Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 3, nov. 2022/fev. 2023
DOI: 10.36517/rcs.2022.3.d06
ISSN: 2318-4620
Fações criminosas:
um balanço da produção acadêmica no Brasil (2000-2022)
Nas últimas décadas, os textos que mapearam a produção sobre crime e violência no país apontaram contribuições significativas e o crescimento da área dos estudos prisionais, mostrando a incontornável importância de se levar em conta crime e prisão como partes integrantes de uma mesma dinâmica (ZALUAR, 1999; ADORNO, 1993; MISSE et al. 2001; SALLA, 2006; CAMPOS; ALVAREZ, 2017; LOURENÇO; ALVAREZ, 2018).
Nas ciências sociais, a literatura que discute a atuação de grupos criminosos dentro e fora das prisões conta com uma série de trabalhos em diversos contextos geográficos (DECKER, KATZ; WEBB, 2008; JACOBS, 1974; PHILIPPS, 2012; PYROOZ, DECKER; FLEISHER, 2001; SKARBEK, 2010, 2011). Hoje, as chamadas facções criminosas constituem parte integrante da cadeia de relações econômicas, sociais e políticas dentro das unidades prisionais, influenciando também as dinâmicas em áreas urbanas, onde exercem poder. Assim, é possível dizer que o crescimento desse fenômeno social nas últimas duas décadas teve um duplo impacto, por um lado nas prisões, por outro em áreas urbanas.
Mas, antes de avançar no detalhamento do desenvolvimento dos trabalhos que discutem dinâmicas criminosas dentro e fora das prisões, é necessário delimitar o que estamos falando quando usamos o termo “facção criminosa”? Uma definição operacional requer, aqui, a percepção de sete fatores fundamentais que fazem parte da configuração desses grupos e balizarão nossa construção conceitual de facção criminosa.
“Proceder” e pertencimento ao “mundo do crime”: os agrupamentos descritos nos diferentes trabalhos observados aqui são compostos por indivíduos inscritos dentro do “mundo do crime”, que compartilham códigos e valores de sociabilidade entre seus membros. Assim, o chamado “proceder” opera como um tipo de ordenamento social dentro do cárcere, mas que também se dilata para áreas de influência das facções, como o espaço urbano periférico (RAMALHO, 2002; MARQUES, 2010).
Ganhos econômicos no crime e empreendimentos criminais: as facções se caracterizam por ter nas atividades ilícitas um empreendimento econômico de geração de renda, ou seja, sua existência e seus ganhos dependem fortemente de suas atividades dentro do crime. A facção é um meio de garantir os ganhos econômicos de seus membros. Nas prisões, também adotam uma lógica econômica que estabelece um empreendimento que ganha dividendos ao garantir aos internos acesso a bens e serviços (NAYLOR, 2000; COELHO, 2005).
Atuação “prisão-rua”: os grupos analisados em vários contextos não restringem a sua atuação a espaços prisionais ou a periferias urbanas. Exercitam seu poder e influência dentro das prisões, mas comandam também empreendimentos ilícitos fora dos cárceres, sobretudo em áreas periféricas e empobrecidas de grandes centros urbanos (HAGEDORN, 2005; DOWDNEY, 2003; FELTRAN, 2010).
Estrutura organizacional e hierarquia: os grupos criminosos em suas diferentes configurações adotam hierarquias, estruturas e designam tarefas específicas para seus membros (SKARBEK, 2010; FELTRAN, 2010; DIAS, 2011; BIONDI, 2014).
Normas e regimentos instituídos: há um esforço em comum — que pode ser mais ou menos intenso e/ou uniforme, a depender de vários fatores — em normatizar e regulamentar o comportamento dos seus membros e de todos os que estão sob sua influência (SKARBEK, 2010; DIAS, 2009; RIBEIRO; OLIVEIRA; BASTOS, 2019).
Punições e uma economia política da violência: o uso da violência não é tido como o primeiro nem único instrumento de coerção. Os mecanismos de correção e punição passam por uma gama diversificada que inclui a violência, mas não se resume a ela. Além disso, a força no espaço prisional e periférico passa a ser instrumentalizada a favor da estruturação do grupo, e não mais como atributo individual (SKARBEK, 2010; FELTRAN, 2010).
