Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 3, nov. 2022/fev. 2023
DOI: 10.36517/rcs.2022.3.d03
ISSN: 2318-4620
Da Cadeia à Fronteira:
a transição territorial do Primeiro Comando da Capital
Pedro
Diogo
Gabinete de Segurança Institucional da
Presidência da República do Brasil
pedrondiogo@gmail.com
O presente artigo se propõe a analisar as transformações pelas quais vem passando nos últimos vinte anos o processo de produção de território do Primeiro Comando da Capital. Desde que o grupo foi fundado — na primeira metade dos anos 1990 —, até o presente momento, as formas de apropriação e as características do espaço apropriado têm se modificado substancialmente, sendo transformadas pela necessidade do PCC de atuar em contextos cada vez mais distintos daqueles em que surgiu.
Nesse artigo, esse processo de mudança é tratado como uma transição, na qual a facção é obrigada a sair de uma dinâmica territorial calcada essencialmente na apropriação dos espaços originalmente ocupados (aqui denominados de urbano-prisional) para se aventurar na disputa por território em contextos significativamente diferentes, situados nos ambientes definidos por esse artigo como rurais-fronteiriços. Esse processo de transição se dá basicamente pela necessidade do grupo de se expandir econômica e politicamente, obtendo acesso mais amplo aos grandes carregamentos de drogas e se tornando menos dependente dos atores criminais que dominam esses ativos no mundo interiorano-fronteiriço.
Em um primeiro momento será realizada uma breve discussão acerca do conceito de território e de sua aplicação no campo dos estudos do crime organizado, passando-se em seguida para uma leitura do cenário criminal brasileiro com enfoque no território. Nos blocos seguintes serão descritos e analisados os dois grandes cenários aqui tratados: o urbano-prisional e o interiorano-fronteiriço, atentando-se para a atuação e o desenvolvimento do Primeiro Comando da Capital nos dois contextos. No último segmento do artigo, é uma feita análise da transição territorial vivenciada pela facção ao se deslocar pelos seus novos cenários de atuação, tecendo ainda alguns comentários finais acerca dos possíveis novos rumos territoriais do grupo criminoso analisado.
É importante ressaltar esse artigo se valeu metodologicamente de múltiplas fontes de informação, utilizando desde a ampla bibliografia acadêmica e jornalística disponível sobre o assunto até dados produzidos pelos próprios integrantes do PCC. Os conteúdos produzidos pela própria facção consistem em planilhas, salves e outros instrumentos de registro e transmissão de informações elaborados pelo grupo, os quais podem ser encontrados parcialmente em anexo em Diogo (2021).
Ainda que não seja objetivo desse artigo aprofundar os conceitos clássicos aqui utilizados, faz-se necessário minimamente explicitar alguns recortes teóricos aplicados. O conceito de território consiste no principal recurso explicativo utilizado nesse artigo e, ainda que seja aplicado dentro de sus formulações mais usuais, parece adequado ressaltar os parâmetros utilizados.
Os debates sobre o conceito de território apresentam, hoje em dia, termos e elementos significativamente convergentes, ressaltando-se questões como exercício especializado do poder e apropriação do espaço. Mesmo fora do contexto europeu de elaboração teórica, os autores contemporâneos pouco têm se distanciado dos marcos propostos pelas teses de Claude Raffestin (1993), para quem território consiste em um espaço apropriado de forma concreta ou simbólica por um ator social.
Já os debates sobre o conceito de crime organizado configuram cenário mais amplo e problemático. Von Lampe (2018), em seu esforço de compilar conceituações de crime organizado, já obteve mais de 115 definições, as quais se mostram bastante variadas e, ainda que possuam elementos em comum, divergem em relação a alguns aspectos centrais. Elementos como hierarquia, especialização e busca pelo monopólio aparecem em boa parte das proposições formuladas, sobretudo nos anos 1970 e 80, sendo secundarizados nas décadas seguintes, quando conceitos como redes criminais passam a ocupar maior espaço no debate internacional sobre o assunto.
