferentes unidades prisionais em que a pesquisa foi realizada, existia em cada pavilhão, a figura de uma disciplina.13 Na PIII14 unidade que possui três pavilhões, existia, portanto, três disciplinas, que tinham como responsabilidade cobrar o respeito às regras vigentes nos estatutos como a proibição da entrada do crack, evitando a ocorrência de brigas, a fabricação de armas, discussões, agressões físicas, extorsões, reprimindo ações que podiam vir impactar a ordem (VARELLA, 2017).

A irmã, que tem o papel de “sintonia” é quem recebe o salve,15 comunicado transmitido através do celular pela figura do sintonia geral das cadeias, função ocupada por um irmão. Para controlar a conduta de cada mulher que ocupa as posições nos setores, é escalada uma irmã por pavilhão e é de sua responsabilidade a escolha daquelas que vão ocupar as vagas na faxina, saúde, elétrica, horta, requisição, boia, assistência social, jurídica e cozinha, essa última quando está sob a responsabilidade das mulheres presas (VARELLA, 2017).

Na PIII, Margareth, 33 anos, interlocutora da pesquisa afirmou que existia ao menos uma irmã por pavilhão, sendo naquele momento o total de doze irmãs em toda a unidade. “Tem duas no ímpar, no par tem três, no dois tem quatro e no três tem três, são doze, é um número pequeno, mas é um número forte, que consegue tocar”. Os nomes das mulheres indicados para ocupar as vagas nos setores, que correspondem às funções de manutenção do cotidiano da unidade, necessariamente partem da irmã “o setor do pavilhão é o setor da irmã, então a irmã escolhe e a polícia acata”, ela explicou quando questionei se todos os nomes indicados pela irmã eram aceitos pela direção da unidade prisional.

Dráuzio Varella (2017) detalhou que para trabalhar nos setores, as mulheres devem ter comportamento exemplar, como por exemplo, “não podem bater boca com ninguém, faltar ao respeito com as companheiras e funcionárias ou desobedecer às regras de convívio apreciadas pela facção” (VARELLA, 2017, p. 129).

Necessariamente toda irmã é setor, ou seja, todas estão registradas como um setor na unidade prisional e recebem pela função exercida através da Mão de Obra Indireta — MOI.16 Entretanto, não são todas as irmãs, que exercem a função na qual está registrada, podendo optar por trabalhar ou não na atividade designada.

Na planilha as irmãs estão registradas como setores normais, a que mora comigo, ela tá registrada como boieira, ela exerce no café da manhã e na janta, ela gosta assim. Tem umas que fazem, se eu falar que todas que fazem é mentira. Tem umas que aproveitam e não fazem (Yara, 37 anos, parda, cumprindo pena na PIII).

Algumas irmãs recebiam além do MOI, um auxílio mensal do PCC para exercer a função, que foi mensurado como sendo de R$300,00 no ano de 2018. E, em liberdade, não necessitavam pagar a “mensalidade” ao Comando, pois de acordo com Margareth, que já tinha sido casada com um irmão, a organização compreende que “são mães de família que deixaram tudo, pra tá fazendo o corre, não tem que pagar”. Já outra interlocutora questionou a cobrança das mensalidades, feita às mulheres em liberdade. “Você vai ter que pagar pra ser malandra, pra ser bandida? Na cadeia não, na rua paga R$600,00”.

Dias (2013) apontou que na primeira fase do Comando existia a obrigatoriedade de os irmãos presos pagarem uma taxa mensal ao PCC. No ano de 2013, após a reestruturação do Comando a obrigatoriedade do pagamento por aqueles que estavam presos, foi abolida e a cobrança passou a ser considerada como extorsão. Para os irmãos que estão fora do sistema prisional, o pagamento da mensalidade é um elemento central e deixar de fazê-lo pode acarretar em punições e até na exclusão definitiva dos quadros da organização. De acordo com a autora, o pagamento dessa taxa17 é o único compromisso financeiro que os irmãos têm com o Comando.

Diante de tais assimetrias, é possível afirmar que ao serem os homens que alimentam o caixa do Comando, através das mensalidades, confere-se aos irmãos, um capital simbólico e econômico, o que de acordo com uma das interlocutoras, torna-se uma estratégia para “aumentar a família, a mulher ganha um dinheirinho e o homem paga”, o que possibilitaria assim, aos homens demandar e ordenar serviços das irmãs, que recebem pelo exercício da função. Conforme aponta Federici (2019), historicamente os homens, graças ao seu salário conquistaram o poder de supervisionar o trabalho doméstico não remunerado das mulheres, como também de usar as mulheres como serviçais e de puni-las. Diante do poder monetário e dos relatos das interlocutoras, pode-se afirmar que os irmãos, fazem uso do trabalho das irmãs, dentro das penitenciárias femininas.

A pesquisa também identificou que assim como o batismo, a inserção na folha de pagamentos do Comando, também leva algum tempo. “Algumas recebem, algumas não, demora um pouco pra sair. Passa pra final, a final passa pro caixa e o caixa passa pro resumo, até chegar aqui tem um tempo”18 (Margareth, 33 anos, branca presa na PIII), o que por vezes impacta na manutenção das mulheres dentro do cárcere.

Durante a realização da pesquisa foi possível verificar a existência, na penitenciária III, unidade considerada como estando sob o domínio do PCC, dois diferentes perfis de irmãs, mulheres batizadas no PCC, que serão apresentados aqui, na forma de tipos ideias. O conceito de tipo ideal em Weber (1992) busca apresentar um objeto em sua forma pura, com o intuito de compreender aspectos do fenômeno social, a partir de uma maior ou menor aproximação. Uma das principais características do tipo ideal, é que enquanto tipo puro, ele não corresponde à realidade, mas pode auxiliar na compreensão de um fenômeno sociológico.