Apelo identitário, cultural e ideológico: embora de forma diferente e com maior ou menor intensidade, percebe-se a existência de uma dimensão que pode ser moral, ideológica ou política, cuja compreensão extrapola a perspectiva da racionalidade econômica. Essa dimensão traz a ideia de pertencimento a uma causa maior, ou seja, a uma coletividade imaginada (ALVAREZ; SALLA; DIAS, 2013; RIBEIRO; OLIVEIRA; BASTOS, 2019).
Cada um desses fatores presente nas facções criminosas são discutidos em profundidade na literatura referendada sobre o tema. A conjunção deles como síntese de definição para facção criminosa nos dá um conceito mais claro e um objeto mais robusto para trabalharmos sociologicamente.
Na literatura em língua inglesa, não há correspondente conceitual para “facção criminosa”; contudo, muitos desses fatores elencados acima se encontram nos conceitos de criminal groups e prison gangs. Skarbek (2010, 2011), por exemplo, estudando La Nuestra Familia, adota uma definição interessante e observa que este grupo é uma organização que usa a violência em empreendimentos ilícitos dentro e fora das prisões. Outros estudos que tratam da atuação e transformação das Maras na América Central apontam não só a atuação de tais grupos na prisão e nas ruas, mas o seu desenvolvimento em sofisticação política e internacionalização (MIGUEL CRUZ, 2010). Ou seja, o que é importante quando nos debruçamos sobre esse fenômeno social é que estamos a tratar de um conjunto de relações que ocorre contemporaneamente em diferentes contextos e acaba tendo denominações distintas, embora tenha fatores estruturantes similares.
Desde a década de 1970, estudos retratam o fenômeno de criação de coletivos conhecidos como “facções” no interior do sistema penitenciário de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. O Comando Vermelho (CV), inicialmente conhecido como Falange Vermelha, ofereceu os primeiros contornos dessa experiência de relação entre presos, que teve repercussões fora das prisões (PAIXÃO, 1987; COELHO, 2005). Antônio Luiz Paixão foi um dos primeiros dentro da sociologia brasileira a falar de maneira mais analítica sobre esses grupos dentro das prisões, a despeito de naquela época as “falanges” e as “serpentes”1 ainda não serem uma realidade em Minas Gerais.
A referência empírica mineira deste trabalho não pode servir de escusa a uma não-discussão do tema central do debate público de problemas penitenciários no Brasil — o papel e as atividades de grupos organizados de prisioneiros na constituição, manutenção e desestabilização da ordem social de presídios e penitenciárias (PAIXÃO, 1987, p. 73).
Dentre os fatores levantados por Paixão para a ascensão desses grupos (e que ainda hoje são importantes nas discussões sobre o tema) está o perfil dos internos, além da circulação de presos, via transferências de lideranças, o que alastraria a atuação desses grupos por várias unidades prisionais. Ele também pondera e relativiza a influência das organizações de esquerda na mobilização desses grupos.
A combinação “perversa”, em “falanges” e “serpentes”, de assaltantes de banco e traficantes de tóxico, reincidentes e com longas penas a cumprir, é consistente com o comentário, em seção anterior deste trabalho, sobre a modernização da criminalidade metropolitana no país. Antes do contato com militantes de esquerda ou com membros de organizações de direitos civis, as atividades práticas de assalto a banco e tráfico de drogas já ensinara aos “novos” bandidos a ação organizada como requisito de eficiência. (PAIXÃO, 1987, p. 76-77)
Em meados da década de 1990, com o surgimento do Primeiro Comando da Capital (PCC)2 houve o aperfeiçoamento da organização dos internos, e essa organização rapidamente se capilarizou não só pelo estado de São Paulo, mas também atuando de maneira direta e indireta em outros estados do Brasil. Segundo a Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário (2009), já contávamos com mais de 30 facções atuando nas prisões brasileiras na década passada. Hoje, além do poder exercido em inúmeras prisões, as principais facções do país, o PCC e o CV, também já estabelecem influência e passam a atuar em países vizinhos, tais como Paraguai, Bolívia e Peru (MANSO; DIAS, 2017).