No âmbito do esforço ao qual este artigo se propõe, a contribuição conceitual mais importante é possivelmente a do cientista político colombiano Gustavo Duncan, que, ao analisar as organizações criminosas latino-americanas, constatou que estas se transformaram em estruturas de acumulação de poder centrais nos circuitos sociais mais pauperizados da região. Nesse sentido, a leitura de Duncan se mostra bastante apropriada para o presente trabalho, ao simultaneamente adequar o conceito ao contexto latino-americano e aproximar o debate à questão das relações de poder, estabelecendo um contraponto importante às visões, muitas vezes, economicistas adotadas pelos pesquisadores europeus e norte-americanos.
No Brasil, Marcelo José Lopes de Souza é um dos principais autores a desenvolver discussões sobre território e crime organizado. O trabalho desenvolvido por esse autor (SOUZA, 2000), no entanto, focou nas facções criminosas cariocas da época, as quais não haviam vivenciado de forma significativa um processo deslocamento de seu eixo espacial de atuação, restringindo-se, portanto, a produzir território no contexto das cadeias e favelas do Rio de Janeiro.
Uma leitura nacional do fenômeno criminal antes dos anos 1950 se mostra pouco adequada, em face à heterogeneidade do país e mesmo à falta de conexão entre as cidades e regiões que vigorou até essa época. Santos (1994) afirma que o Brasil, durante séculos se assemelhava “a um grande arquipélago” (SANTOS, 1994, p. 26), com capitais pouco conectadas entre si, inclusive do ponto de vista físico e logístico. Tal quadro só começa a ser, de fato, alterado, com os processos de industrialização e urbanização, intensificados a partir da década de 1950 do século passado, sobretudo na porção centro-sul do país.
Não há evidências de que as dinâmicas ilícitas seguissem lógica destoante desse cenário fragmentado, sendo, muito provavelmente, protagonizadas por atores locais, inseridos em fluxos espacialmente restritos. As quadrilhas criminosas tinham sua atuação geralmente limitada aos entornos urbanos onde estavam inseridas, havendo, eventualmente migrações de criminosos geralmente com intuito de se homiziar em estado distinto do que cometeu seus crimes ou ainda desbravar novas “praças”, nas quais as estruturas de segurança se encontravam menos consolidadas e capazes de responder a crimes mais bem planejados e executados. Tais episódios, no entanto eram raros, havendo clara concentração dos assaltos a bancos no ambiente urbano (AQUINO, 2010).1
Do ponto de vista do narcotráfico, somente a partir dos anos 70 surgem referências à existência de um mercado urbano robusto de entorpecentes e, por conseguinte, das organizações criminosas ligadas a ele. A massificação do consumo de maconha e a chegada da cocaína ao Brasil abririam perspectivas para o surgimento e adensamento de grandes grupos criminais no país. Esse fenômeno ocorreria de forma conexa a duas dinâmicas centrais para a proposta de análise desta pesquisa: o surgimento das facções de base prisional e a consolidação das atividades criminais na zona fronteiriça.
O surgimento das facções nos ambientes prisionais viabilizaria a conformação de grandes organizações criminais de matriz urbana, inexistentes no Brasil até então. Como será detalhado em etapa posterior deste trabalho, esses grupos estabeleceriam uma relação de “continuum” entre a vida prisional e as atividades criminais exercidas, sobretudo, nas favelas e periferias dos grandes centros urbanos do país.
Já os grupos interioranos têm sua gênese ligada em grande parte à consolidação da fronteira (em especial aquela do Brasil com o Paraguai e o sudeste do território boliviano) como lócus central para as atividades criminais, processo que se inicia no final dos anos 1970 a partir dos fluxos de contrabando, posteriormente incorporando drogas e armas. O trânsito desses fluxos pelas cidades interioranas situadas entre a fronteira e as grandes metrópoles incidiu no surgimento de uma “rota”; feição continuada do espaço, demarcada pelo trânsito frequente e perene de produtos e serviços ilícitos.
Esses seriam, de forma simplificada, os fenômenos que resultariam nos cenários territoriais que se pretende explorar na contextualização almejada nesse artigo. Entende-se que tais cenários territoriais do crime organizado no Brasil (aqui denominados de urbano-prisional e interiorano-fronteiriço) se apresentam, inicialmente, separados, avançando, todavia, no sentido de um processo de integração.