O primeiro perfil diz respeito às mulheres mais jovens que são batizadas dentro da prisão, consideradas como tendo o perfil para integrar a organização são convidadas por uma madrinha para serem batizadas. São geralmente denominadas pelas mais velhas, filhas, esposas ou parentes de homens batizados no PCC, de “novinhas” ou “emocionadas”. Em tese seriam mulheres que não compreenderiam ao certo como a organização funcionava e estariam iludidas com a ideologia do PCC.

Padovani (2018) também identificou em sua pesquisa que existiam as que se denominavam como a “velha guarda do crime” e que afirmavam não estar gostando dos rumos que as “meninas novas” estavam tomando e se posicionavam como antagônicas ao pavilhão conhecido como o QG do PCC, local em que estavam as “novinhas batizadas”. Em suas falas, a autora identificou uma marcação geracional do crime, que também foi possível observar nos diálogos com as mulheres entrevistadas na presente pesquisa.

Suárez e Sousa (2016) refletiram sobre o pensamento dual, que caracteriza o caráter hierárquico nas relações entre homens e mulheres, a partir das palavras que definem os sexos e que são sustentadas por uma relação dicotômica. As autoras citam como exemplo, termos como superior, racional, forte que são relacionados aos homens e as mulheres, termos como emocional, inferior e fraco que são formados através da reprodução de um ideal patriarcal. A mulher enquanto inferior, fraca e dotada de emoção é uma percepção socialmente construída e quando desconstruída possibilita a participação e a ação no cenário político (BOURDIEU, 2012). As mulheres não estão eximidas de atitudes e práticas machistas, considerando que o machismo é presente na formação dos indivíduos e nas instituições sociais, como a família, a escola e a imprensa (OLIVEIRA; MAIO, 2014). Portanto, não é possível acreditar que no mundo do crime e dentro das instituições prisionais a reprodução do machismo esteja erradicada, o que permite atentar para a desqualificação das irmãs, que optaram pelo batismo, sem uma trajetória anterior no mundo do crime, como sendo, uma decisão guiada pela emoção, ao invés da razão.

Outro perfil identificado através das narrativas foi o das mulheres que buscavam ingressar através do batismo no PCC, para aferir capital social19ou financeiro dentro da prisão. Bourdieu (2012) foi quem primeiro fez uma análise sistemática do conceito de capital social, o definindo como um agregado de recursos efetivos ou potenciais ligados à posse de uma rede durável de relações, mais ou menos institucionalizadas de conhecimento ou de reconhecimento mútuo ou em outros termos, à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns, mas também unidos por ligações permanentes e úteis.

Assim como o perfil anterior, essas mulheres acabavam não sendo tão respeitadas pela população, quanto às irmãs, que possuíam uma trajetória anterior junto à organização. Por vezes, uma madrinha poderia ser mais respeitada do que uma irmã, afinal, a madrinha é quem possui uma conexão com o Comando, e é quem faz a indicação para os irmãos, das futuras irmãs.

Tem uma irmã que chegou aí que não tem nada, que não tinha nem sabão em pó pra lavar, fica o dia inteiro, querendo conduzir a vida do próximo. Não sabe de nada, coitada, pegou o papel tem 2 meses, tá querendo mostrar serviço (Margareth, 33 anos, branca, presa na PIII).

Existiam também, as mulheres que foram batizadas fora do sistema prisional, mulheres que estavam presas há muitos anos ou que tiveram mais de uma passagem pela prisão. Geralmente são mais velhas, ou seja, fazem parte de outra geração e possuem uma “caminhada no mundo do crime”. Essas irmãs foram consideradas como sendo as “que estão pela população”, ou seja, que dialogam com as instâncias responsáveis da administração com o objetivo de auxiliar as mulheres que estão cumprindo pena, sendo ouvidas e respeitadas pela massa.

E, por fim, as cunhadas, mulheres casadas com irmãos, que mais recentemente passaram a serem batizadas. Após o diálogo com diferentes interlocutoras, foi possível constatar que o convite para o batismo das cunhadas anteriormente proibido, passou a ser realizado após o Comando identificar que existia um número reduzido de mulheres que possuíam as características consideradas como necessárias, ou seja, fossem heterossexuais, conhecessem os procederes do PCC e tivessem uma caminhada no mundo do crime20.

Sempre teve bastante casal, mas foi aumentando cada dia mais, já teve até uma vez que o comando pediu pra batizar algumas meninas e não tinha quem batizar, que era tão poucas as que podiam e as que podiam também não queriam. (Yara, 37 anos, presa na PIII).

De acordo com uma das interlocutoras, ainda que a cunhada e o irmão estejam casados, para que o ingresso da nova irmã no Comando seja autorizado às caminhadas são analisadas de maneiras distintas “o irmão tem uma história e uma caminhada diferente da cunhada, irmã batizada”. Entretanto, é prezado que o casal esteja em sintonia, ou seja, que ambos possuam uma caminhada íntegra, de acordo com os procederes do Comando “a sua história, é a sua caminhada, não adianta um ter uma caminhada correta e a outra falhar, é cobrada igual“.

É importante ressaltar aqui, que ainda que nos últimos anos tenha aumentado o número de irmãs, continuam sendo os homens que ocupam as posições finais do Comando. Portanto, uma irmã que esteja casada com um irmão estará mais próxima das instâncias de resolução final, do que outras mulheres batizadas que não nutram as mesmas relações, o que pode impactar nas dinâmicas que envolvam os debates dentro das penitenciárias femininas.