Para realizar este levantamento, utilizamos o Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES (catalogodeteses.capes.gov.br), que congrega atualmente as informações dos programas de pós-graduação do país. Esse banco de informações é formado a partir do sistema de “coleta”, em parceria com a área de tecnologia da informação da CAPES. O Catálogo vem sendo usado como ferramenta para produção de revisões bibliográficas de diferentes temas dentro das ciências sociais em virtude da representatividade e da abrangência dos trabalhos científicos veiculados na plataforma (DE AZEVEDO SOARES, 2021; ALEGRIA et al. 2020).
Dentro do intervalo temporal de 2000 a 2022, usamos como descritores de pesquisa os seguintes termos: “facção”, “facções”, “facção criminosa”, “facções criminosas”, “grupos criminais”, “grupo criminal”, “grupo criminoso”, “grupos criminosos”, “PCC”, “Comando Vermelho”. Os descritores “facção” e “facções” foram usados junto com o booleano “AND”, para restringir a amplitude da pesquisa, interseccionando os termos “violência” e “crime” — o que permitiu agrupar referências condizentes com os objetivos aqui propostos. Foram inclusas na pesquisa a presença dos descritores no título e/ou no resumo.
Os resumos das referências encontradas foram lidos integralmente para verificar se de fato o tema abordado se adequava aos critérios do fenômeno do qual estamos aqui tratando. Assim, todas as análises aqui feitas se referem a trabalhos que efetivamente fazem menção a facções criminosas que atuam no país. Todas as referências de grupo(s) criminoso(s) que não diziam respeito às dinâmicas aqui examinadas (tais como estudos sobre grupos criminosos ligados a estelionato, falsificação, etc.) foram excluídas. Também excluímos referências repetidas. Ao todo obtivemos 212 registros de distintas áreas do conhecimento.
Para uma análise mais detalhada, nas produções das Ciências Sociais, que porventura não tinham seus resumos disponíveis no catálogo CAPES, também foram pesquisados os repositórios institucionais para complementar possíveis lacunas de informação. Sabemos que, mesmo com os procedimentos e cuidados aqui adotados, o levantamento realizado poderá não contemplar toda a produção acadêmica de teses e dissertações no período; salientamos, contudo, que as eventuais ausências não têm nenhum caráter intencional. Nossa pretensão, aqui, não foi fazer um estudo exaustivo (incluindo tudo o que foi produzido), mas uma pesquisa descritiva e prospectiva. Neste sentido, o catálogo CAPES se mostrou uma boa fonte de informações.
A seguir exibiremos e discutiremos os resultados dessa pesquisa bibliográfica, de modo a pontuar aspectos comuns e frequentes observados nas produções e realizar uma análise mais pormenorizada dentro do campo das Ciências Sociais. No caso das teses e dissertações defendidas nas Ciências Sociais, foram examinadas ainda as abordagens metodológicas empreendidas na pesquisa.
Um primeiro dado que chama atenção é o volume da produção que menciona “facções” e/ou “grupos criminosos” como parte integrante de seus problemas de estudo. Olhando as últimas revisões bibliográficas feitas no campo dos estudos prisionais e de violência, já era possível perceber a tendência de crescimento desses trabalhos (SALLA, 2006; CAMPOS; ALVAREZ, 2017; LOURENÇO; ALVAREZ, 2018; FACHINETTO et al., 2020).
Além disso, o tema “facções criminosas” se mostrou presente em diversas áreas do conhecimento, tendo, contudo, parcela significativa de sua produção realizada dentro nos programas de pós-graduação em Ciências Sociais (incluindo aí Sociologia, Ciência Política, Antropologia e Ciências Sociais), como é possível ver abaixo (Tabela 1).