Evidentemente, a definição de tais cenários envolve algum grau de generalização, uma vez que supõe a existência de certa homogeneidade de atores e processos que não corresponde à plena realidade dos quadros verificados. Como veremos adiante, os cenários urbano-prisional e interiorano-fronteiriço consistem em categorias de análise, pautadas, no entanto, em especificidades de atores, processos e atributos facilmente identificáveis nos ambientes representados.
A tese defendida neste artigo se pauta na ideia de que o Primeiro Comando da Capital possui papel central no processo de integração dos dois cenários territoriais, uma vez que o grupo desenvolveu progressivamente uma ampla capacidade de transitar e aproximar dois ambientes até então razoavelmente apartados. Assim como o CV, o PCC surgiu no cenário urbano-prisional, porém, ao contrário da organização carioca, a facção paulista se introduziu de forma perene e intensiva no “mundo” interiorano-fronteiriço, logrando protagonismo nas rotas que interligam o ambiente limítrofe com Paraguai e Bolívia aos centros de consumo e exportação de drogas situados no eixo urbano São Paulo/Santos.
Ainda que o surgimento das facções certamente não inaugure o fenômeno da criminalidade urbana no Brasil, ele consiste em um marco para o modelo analítico aqui proposto. O surgimento das facções no ambiente prisional reordena o cenário dos ilícitos das grandes cidades, ao estabelecer uma relação direta entre o cotidiano dos cárceres e a dinâmica da criminalidade urbana, sobretudo aquela exercida nas periferias e favelas das principais metrópoles brasileiras.
Embora tal relação sempre tenha existido, em virtude de a população carcerária ser desde longa data majoritariamente composta por pessoas oriundas dessas mesmas periferias e favelas, o surgimento das facções inaugura uma relação de mando mais imediata entre as lideranças encarceradas e os operadores dos negócios ilícitos nas ruas, em especial aqueles ligados ao narcotráfico. Essa relação não pode ser reduzida, contudo, a uma subordinação dos integrantes em liberdade aos líderes encarcerados, ainda que envolva uma extensão do poder exercido no ambiente intramuros dos presídios para as ruas, fenômeno que se inicia no Rio de Janeiro e progressivamente se espraia para praticamente todo o país.
O surgimento das facções tem como período de referência o final dos anos 1970 e o início dos anos 80, embora a nacionalização desse fenômeno só tenha ocorrido mais de duas décadas depois. O principal marco para o surgimento desses grupos é a criação do Comando Vermelho (CV), evento já amplamente narrado pela literatura especializada destacando-se as obras de Lima (2016) e Amorim (2006). Para Michel Misse (2011), as relações de cooperação e proteção estabelecidas dentro das prisões no início dos anos 1980 pelo Comando Vermelho foi inovadora e permitiu a criação de uma grande rede, integrando as lideranças do varejo do narcotráfico local.
Embora os líderes iniciais do CV fossem essencialmente assaltantes de banco, progressivamente os narcotraficantes obtiveram proeminência na facção, em face à possibilidade que essa atividade oferece de permanecer delinquindo e obtendo renda mesmo em situação de encarceramento. O processo de deslocamento da principal atividade criminal dos líderes certamente teve grande influência no fortalecimento das conexões entre cárcere e rua, uma vez que o varejo do narcotráfico consiste em uma atividade mais territorializada do que o roubo a banco, demandando perenidade e controle espacial da favela para estabelecer atendimento regular à clientela.
O modelo de organização criminosa com forte vinculação com o ambiente prisional seria, de certa forma, repetido anos mais tarde com o surgimento do Primeiro Comando da Capital, em São Paulo. Posteriormente, a vinculação entre cárcere e “rua” seria disseminada Brasil afora, primeiramente a partir das próprias “células do PCC” e, em seguida, por meio das organizações que mimetizariam os modelos estabelecidos pela organização paulista. Pode-se dizer que, ao longo dos anos 1990 e na década seguinte, ocorreu um processo de maturação de um padrão de organização criminosa centrado na figura da facção e marcado pela simbiose entre as relações e práticas criminais estabelecidas nos espaços prisionais e aquelas desenvolvidas nas ruas das favelas e periferias dos aglomerados urbanos brasileiros.