Peregrinas

Peregrina é o nome dado às mulheres que chegam à unidade prisional sem recursos financeiros, que não recebem o jumbo e que não dispõe de trabalho, ou seja, mulheres que enfrentam dificuldades para sobreviver na prisão. Para que não vivam apenas dos poucos produtos que são entregues mensalmente pelo Estado e da alimentação fornecida pela unidade prisional, as mulheres próximas ao PCC organizam o que é chamado de “ajuda às peregrinas”. As mulheres que ocupam os setores são responsáveis por mensalmente arrecadar junto à massa rolos de papel higiênico, sabonetes, giletes, absorventes e redistribuir para as que necessitam e nos dias de visita, salgados ou lanches são ofertados para quem não recebe jumbo.

Eu sou peregrina, não tenho visita, não tenho nada. Outro dia mesmo fizeram uma arrecadação aqui pra ajudar as peregrinas, eu fui chamada, me deram papel higiênico, sabonete e pasta de dente. (Raíra, 70 anos, branca, presa na P1).

Raíra estava presa há 3 anos e três meses, residia anteriormente em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, e foi apreendida no aeroporto, enquanto viajava com destino a Istambul, com uma grande quantidade de drogas. Dentro da prisão recebia ajuda de muitas mulheres, pois ela não recebia visitas, jumbo ou dinheiro no pecúlio. “Tenho muita ajuda das mulheres, tia, eu lavo sua roupa, tia, o que a senhora precisa no dia da compra e aqui no semiaberto também”. Diante da sua condição de peregrina, afirmou sentir-se protegida pelo Comando, “tem umas irmãs aqui, elas são muito protetoras, protege muita gente, eu me sinto protegida”.

No entanto, o auxílio às peregrinas pode chegar ao fim após alguns meses, caso o Comando identifique que não houve mobilização para encontrar trabalho, seja ele formal ou informal. Ou seja, a condição de peregrina pode ser algo transitório. Algumas mulheres carregam o título apenas por um período, enquanto outras, como as idosas que não podem ocupar as vagas de trabalho disponíveis em decorrência de problemas de saúde, acabam sendo consideradas como peregrinas enquanto durar o cumprimento da pena, recebendo o auxílio até o final da sua permanência na prisão.

A recusa ao batismo

Ao longo da pesquisa, foi possível identificar mulheres que afirmaram terem recusado o convite para o batismo. O perfil das que não aceitaram tornarem-se irmãs, foi majoritariamente o de mulheres que estavam atuando no mundo do crime, junto ou próximas ao PCC, antes mesmo da organização batizar as primeiras mulheres. Além das mulheres que já atuavam no mundo do crime, mulheres que foram casadas com irmãos e possuíam redes de contatos em outras unidades prisionais, ou com membros batizados fora ou dentro das unidades prisionais, chamado de “meu pessoal”. Diante da rede que conseguiam mobilizar de dentro do cárcere, acabavam na maioria das vezes optando por não se batizarem.

Em decorrência da respeitabilidade adquirida ao longo de sua trajetória, de possuírem capacidade narrativa e argumentativa ou ainda e das relações articuladas acabavam estando muito próximas às lideranças ou ocupando posições próximas às irmãs. A grande maioria fazia parte do setor e possuía o respeito do Pavilhão (BRITO; GONÇALVES; DIAS, 2019).

Para além do capital social mobilizado pelas mulheres, algumas das interlocutoras afirmaram a recusa em aceitar os procedimentos mobilizados no Comando dentro do cárcere para garantir a disciplina e o respeito aos procederes, como os espancamentos, agressões e até mesmo o assassinato. Além da discordância das técnicas de controle utilizadas, integrar o PCC deixa mais iminente a possibilidade de bonde, ou seja, a transferência para outras unidades prisionais, com o intuito de desarticular a atuação da irmã.

O batismo, ou seja, tornar-se irmã, faz com que a mulher se comprometa com diferentes dinâmicas do cotidiano da unidade prisional, sob o domínio do PCC. Essa responsabilidade acarreta ainda, os riscos da função, já que na maioria das vezes quem responde por um pavilhão inteiro frente à direção são as irmãs, que ficam mais suscetíveis a castigos e transferências para regimes mais austeros. “As meninas que é malandra que tem uma visão, não vai somar, porque não quer dor de cabeça”.

Além disso, outro fator mencionado para não aceitarem o batismo, foi o de ausência de possibilidades para deixar de atuar junto à organização, sendo, por vezes, mencionado que o único caminho possível é o da conversão na igreja.

Para sair é apenas pela Bíblia, porque no crime tem coisas que tem que fazer que não condiz com o caminho de Deus. Eu conheço, eu vi ser fundada. Eu não faço parte, nunca quis, porque eu não acho que é pra mim. Ou você sai de um jeito, ou você sai morta, né? (Anaya, 44 anos, parda, presa na PII).

O Regimento Disciplinar do PCC indica as ações que podem levar um integrante a ser excluído do Comando, existindo 45 situações listadas e suas respectivas punições e possibilidade ou não de retorno, sendo possível afirmar a partir da leitura do documento e das entrevistas realizadas, que exclusões são frequentes na organização.

Uma irmã pode vir a ser sacada, ou seja, retirada da posição em que se encontra, por algumas razões, como a desaprovação e o descontentamento da massa com a sua postura ou caso quebre alguma regra estabelecida, como por exemplo, se relacionar afetivamente com outra mulher.21 Outras razões como roubo ou o sumiço de dinheiro do caixa da organização,22 também podem levar a destituição e a depender da situação, até a morte. Portanto, a irmã pode retornar para a massa, e alguém que compõe a massa pode vir a ocupar a posição de irmã.