Tabela 1 – Distribuição de teses e dissertações que tratam de Facções Criminosas (2000-2022)
Ciências Sociais n (%) | Outras Áreas n (%) | Total n (%) | |
---|---|---|---|
Teses | 22 (39,3) | 34 (60,7) | 56 (100) |
Dissertações | 45 (28,8) | 111 (71,2) | 156 (100) |
Total | 67 (31,6) | 145 (68,4) | 212 (100) |
Fonte: Catálogo de Teses e Dissertações CAPES (elaboração própria). |
A diversidade de áreas encontradas, para além das Ciências Sociais, nos mostra o quanto este tema tem visibilidade na agenda de pesquisa das Ciências Humanas e Ciências Sociais Aplicadas e o quanto tem potencial de transversalidade e transdisciplinaridade. Ao longo do período, pode-se perceber que houve uma tendência de crescimento de produções em outras áreas do conhecimento (Gráfico 1).
Gráfico 1 - Teses e dissertações nas Ciências Sociais e em outra áreas (2000-2022) |
Fonte: Catálogo de Teses e Dissertações CAPES (elaboração própria). |
Nas Ciências Sociais Aplicadas, chama a atenção as produções na área do Direito, sobretudo apontando as fragilidades e dificuldades legais, tanto na tipologia criminal quanto no comportamento do judiciário, para lidar com esse tema (CORDEIRO, 2009; LOPES, 2011; CORREIA, 2021).
Na Comunicação (10), destacam-se os estudos que analisam a cobertura que a mídia dispensou nos eventos relacionados aos Ataques de maio promovidos em 2006 pelo PCC em São Paulo (ALBANI, 2007; COUTO, 2009; LOPES, 2008). A parcialidade e a ênfase em uma cobertura falha que difundiu mais medo do que informação foram frequentemente descritos nesses trabalhos. Já nas Ciências Humanas, para além das Ciências Sociais, o destaque está na produção em Psicologia (10), Geografia (7), Educação (7), Serviço Social (6) e até mesmo Teologia/Ciências da Religião (3). No que se refere à Geografia (7), é importante mencionar a produção de programas afins, como: Estudos urbanos e regionais (1), Estudos fronteiriço (1) e Gestão integrada do território (1).
Tabela 2 – Teses e Dissertações nas diferentes áreas do conhecimento (2000-2022)
Área | Diss. | Teses | Total |
---|---|---|---|
Administração | 1 | 1 | |
Arquitetura | 2 | 2 | |
Ciências Criminais | 2 | 1 | 3 |
Ciências da Religião/ Teologia | 2 | 1 | 3 |
Coginição e Linguagem | 1 | 1 | |
Comunicação | 9 | 1 | 10 |
Crítica Cultura | 1 | 1 | |
Direitos Humanos | 4 | 4 | |
Demografia | 1 | 1 | |
Desenvolvimento Local | 1 | 1 | |
Desenvolvimento Regional e Urbano | 1 | 1 | |
Direito | 33 | 11 | 44 |
Estudos Comparados Sobre As Américas | 0 | 1 | 1 |
Estudos Fronteiriços | 1 | 1 | |
Economia | 3 | 1 | 4 |
Educação | 3 | 4 | 7 |
Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança | 0 | 2 | 2 |
Estudos Urbanos e Regionais | 1 | 1 | |
Geografia | 5 | 2 | 7 |
Gestão Integrada do Território | 1 | 1 | |
História Social | 1 | 1 | 2 |
Letras | 1 | 2 | 3 |
Memória: Linguagem e Sociedade | 1 | 1 | |
Políticas Publicas | 6 | 6 | |
Psicologia | 9 | 1 | 10 |
Química | 1 | 1 | |
Relações Internacionais | 2 | 2 | |
Saúde Coletiva | 1 | 3 | 4 |
Segurança Publica/Cidadã | 14 | 14 | |
Serviço Social | 3 | 3 | 6 |
109 | 36 | 145 | |
Fonte: Catálogo de Teses e Dissertações Capes (elaboração própria). |
Dos trabalhos encontrados, 29 dissertações foram realizadas em mestrados profissionais (sendo 14 na área de Segurança Pública, Ciências Criminais e afins), o que revela uma preocupação importante dos operadores de segurança com a formação acadêmica sobre o tema.