Diversos fatores contribuíram para o processo de disseminação das facções pelo país, podendo-se elencar pelo menos quatro deles como mais recorrentemente citados nas análises já desenvolvidas sobre esse fenômeno: a massificação do uso do celular nas cadeias, a expansão do encarceramento no Brasil, o “boom” do consumo interno de cocaína e a convivência nas unidades prisionais das lideranças de organizações criminosas de diferentes partes do país.
A massificação do celular, e mais especificamente a dos smartphones, teria facilitado a construção de uma relação de simbiose entre os criminosos encarcerados e aqueles em liberdade, ao auferir instantaneidade ao fluxo de ordens entre as cadeias e as estruturas criminais situadas fora do cárcere. Organizações criminosas como o PCC, no entanto, levaram a gestão do mundo do crime via celular para outros patamares, ao instituir centrais telefônicas e realizar grandes conferências entre suas lideranças por meio de celulares. Os debates2 realizados por integrantes de diferentes estados consistiram em ferramenta fundamental para integrar as células do grupo e propiciar maior legitimidade às decisões tomadas pela facção.
O tema da massificação do encarceramento no Brasil foi abordado por diferentes autores, sobressaindo a pesquisa feita por Dias (2011), a qual centra seus esforços analíticos na dinâmica estabelecida no âmbito do estado de São Paulo. De acordo com a autora, ocorre ao longo dos anos 1990 uma expansão vertiginosa do encarceramento em todo o país, sendo esse processo ainda mais agudo no estado de São Paulo. Nessa lógica, a expansão das facções estaria ligada à farta disponibilidade de “mão de obra”, colocada a serviço desses grupos a partir do processo de encarceramento massivo. Acrescente-se que as péssimas condições das superlotadas unidades prisionais brasileiras também contribuiriam para que os presos se tornassem cada vez mais dependentes das facções, prescindindo dessas para acessar bens e serviços essenciais, bem como para garantir sua integridade física contra-ataques de rivais e arbitrariedades conduzidas pela própria ação estatal (ADORNO; SALLA, 2007).
A expansão do consumo de cocaína, decorrente da entrada do crack no mercado brasileiro, teria também propiciado a ampliação do principal mercado ilícito explorado pelas facções: o varejo do narcotráfico. Se a cocaína era uma droga cujo consumo estava vinculado historicamente apenas às elites, com o advento do crack ocorre um processo de massificação do consumo desse entorpecente, o qual tem em sua modalidade fumada, um produto mais barato e acessível a camadas da população que não logravam fazer uso recorrente do cloridrato, até então, bastante dispendioso.
Por fim, o processo de nacionalização das facções também teria se beneficiado do convívio entre as lideranças criminais de diferentes estados nas unidades prisionais. No final dos anos 1990 e início dos 2000, as estruturas de segurança dos estados apresentavam grande dificuldade em manter isolados, de fato, alguns dos principais líderes de organizações criminosas. Diante desse cenário, inicia-se um processo de intercâmbio de prisioneiros de alta periculosidade entre órgãos de segurança pública estaduais, no intuito de afastar essas lideranças de suas áreas de influência. A interação entre lideranças facilitou a articulação entre as organizações criminosas, resultando nas alianças entre facções e na disseminação dos métodos organizacionais adotados, sobretudo, pelo PCC e pelo CV. Posteriormente, foi criado o Sistema Penitenciário Federal, também com intuito de isolar presos, obtendo bons resultados em sua proposta de restringir as ações dos líderes, mas, igualmente, facilitando a aproximação entre criminosos de estados distintos.
É nesse contexto que surge e se expande o Primeiro Comando da Capital, ocupando rapidamente espaços no mundo prisional e nas favelas e periferias de São Paulo e boa parte dos estados limítrofes. Estima-se que cerca de 90% do sistema prisional do estado de São Paulo esteja sob influência do PCC (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2013, p. 63), sendo razoável estimar que parcela semelhante das biqueiras3 da Região Metropolitana de São Paulo também pertençam à facção, a integrantes dessa4 ou a traficantes que também estão alinhados de alguma forma ao Comando. Se é possível definir um espaço originário do grupo, muito provavelmente envolveria o sistema prisional do estado de São Paulo e a periferia da região metropolitana da capital, havendo ainda grande influência da facção nos municípios da Baixada Santista. No mais, à medida que se avança em direção ao interior do estado essa influência tende a se reduzir, ainda que existam importantes redutos da facção em cidades como Campinas, Ribeirão Preto e Presidente Prudente, dentre outras.