Eu já vi mulher entrar pro Comando e em dois meses tomar pau e sair. O poder sobe à cabeça, aí, ela vai pro caixa do Comando, ela vai ficar responsável por todo dinheiro que entra. Aí, quando você vai fazer a conta pra fechar e mandar, tá faltando lá, só que aí você esquece que há um tempo atrás você bateu na companheira. Tá faltando, aqui, vai lá nas ideias, “tá faltando, irmã: cadê nosso dinheiro? Dou 15 dias pra aparecer com o dinheiro!” Não apareceu com o dinheiro, tomou um pau e foi sacada do Comando (Margareth, 33 anos, presa na PIII).

Assim sendo, de maneira semelhante aos critérios de escolha, instituídos para o batismo dos homens na organização, para uma mulher dispor de capacidade argumentativa, conhecer os procederes e o estatuto da organização a coloca em posição de negociar, tanto com direções de unidades prisionais, tanto com irmãos, torres e outros membros do PCC, mesmo sem serem batizadas.

Contudo, é necessário não cair nas representações estereotipadas de gênero, retirando a agência das mulheres, frente aos diálogos, negociações e debates com homens pertencentes ao PCC. Através das entrevistas foi possível identificar que as mulheres são agentes nas relações que estabelecem com outras mulheres, com instâncias diretivas, representantes do Estado, irmãos, torres e sintonias. Portanto, não necessariamente, a organização criminosa que foi fundada por homens e que possui uma maior quantidade de homens em instâncias decisórias, que resistências não possam ser manifestadas por mulheres, batizadas ou não.

A recusa ao batismo pode ser interpretada como uma forma de antagonismo à dominação masculina, que se impõe diante de uma organização e de normas e documentos produzidos por homens, que buscam normatizar o cotidiano de uma unidade prisional feminina, bem como os comportamentos das mulheres custodiadas e as relações estabelecidas no mundo do crime.

A moral sexual no mundo do crime — Interdições para o batismo

Ao desenvolver uma análise sobre as relações homoafetivas no Talavera Bruce, Julita Lemgruber (1983) identificou que os relacionamentos preenchiam uma série de necessidades, principalmente dos laços e vínculos de afeto, levando em consideração que grande parte dessas mulheres não mantinha contato com qualquer pessoa fora dos muros. As conexões supriam ainda, de acordo com a autora, uma série de necessidades que também perpassava a vida material na prisão, em que situações de extrema pobreza e de escassez de condições, acabavam por se consolidarem como uma forma de auxílio mútuo e de resistência.

No período em que realizou a pesquisa, Lemgruber (1983) identificou uma repressão severa às relações, por parte da direção da instituição, sempre legitimando em decorrência das brigas, que deveriam ser evitadas. Entretanto, durante o ínterim em que permaneceu na unidade, verificou apenas seis brigas cuja motivação fosse conflitos entre casais. Como nas unidades masculinas, quase não existiam repressões, as explicações encontradas foram que o controle ao comportamento sexual das mulheres, estava atrelado ao ideal feminino da mulher recatada, que deveria ser protegida e ter sua integridade preservada. As práticas que mais suscitaram em castigos nesse período, era o consumo de drogas e a manutenção de relações e troca de afeto entre mulheres, que chegavam até a direção, através das delações.

Ainda que as mulheres não estejam mais sendo punidas e controladas pela direção das unidades prisionais, o controle e a punição acabam sendo realizados por instâncias não oficiais, como o PCC, na figura das irmãs, que necessariamente devem possuir uma orientação heterossexual.

Como aponta Paul Preciado (2018), a heterossexualidade feminina branca, é antes de tudo, um conceito econômico que designa uma posição específica no centro das relações biopolíticas de produção de troca baseada na transformação do trabalho sexual, do trabalho de gestação, do cuidado dos corpos e de outas atividades não remuneradas no capitalismo industrial. Dessa forma, é impossível imaginar a rápida expansão do capitalismo industrial sem o comércio de escravos, a expropriação colonial e a institucionalização do dispositivo heterossexual como modo de transformação em mais-valia dois serviços sexuais não remunerados historicamente realizados pelas mulheres.

Historicamente a heterossexualidade nem sempre existiu e a transformação do capitalismo contemporâneo implicou em uma mutação da ordem sexo-gênero. Para Paul Preciado (2018), a heterossexualidade está fadada a desaparecer. Como já apontado anteriormente, o artigo 4° do Estatuto do PCC interdita ao batismo os homossexuais, que são colocados junto aos pedófilos, estupradores, entre outros indivíduos que tenham cometido atos, que são rechaçados pelas éticas do mundo do crime. Portanto, a matriz de orientação inteligível entre o sexo, o gênero e o desejo é um dos elementos que vão orientar o batismo de novos membros no PCC, e vão buscar gerir através de práticas reguladoras, que vão ter como função gerar identidades coerentes a partir de uma matriz de normas de gênero coerentes (BRITO; GONÇALVES; DIAS, 2019).

Considerando que no cotidiano das unidades prisionais a grande maioria das mulheres em algum momento, deu início a um flerte, namoro ou casamento com outra mulher, com um sapatão, ou uma entendida, o PCC passou a aceitar o batismo das cunhadas, mulheres casadas com membros da organização, o que anteriormente era proibido. Esse fenômeno indica uma divisão sexual do trabalho, em que cabia aos irmãos, às funções relativas ao mundo do crime, enquanto a esposa não poderia comprometer-se com as mesmas tarefas. Entretanto, como apontam as entrevistas, os papéis não são estanques, existindo cunhadas, que muitas vezes participaram de ações delitivas, mesmo sem o aval dos seus maridos.