As dinâmicas de regionalização da produção se mantiveram semelhantes tanto para as Ciências Sociais quanto em outras áreas de conhecimento, sendo que a maior parcela dos trabalhos se concentrou na região Sudeste, tendo como objeto de estudo o PCC (Tabela 3). Esse dado se explica, em parte, dado a centralidade, importância e visibilidade do Primeiro Comando da Capital. Ao todo, contabilizamos 33 estudos que tratavam de questões referentes ao PCC, sendo 25 no Sudeste, 5 no Centro-oeste, 2 no Nordeste e 1 na região Sul.
Tabela 3 - Distribuição da produção total por região do país (2000-2022)
Ciências Sociais | Outras áreas | |||
---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |
Sudeste | 39 | 58,2 | 80 | 55,2 |
Nordeste | 18 | 26,9 | 28 | 19,3 |
Sul | 5 | 7,5 | 17 | 11,7 |
Centro-Oeste | 3 | 4,5 | 11 | 7,6 |
Norte | 2 | 3,0 | 9 | 6,2 |
Total | 67 | 100 | 145 | 100 |
Fonte: Catálogo de Teses e Dissertações CAPES (elaboração própria). |
A região nordeste também mostra expressividade no volume de suas produções, concentrando mais de cerca de ¼ (26,9%) de todas as teses e dissertações na área de Ciências Sociais e quase 1/5 na demais áreas. Esse dado pode ser compreendido pela expansão de dinâmicas relacionadas às facções criminosas no Nordeste e pelo crescimento de dinâmicas de violência na região. Contudo, mesmo com essa expressiva produção na região nordeste (Alagoas 1, Bahia 5, Ceará 7, Paraíba 1, Pernambuco 1 e Rio Grande do Norte 3), ainda não há produções nos programas de pós-graduação nas áreas de Ciências Sociais dos estados do Maranhão, Piauí e Sergipe.
Dentre os programas de pós-graduação nas Ciências Sociais, a área de Sociologia é a que concentra a maior parte da produção, tendo 46,7% das dissertações e 45,5% das teses sobre facções criminosas (tabela 4). As afinidades de abordagens teórica, temáticas de estudo e metodologias de pesquisa dos trabalhos realizados nos programas de pós-graduação em Ciências Sociais e Sociologia é um dado importante que nos permite fazer uma análise integrada desses trabalhos que constituem a maioria da produção das diferentes áreas das Ciências Sociais.
Tabela 4 - Distribuição por áreas específicas das Ciências Sociais
Área do programa | Dissertações | Teses | ||
---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |
Antropologia | 7 | 15,6 | 4 | 18,2 |
Ciência Política | 3 | 6,7 | 1 | 4,5 |
Ciências Sociais | 13 | 28,9 | 6 | 27,3 |
Sociologia | 21 | 46,7 | 10 | 45,5 |
Outros* | 1 | 2,2 | 1 | 4,5 |
Total | 45 | 100 | 22 | 100 |
Fonte: Catálogo de Teses e Dissertações CAPES (elaboração própria). | ||||
*PPG Estudos de Cultura e Território e PPG Sociedade e Cultura. |
Para fazer uma análise mais substantiva sobre os assuntos tratados foi feito um levantamento das palavras-chave das 45 dissertações e 22 teses encontradas, posteriormente essas palavras foram agregadas em categorias. Foram encontradas 14 categorias que no seu conjunto expressam 90,2% de todas as palavras-chaves. Olhando mais em detalhe, vimos que nos estudos realizados dentro das Ciências Sociais há uma preocupação por parte dos autores em situar conceitualmente seus trabalhos. A partir da análise realizada, vimos que termos que fazem referência a conceitos e abordagens são os mais mobilizados, cerca de 16,8% de todas as palavras-chaves se referem a isso. No que diz respeito a temas, as questões que tratam de gênero e geração, mais especificamente de juventude e mulheres, aparecem em cerca de 9,4% das palavras-chave encontradas, sendo a segunda categoria mais frequente, seguida por violência/vulnerabilidade 8,6% e prisão/punição 8,2%, conforme a tabela abaixo (Tabela 5).
Os dados mostram ainda que os estudos sobre facções criminosas nas Ciências Sociais tendem a mobilizar e a dialogar com questões ligadas as ações de controle social e da polícia, dizem respeito a descrição de dinâmicas locais (lugares), relacionam-se com políticas públicas, tráfico de drogas, manifestações culturais, sociabilidade e áreas periféricas. Esse conjunto de dados nos mostra como o tema facções criminosas acaba sendo um ponto de encontro e convergência para o estudo de muitas questões que acabam sendo modificadas a partir da existência e atuação desses grupos.
Tabela 5 – Categorização das palavras-chaves encontradas em teses e dissertações nas Ciências Sociais
categorias | n | % |
---|---|---|
Conceitos | 41 | 16,8 |
Geração/Gênero | 23 | 9,4 |
Prisão/punição | 21 | 8,6 |
Violência/vulnerabilidade | 20 | 8,2 |
Facção/facções | 19 | 7,8 |
Polícia/controle social | 16 | 6,6 |
Lugares | 15 | 6,1 |
Crime/criminalidade | 15 | 6,1 |
Política | 12 | 4,9 |
Nomes de facção | 10 | 4,1 |
Drogas | 9 | 3,7 |
Cultura | 8 | 3,3 |
Periferia/favela | 6 | 2,5 |
Sociabilidade | 5 | 2,1 |
Outros | 24 | 9,8 |
Total | 244 | 100 |
Fonte: Catálogo de Teses e Dissertações CAPES (elaboração própria). |
Nesse conjunto de teses e dissertações encontramos uma significativa diversidade de abordagens metodológicas, com predominância de técnicas qualitativas; as mais frequentes são as entrevistas, a observação direta e análise documental. O esforço de pesquisa, em muitos trabalhos, mostra que os pesquisadores precisaram ficar um tempo significativo em campo tanto em periferias (RUOTTI, 2016) quanto em prisões (GODOI, 2015; DIAS, 2011). A política das instituições governamentais de não veiculação de dados oficiais sobre a existência e magnitude das facções criminosas no país explica em parte a tendência por trabalhos qualitativos, mas além disso, dentro de nossas Ciências Sociais, em especial no campo dos estudos da punição, há uma predileção por trabalhos de perfil indutivo, utilizando técnicas qualitativas (LOURENÇO; ALVAREZ, 2018).
Dentre as técnicas de pesquisa observadas, algumas diferem do mainstream de técnicas qualitativas mais usuais, é o caso das análises de trajetórias e das histórias de vida (FELTRAN, 2008; KRAHN, 2020). Tais estratégias de pesquisa podem revelar meandros de uma sociabilidade em que as facções são parte constitutiva. Poucos trabalhos utilizaram técnicas quantitativas, apenas dois trabalhos usaram de análise de dados secundários (SANTIBANEZ, 2012; SILVESTRE, 2016) e somente um de estatística inferencial (BASÉGIO, 2009).