Conforme Brito, Gonçalves e Dias (2019), a identidade de gênero, compreendida como associação entre o sexo, o gênero, a prática sexual e o desejo, efeito de uma prática regulatória, constitui-se enquanto uma instância que legitima práticas de poder no PCC, impactando as relações que decorrem desses interditos.

Ainda que os sapatões e os homens trans sejam considerados e respeitados nas redes e no mundo do crime e os cabelos curtos, shorts, blusas largas estejam presentes nos pavilhões, galerias, celas e raios, eles são interditados para o batismo, o que balizam as relações de poder instituídas nas penitenciárias femininas. Com relação às mulheres transexuais, presas em penitenciárias sob o domínio do PCC, existe a necessidade de se afirmar enquanto mulher trans. Gabriela, presa na PII, afirmou que quando foi presa, logo foi informada que deveria “se declarar”, pois “aqui é cadeia do Comando, eu disse que não tem nada a ver se é cadeia do Comando ou não, isso é problema meu”.

Na PIII circulavam algumas histórias de candidatas que tiveram o pedido de batismo negado, como de uma mulher que pretendia se tornar irmã e respondeu durante o interrogatório que teve um envolvimento rápido com outra mulher. Na busca pela “verdade” foi constatado que elas teriam sido casadas e, portanto, estaria interditada para o batismo no PCC.

É possível afirmar aqui, que mesmo os irmãos, companheiros e familiares, estejam fisicamente distantes, os homens ainda continuam se fazendo presente dentro das celas e dos pavilhões das penitenciárias femininas, através dos procederes do PCC, dos interditos para o batismo, decisões tomadas no âmbito das torres, núcleo composto pelas figuras dos irmãos.

O item 8 do Estatuto do PCC informa que: “Os integrantes do Partido [PCC] têm que dar bom exemplo à serem seguidos e por isso o Partido não admite que haja assalto, estupro e extorsão dentro do sistema”. Contudo, no início da organização, a manutenção de parceiros sexuais do mesmo sexo dentro da prisão era aceita normalmente. Dias (2013) explica que muitos homens continuaram mantendo relações homoafetivas e continuaram dentro da classificação de “homens”, tendo em vista que a masculinidade era definida pela performance do papel ativo e não pela relação com uma pessoa do mesmo sexo. Entretanto, “a nova hierarquia de poder não se baseava mais no exercício individualizado da violência física e sim em outros elementos definidores de status, como a posse de bens ou relações familiares estáveis fora da prisão” (DIAS, 2013, p. 206).

Desta forma, ao contrário da situação anterior, em que constitui fonte de status subjugar sexualmente outro preso, manter relações homossexuais dentro da prisão expressava a incapacidade do preso para manter vínculos com o lado externo da prisão, desvalorizando-o socialmente. Nos últimos anos da década de 2000, o PCC passou por mudanças na sua estrutura interna e promoveu alterações na forma de agir imposta à população carcerária e nos princípios e valores que orientam essa ação. O princípio de classificação dos homossexuais passou a englobar não apenas os presos passivos sexualmente como também aqueles que exercem o papel ativo na relação, que passaram a ser vistos como bichas, sofrendo todas as consequências discriminatórias associadas a essa condição (DIAS, 2013).

De acordo com Dias (2013) os diferenciais de poder entre os dois grupos, presos heterossexuais, que tinham companheiras que os visitavam ou dinheiro para pagar prostitutas, e os presos homossexuais, foram ampliados significativamente, as barreiras que os separam tornaram-se muito maiores e a segregação passou a estar vinculada à ideia de contaminação. As celas em que a população LGBTQA+ ficam são vigiadas por membros do PCC e seus copos, pratos e talheres são separados.

No que diz respeito às unidades femininas, não existe a separação de celas ou pavilhões,

É uma cadeia de mulher, então, a maioria de mulher, gosta de mulher, eu aprendi isso aqui dentro (Marie, 42 anos, presa na PIII).

No entanto, mesmo não existindo a proibição ao convívio de casais de mulheres nos pavilhões os casais devem seguir regras, como em dias de visita, evitar toda e qualquer demonstração de afeto. Também não existe proibições, no sentido de um sapatão ocupar posições de trabalho próximas ao PCC, como a de faxina, desde que disponha de uma caminhada no crime e possua proceder.

Contudo, de acordo com Igor, de 21 anos, pardo, preso na PIII, os sapatões, não seriam “muito bem-vindos” na organização, “eles tem meio essa crítica com a gente”, pois seriam considerados pelos irmãos do PCC como motivo das separações e divergências entre os casais “vocês talaricam nossas minas”, seria essa a afirmação que teria ouvido a seu respeito. A talaricagem é definida no dicionário disciplinar do PCC como “quando se envolve ou tenta seduzir uma pessoa envolvida com outra com contato físico, em cartas, gestos ou mensagens”. A talaricagem, caso seja objeto de debate e caso chegue-se a conclusão que aquele ou aquela que foi acusada foi considerado culpado é alvo de punição e exclusão da organização criminosa, sem retorno e cobrança da parte do prejudicado, ou seja, aquele que foi traído, ou traída, no caso, pode pedir cobrança (BRITO; GONÇALVES; DIAS, 2019).

A interdição para o batismo dos sapatões, mulheres e homens trans no PCC pode ser identificada como mais uma das formas dos homens continuarem com a hegemonia no que diz respeito às instâncias decisórias e também financeiras. Para uma das interlocutoras, caso o batismo fosse autorizado, o respeito estabelecido pelos membros batizados poderia findar, pois envolveria relações de amor e de afeto dentro da prisão, o que poderia influenciar as decisões tomadas dentro do cárcere, pelas irmãs e também pelos irmãos batizados.