Os temas e questões abarcadas mostram expressam as preocupações de pesquisas mais frequentes, as quais podemos agrupar em 6 eixos principais, a partir de sua centralidade nos trabalhos examinados:
Sociabilidade juvenil e universo socioeducativo. O envolvimento de jovens no mundo do crime, a partir da faccionalização da juventude em bairros pobres periféricos (CANEPARO, 2015; SILVA, 2017; SANTOS, 2015; QUINDERE, 2020; PRATES, 2020) e no sistema socioeducativo (NERI, 2009; NOGUEIRA, 2020; ANDRADE, 2020; SILVA, 2021);
Vivência em periferias pobres, expressões culturais periféricas e em bairros populares com influência de facções, destacando as visões e perspectivas de sujeitos periféricos, moradores de áreas violentas onde atuam facções criminosas (CRUZ, 2009; ANDREA, 2013; BARROS, 2014; OLIVEIRA, 2017; SANTOS, 2019; FEITOSA, 2020; CARDOSO, 2021);
Mercado de drogas, características da disputa violenta entre facções rivais no mercado varejista de psicoativos e de manutenção de domínios, além de conflitos por conquista de novos territórios (LIMA, 2014, 2019; CONCEIÇÃO, 2015; CAMPOS, 2015; ALMENDRA, 2007);
Enfrentamento das facções pelo estado, políticas de controle social e percepções de agentes estatais. A percepção e a perspectiva de agentes do estado, policiais nesses trabalhos contribui para a ampliação substantiva de argumentos e representações acerca das facções criminosas (SILVA, 2014; CARDOSO, 2015; SABORIO, 2015; MACEDO, 2015; ROSLLER JUNIOR, 2019; SILVESTRE, 2016; MIRANDA, 2016; ROMERO, 2020);
Inserção das mulheres e relações de gênero dentro das facções criminosas, tanto em áreas pobres de centros urbanos quanto em contextos de confinamento (MATTOS, 2014; BRITO, 2017; OLIVEIRA, 2020; GONÇALVES, 2021);
Dinâmicas da ordem e sociabilidade nas prisões, cultura prisional e relações de poder entre os internos (FONSECA, 2002; DIAS, 2011; HIGA, 2017; CARDOSO, 2019; ALMEIDA, 2021).
No que se refere à produção na área de Antropologia, notamos a unânime presença de técnicas etnográficas como ferramenta de pesquisa. A influência das facções nas relações de sociabilidade e afeto (MARQUES, 2010; GRILLO, 2013; PADOVANI, 2015) e as relações de gênero (OLIVEIRA, 2012; LIMA, 2013) foram os temas mais constantes. Não obstante, também foram estudadas as questões ligadas à presença de facções no sistema socioeducativo (MOREIRA, 2012) e as dinâmicas existentes nas facções prisionais (BIONDI, 2009, 2014; AMARANTE, 2019).
A área da Ciência Política, por sua vez, mostrou maior preocupação, se comparada proporcionalmente às outras, com processos macros e políticas de segurança pública, discutindo processos de governança (MOREIRA, 2020), modelos de gestão (TEIXEIRA, 2018), enfrentamento institucional (FRESTON, 2010) e funcionamento das instituições de Justiça (PEDRO, 2021). Essas preocupações de pesquisa foram executadas utilizando essencialmente dados secundários e análise documental.
Observando o volume da produção aqui analisada e as diferentes áreas do conhecimento envolvidas pode-se afirmar que facção criminosa, como definida no início deste texto, se apresenta como um objeto de estudo abrangente, multifacetado e transdisciplinar.
Contudo, há uma predominância em analisar parte ou aspectos da atuação desses grupos criminosos em detrimento de análises mais gerais que envolvam suas atuações tanto nas prisões quanto em suas áreas de influência no espaço urbano. Como bem já apontaram Ribeiro e Teixeira (2017), o calcanhar de Aquiles, não apenas dos estudos sobre facções, mas sobre violência e criminalidade de uma maneira geral, está na dificuldade incorporar técnicas de pesquisa que possibilitem ir além do plano local e da análise descritiva. Isso coloca dificuldades para lograr uma produção mais abrangente do contexto nacional. Para além disso, ainda existem outros desafios que nos parecem importantes.
Se pensarmos nas questões mais constantes, o tratamento teórico e conceitual se coloca como uma preocupação, uma vez que se observa que poucos trabalhos apresentaram uma definição do fenômeno que estão tratando, não respondendo a uma pergunta fundamental: o que é uma facção criminosa? O pressuposto de que a definição compartilhada social e midiaticamente basta para definir facção criminosa empobrece teoricamente o debate. Esse desafio de aprofundamento teórico no campo de estudos prisionais já foi apontado anteriormente e continua presente (SALLA, 2006; LOURENÇO; ALVAREZ, 2018).
Além disso, a pouca elaboração conceitual coloca barreiras na análise comparativa de fenômenos semelhantes como os estudos de prison gangs, no contexto de países de língua inglesa (Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, África do Sul, por exemplo) ou Maras e Clicas, existentes em países de língua espanhola (Colômbia, Equador, El Salvador, Guatemala, para citar alguns). Acreditamos que o presente texto possa ter contribuído nesta construção conceitual, na medida em que enumerou e descreveu características fundamentais do que se convencionou chamar facção criminosa.
A agenda pública ligada às dinâmicas de violência e a presença de atividades de facções criminosas em todas as regiões do país também influenciou a agenda de pesquisa acadêmica, que com o passar do tempo aumentou sua produção em contextos diversos, como o Nordeste, Sul, Centro-Oeste e Norte. Essa maior diversidade de estudos é importante uma vez que pode fornecer material para possíveis análises comparadas sobre diferentes estados do país, além de poder revelar especificidades não presentes em grupos que atuam a partir do Sudeste, como o PCC e o CV.
Em síntese, se por um lado a construção do diálogo com a literatura internacional ainda é incipiente, por outro lado, também é desafiadora a tarefa de incorporar e integrar as diferentes contribuições que vem se produzindo por todo o país. Contudo, o desenvolvimento das pesquisas aponta para as interações e intersecções de vários campos do conhecimento que começam a ser exploradas em produções que vão além de compreender ou explicar esse fenômeno como sendo uma preocupação analítica exclusiva da sociologia do crime, da punição ou mesmo da criminologia, mas como um objeto de estudo complexo.
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Resumo:
O fenômeno social que envolve a atuação
organizada de grupos criminosos no país, tanto dentro quanto fora das
prisões, ganha importância e relevância dentro de diversas áreas do
conhecimento. Propomos aqui um conceito operacional de ‘facção
criminosa’ e a partir dele mapeamos a produção acadêmica dos programas
de pós-graduação (dissertações e teses) no Brasil. Foi utilizado o
Catálogo de Teses e Dissertações CAPES para o levantamento das produções
disponíveis. Foram encontradas 212 referências entre 2000 e 2022. Essas
referências foram agrupadas e analisadas levando-se em conta as
dinâmicas regionais e também as respectivas áreas de conhecimento. As
produções que compõem as Ciências Sociais, incluindo Antropologia,
Sociologia e Ciência Política somaram 67 referências. Há uma diversidade
nas questões abordadas, destacam-se os estudos sobre jovens, periferias,
disputas territoriais, formas de enfrentamento do estado e relações de
gênero. Quanto aos aspectos metodológicos há o predomínio de uma
perspectiva indutiva e de técnicas qualitativas. O crescimento e
diversidade temática das questões tratadas mostra o desafio na
construção do diálogo com diferentes campos do conhecimento, além de
incorporar as diferentes contribuições existentes nas áreas das Ciências
Sociais.
Palavras-chave:
facções criminosas; grupos
criminosos; periferia; prisão.
Abstract:
The social phenomenon that involves the
performance of criminal groups in Brazil, both inside and outside
prisons, is gaining importance and relevance within several areas of
knowledge. We propose here an operational concept of this phenomenon
(criminal faction) and based on it we map the academic production of
postgraduate programs (dissertations and theses) in Brazil. The Catalog
of Theses and Dissertations CAPES was used to search the available
productions. 212 references were found between 2000 and 2022. These
references were grouped and analyzed taking into account regional
dynamics and also areas of knowledge. The productions that make up the
Social Sciences, including Anthropology, Sociology and Political Science
totaled 67 references. There is a diversity in the issues addressed,
highlighting studies on young people, neighborhoods, territorial
disputes, forms of management and gender relations. As for the
methodological aspects, there is a predominance of an inductive
perspective and qualitative techniques. The growth and thematic
diversity of the issues addressed shows the challenge in building
dialogue with different fields of knowledge, in addition to
incorporating the different contributions existing in the areas of
Social Sciences.
Keywords:
criminal factions; criminal groups;
violent neighborhood; prison gangs.
Recebido para publicação em 25/05/2022
Aceito em 11/10/2022
ACESSO ABERTO
Copyright: Esta obra está licenciada com uma Licença
Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.