Aqui é um mundo, porque eu não sei como é na rua, mas aqui dentro uma não respeita a outra, por isso tem tanta briga, tanta confusão, na parte do homossexualismo, imagina se todas as irmãs fosse homossexual, quem ia respeitar elas, porque ia viver na mesma briga, que eles vive. Na mesma bagunça, na mesma traição, na mesma falta de respeito, então, é melhor deixar do jeito que tá. (Dandara, 64 anos, negra, presa na PIII).

O PCC se institui e se define enquanto família 15:33, família original, família verdade e como indica Toledo e Filho (2013) historicamente, o dispositivo da sexualidade, assegurava as famílias serem as guardiãs sobre seus membros. Dessa forma, buscava-se assegurar a heteronormatividade, excluindo toda a dissidência da norma, o que o PCC enquanto família regula e institui nos Estatutos, não se eximindo de controlar e definir a sexualidade dos irmãos e irmãs e batizados.

As mulheres, ao orientarem o desejo para outras mulheres, escapam das relações que as obrigam em direção ao homem, sejam obrigações sociais, físicas ou econômicas, como o trabalho doméstico, os deveres conjugais, a ilimitada produção dos filhos (WITTING, 2019).

No entanto, conforme aponta Federici (2019) a “misoginia também é agravada pelo racismo” e a “transfobia também agrava a misoginia” (FEDERICI, 2019, p. 100), portanto, diante de um Estatuto e de interdições explícitas para que os corpos que não identificam sexo, gênero e desejo, ou pessoas que transgênero, não possam alçar as posições de irmãs e de irmãos, podem ser vítimas de maiores dificuldades durante o cumprimento de suas penas em unidades que estão sob o controle e o domínio do PCC.

Considerações Finais

O feminismo interseccional possibilita uma leitura da existência social da mulher encarcerada quando sua identidade social é cruzada, por diversos marcadores sociais ao mesmo tempo (AKOTIRENE, 2020) e no estado de São Paulo, o PCC atua como uma instância que possibilita o posicionamento de mulheres, em relações de poder, que alteram profundamente as condições de vida dentro do cárcere.

Portanto, a participação, a trajetória e o envolvimento das mulheres com o Comando, não é uniforme. As mulheres desempenham diferentes papéis na economia do crime, o que permite caracterizar diferentes tipos de participação, em que suas funções, as colocam em posições subordinadas, de vítimas a protagonistas, lideranças e também perpetradores da violência.

Correr com o PCC garante na grande maioria das penitenciárias do estado de São Paulo o acesso a advogados, médicos e dentistas que podem ser contratados para atender as demandas dos seus integrantes, sejam eles homens ou mulheres em cumprimento de pena, assim como auferir os melhores empregos e salários e em alguns casos a comunicação direta com diretores de pavilhão e diretores gerais de unidades prisionais, que podem vir a atender pedidos e solicitações de indivíduos ou da massa. Garante ainda o recebimento de Sedex, o depósito de dinheiro na conta do pecúlio, possibilitando inclusive a contratação de serviços de limpeza e de beleza dentro da prisão, estratificando a massa.

Por outro lado, correr com o PCC também significa estar inserida em relações de poder em que muitas vezes estão subordinadas a um estatuto, regras e procederes, tendo muitas vezes que subordinar-se a decisões tomadas no âmbito das instâncias decisórias masculinas. Muitas mulheres acabam subordinadas aos homens, que ocupam as posições finais nas sintonias do Comando e além de atender as demandas da população, devem averiguar as condutas e deliberar a respeito de contendas e discussões, existindo ainda possibilidades de indisposição com a administração das unidades prisionais, o risco de transferência e de novos processos, o que mobiliza muitas vezes, a negativa para o batismo.

Diante da realização das pesquisas nas distintas penitenciárias, foi possível verificar que o Estado se vale das ameaças constantes de transferência para um regime mais rígido, com o intuito de adequar as ações das mulheres que ocupam a posição de irmãs nas penitenciárias, de forma que essas cumpram com as funções de controle dos corpos daquelas que habitam os pavilhões, sem, contudo, confrontar a administração das unidades prisionais, na luta por melhores condições de cumprimento de pena. Dessa forma, pautas que são consideradas como importantes e legítimas de serem demandadas junto ao Estado, como por exemplo, as más condições de alimentação, acabam ficando relegadas, em detrimento dos controles instituídos ao comportamento da massa orientado em acordo com os procederes do PCC.

O aumento da participação das mulheres no PCC pode ser compreendido como opção política e decisão de gestão da administração prisional. Seja pela opção de reprimir e prender mulheres em decorrência do seu trabalho precário na economia ilegal da droga ou através dos múltiplos e complexos processos colocados em prática pela administração prisional que transfere a gestão cotidiana dos espaços de convivência para as próprias presas e, desta forma, produz e reforça as dinâmicas das redes criminais, da violência e da vinculação ao mundo do crime. Ou ainda, diante das condições precárias de cumprimento de pena, onde dentro dos pavilhões, quem não possui condições financeiras de acionar jumbo ou o pecúlio, acaba muitas vezes dependendo do auxílio do Comando, como no caso das peregrinas. Assim, ingressar ou correr com o PCC, permite muitas vezes auferir melhores postos de trabalho, acessar advogados, médicos, dentistas, amenizando as condições precárias de cumprimento de pena nas penitenciárias femininas no estado de São Paulo.

Referências

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  1. No que diz respeito à presença e participação de mulheres em organizações criminosas, foi possível identificar as pesquisas desenvolvidas por Antunes (2017), Bumachar (2016), Gonçalves (2017), Lima (2013), Padovani (2015).↩︎

  2. Conforme apontam Salla e Teixeira (2020) a maioria dos trabalhos no campo das ciências sociais sobre crime organizado, ficam limitados a fenômenos relacionados à criminalidade capturada pelo sistema penal, articulada ou não ao comércio de drogas, de roubos e, sobretudo os grupos que se formaram na prisão nas últimas décadas. O presente artigo compreende o fenômeno do crime organizado a partir de uma análise sociológica do fenômeno, partindo da definição proposta por Guaracy Mingardi (2007), que mobiliza a noção de mercados criminais e a relevância das conexões com o Estado, superando a percepção que apresenta o crime organizado como antagonista ou concorrente com o Estado.↩︎

  3. Inaugurada no ano de 2011, fez parte do que foi chamado pela SAP de “Plano de Expansão”, para a construção de penitenciárias femininas, com o objetivo de gerar novas vagas, frente ao aumento do número de mulheres encarceradas no estado. No ano de 2008, a SAP anunciou a construção de oito unidades penitenciárias para serem entregues em 2009, projetadas para o que o que foi chamado de “necessidades femininas”. O custo orçado das unidades possuía o valor de 34,4 milhões e tinham capacidade para 768 presas, com 660 vagas no regime fechado e 108 vagas para o semiaberto.↩︎

  4. Dentro do sistema prisional, são denominadas como entendidas mulheres que usam vestimentas lidas como masculinas, mas mantêm seus cabelos compridos, são referenciadas no feminino e se autoidentificam no feminino, entretanto, assumem posturas e têm gestos tidos como masculinos e, assim como os sapatões, suas performances nas relações são socialmente vinculadas ao masculino. E são designadas de mulheríssimas as que apresentam atributos marcadamente femininos, tanto nas vestimentas, quanto na estética, cabelos compridos, maquiagem, brincos e nas relações erótico-afetivas, sensualidade e passividadade (ANTUNES, 2017).↩︎

  5. São denominadas de “coisas” as mulheres que cometeram infanticídio, ou seja, o assassinato de crianças, de familiares como pais e mães ou o aborto, cuja presença não é permitida na mesma unidade prisional que ocupam as demais mulheres.↩︎

  6. Padovani (2018) conceituou a caminhada como sendo o termo que faz referência à vida pregressa, utilizada tanto pela polícia como pelos dos ladrões. Por caminhada entende-se ainda o caminhar, o ato de correr junto com alguém que está preso ou dentro da prisão, no castigo. “Caminhar junto: levar comida, mandar cartas, visitar, conversar, acompanhar o companheiro, a companheira de cela, a amiga, a namorada, a esposa, durante a pena. Alguém que envia cartas, jumbo, ou faz visitas, está no pedal, no corre, pedalando, correndo juntos”. (PADOVANI, 2018, p. 87).↩︎

  7. Para José Ricardo Ramalho (2008), em “Mundo do Crime: a ordem pelo avesso”, aponta que na prisão o mundo do crime e o mundo do trabalho, aparecem enquanto uma oposição de fundamental importância. A figura do nato corresponde àquele que apresenta os atributos de quem fez a opção pelo mundo do crime, ou seja, a figura do delinquente, em oposição a aqueles que atribuem sua passagem ao acaso. A figura do malandro, no mundo do crime, era uma das principais e dizia respeito à experiência, ao conhecimento e às regras de procedimentos. Estar no mundo do crime significava estar legitimado, em razão das acusações e infrações aos códigos e à legislação.↩︎

  8. Item 45 do Dicionário Disciplinar, punição por afilhado: Quando o afilhado é batizado no salve, e se for excluído por dívida particular, o padrinho fica um ano sem batizar, se for dívida com o Comando o padrinho toma 90 dias.↩︎

  9. Operação Flashback.↩︎

  10. Nas etnografias de Biondi e Feltran a torre é definida como uma posição política relacional existente no PCC e que não pode ser confundida com a posição de chefia ou de gerência, que não corresponde a um modelo piramidal de organização (BIONDI, 2018). A torre foi considerada por Varella (2017) como um tribunal de segunda instância, geralmente é formada por irmãos, homens presos em diferentes penitenciárias, que são encarregados de ouvir as partes, testemunhas, chegando à deliberação, no caso dos debates e dando ou não o aval para as batizadas que terão a suas vidas escrutinadas.↩︎

  11. De acordo com uma das mulheres entrevistadas, os debates que envolviam dívidas, estupros e violência eram discutidos em conjunto, chegando a existir momentos em que eram levados para uma instância superior. Segundo ela existe uma hierarquia, sendo necessário que o debate prosseguiu para a para a “torre”, envolvendo os irmãos.↩︎

  12. Na PIII, as mulheres responsáveis pelo setor da “mudança” e da “inclusão”, eram as responsáveis por identificar qual o local que a ingressante iria passar o período dentro da prisão, o que variava de acordo com as pessoas e as relações estabelecidas fora dos muros da prisão e também dentro, caso aquela que cruzava as grades já tivesse sido presa.↩︎

  13. De acordo com Dias (2013) piloto, disciplina ou palavra são postos de liderança locais dentro do PCC, dentro das unidades prisionais, determinados bairros ou comunidades dominadas pela organização. É a autoridade máxima no local ou na região e tem como função manter a disciplina a partir das ordens do Comando.↩︎

  14. Durante o trabalho, optou-se por identificar as penitenciárias nas quais a pesquisa foi realizada através das siglas PI (Penitenciária Feminina I localizada na região oeste do estado), PII (Penitenciária Feminina II localizada na capital) e PIII (Penitenciária Feminina III, também localizada na capital), com o objetivo de garantir o sigilo das mulheres entrevistadas, cujos perfis, podem vir a ser identificados, assim como o corpo técnico de psicólogos, assistentes sociais e Agentes de Segurança Prisional (ASPs), que contribuíram para a presente pesquisa. Também foram omitidos os nomes de todas as entrevistadas para a presente pesquisa, que foram identificados através do uso de nomes fictícios.↩︎

  15. De acordo com Dias (2013) piloto, disciplina ou palavra são postos de liderança locais dentro do PCC, dentro das unidades prisionais, determinados bairros ou comunidades dominadas pela organização. É a autoridade máxima no local ou na região e tem como função manter a disciplina a partir das ordens do Comando.↩︎

  16. As pessoas em cumprimento de pena no estado de São Paulo recebem um salário, do qual 10$% são retidos em conta pecúlio para utilização quando saírem em liberdade e até 25% fica para o MOI, que se consiste em um rateio para garantir o salário aqueles que atuam em serviços no interior da unidade prisional, como nas cozinhas, lavanderia e manutenção. Fonte: Fundação de Amparo ao Preso ressocializa detentos através do trabalho.↩︎

  17. No período em que Dias (2013) fez a pesquisa, a taxa variava entre R$600,00 a R$1500,00, não sendo possível precisar o montante atual.↩︎

  18. Segundo ela uma das mulheres com quem conversei no ano de 2018, as irmãs recebiam R$300,00 de auxílio financeiro do PCC, enquanto estão dentro da unidade e quando em liberdade não necessitam pagar a “mensalidade ao Comando”, pois “são mães de família, que deixaram tudo, pra tá fazendo o corre, não tem que pagar”.↩︎

  19. Segundo Portes (2000) o conceito de capital social não incorpora uma idealização verdadeiramente nova, estando presente tanto nas teorias de Durkheim como em Weber. A inovação do conceito de capital social vai incidir sobre as consequências positivas da sociabilidade, e chama a atenção para o fato de que as relações não monetárias podem ser fontes importantes de poder.↩︎

  20. Não foi possível precisar com exatidão o momento exato em que teve início o batismo das cunhadas.↩︎

  21. Item 27 do dicionário disciplinar: homossexualismo é quando mantém relação ou atos obscenos com pessoas do mesmo sexo. Punição: Exclusão sem retorno. Item 36 do dicionário disciplinar: Pederastia: Se caracteriza quando se pratica sexo com pessoas do mesmo sexo, difere do homossexualismo porque o praticante é ativo somente e não passivo.

    Punição: Exclusão e é cabível cobrança com análise da sintonia.↩︎

  22. Item 31 do dicionário disciplinar: Mão na cumbuca: É caracterizado quando rouba algo da organização, dinheiro, drogas, armas, etc. Trata de uma situação grave. Punição: exclusão e morte depende da situação com análise da Sintonia.↩︎

Resumo:
O presente artigo é fruto da pesquisa de doutorado que teve como objetivo compreender a estrutura e o funcionamento do Primeiro Comando da Capital — PCC em três diferentes penitenciárias femininas localizadas no estado de São Paulo. Através da realização de trinta e cinco entrevistas com mulheres, sapatões, homens e mulheres transexuais, agentes penitenciários e visitantes das unidades prisionais, a investigação buscou analisar se os procederes do PCC, construídos a partir da hegemonia masculina, quando acionados no cotidiano das penitenciárias femininas, acabam por intensificar a opressão e ou a violência ou se conferem um caráter de representação e de legitimidade na defesa de direitos da população de mulheres presas. A pesquisa buscou ainda verificar como as relações são instituídas ou negociadas, a partir das posições ocupadas por irmãs, cunhadas e guerreiras e como são estabelecidas as relações com os membros do sexo masculino do PCC, os irmãos. A análise também versou a respeito dos batismos, punições e dos interditos para o batismo, principalmente no que diz respeito à orientação do afeto e da sexualidade, com o objetivo de compreender os impactos no cotidiano das prisões. Nas considerações finais o presente artigo aponta que ainda que muitas mulheres apresentem resistências ao PCC, o Comando se consolidou nos pavilhões das unidades penitenciárias femininas, realizando junto ao Estado a gestão das dinâmicas e do cotidiano nas penitenciárias femininas no estado de São Paulo.

Palavras-chave:
Encarceramento de mulheres; gênero; Primeiro Comando da Capital.

 

Abstract:
This article is the result of a doctoral research that aimed to understand the structure and functioning of the PCC within the female prisons located in the state of São Paulo. By conducting thirty-five interviews with transsexual women, shoes, men and women, in three different prison units, the investigation sought to analyze whether the procedures of the PCC, built on the basis of male hegemony, when triggered in the daily life of female prisons, end up by intensifying oppression and / or violence, or by giving them a character of representation and legitimacy in the defense of the rights of the population of women prisoners. The research also sought to verify how relations are instituted or negotiated in women’s prisons, based on the positions occupied by sisters, sisters-in-law and warriors and how relationships are established with the male members of the PCC, the brothers. In addition, it analyzed how baptisms, punishments and interdictions for baptism, especially with regard to the orientation of affection and sexuality. In the final considerations, the present article points out that although many women show resistance, male domination, undertaken through the sisters’ procedures and baptism, the Command consolidated itself in the pavilions of the female penitentiary units, carrying out with the State the management of the dynamics and the daily life in the female penitentiaries of the state of São Paulo.

Keywords:
Incarceration of women; genre; First Capital Command.

 

Recebido para publicação em 20/03/2022
Aceito em 11/10/2022

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