Autores como Jozino (2004) e o próprio fundador do PCC José Marcio Felício da Costa (Geleião) (BRASIL, 2005, p. 54) correlacionam o surgimento da facção a uma partida de futebol e um motim ocorridos no dia 31 de agosto de 1993 no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté (conhecido como Piranhão), no qual se encontravam encarcerados os indivíduos que viriam a ser conhecidos como os fundadores do grupo. Nessa partida, esse núcleo de internos teria executado os integrantes do Comando Caipira e pactuado a formação da facção paulistana.
A narrativa fundacional do PCC apresenta elementos especialmente pertinentes para a análise proposta neste trabalho. O enfrentamento violento narrado entre os grupos da capital e do interior (PCC e Comando Caipira) ressalta a existência de antagonismo entre a criminalidade oriunda desses dois cenários, contrapondo, de um lado, as lideranças egressas das favelas e periferias da Região Metropolitana e, do outro, indivíduos ligados às quadrilhas das cidades do interior paulista. Mais do que uma simples história acerca do embate entre dois bandos carcerários rivais, a narrativa sobre a origem do PCC carrega uma representação da prevalência dos grupos originários da metrópole paulista sobre as organizações advindas do interior do estado.
O poder que o grupo estabelece nas cadeias transborda para as ruas da metrópole paulista, em movimento bastante semelhante àquele protagonizado pelo Comando Vermelho, construindo o que neste trabalho é denominado continuum urbano-prisional. A simbiose estabelecida pelo PCC entre o mundo do crime no ambiente dos cárceres e aquele consolidado nas ruas parece ir além daquela alcançada pelas facções cariocas, pois ao colocar esses dois mundos na mesma sintonia (unificando condutas, regras e cadeias de comando) o grupo paulista consegue estabelecer certo grau de unicidade na criminalidade paulista, panorama bastante diferente do violento e disputado varejo de drogas do Rio de Janeiro. A construção dessa hegemonia decorre em grande parte da habilidade do grupo em negociar e em construir um discurso de união e de paz entre os ladrões, capaz de dirimir os antagonismos e disputas tão frequentes no mundo do crime.
A própria estrutura adotada pela facção reflete a relevância que os cenários urbanos e prisionais possuem para o grupo. A estrutura do PCC é relativamente bem conhecida no âmbito das forças de segurança, tendo sido analisada, sobretudo, em sucessivas investigações conduzidas pelo Grupo de Apoio e Combate ao Crime Organizado do Ministério Público de São Paulo (GAECO) e pela Polícia Civil deste mesmo estado. As informações disponíveis convergem para a centralidade que algumas células possuem nessa estrutura, dentre elas destacam-se as sintonias Geral Final, a do Sistema e a da Rua.
Há consenso entre os especialistas de que a cúpula decisória da facção integra célula denominada de Sintonia Geral Final (SGF), geralmente referida pelos próprios integrantes simplesmente de Final.5 Historicamente, a ascensão à Final depende do quanto um integrante é estimado e respeitado pelos demais, de sua proximidade em relação aos outros líderes e dos esforços que já ensejou em prol do PCC.
Segundo a denúncia do GAECO, a Final era integrada em 2013 por Marcos Willians Herbas Camacho (Marcola), Abel Pacheco de Andrade (Vida Loka), Rogério Geremias de Simone (Gegê do Mangue), Roberto Soriano (Tiriça), Daniel Vinicius Canônico (Cego), Fabiano Alves de Souza (Paca), Edilson Borges Nogueira (Birosca) e Júlio Cesar Guedes de Moraes (Julinho Carambola). Embora, o PCC possua atuação nacional e mesmo presença em outros países, uma breve análise das trajetórias criminais dos integrantes dessa cúpula deixa claro que todos eles têm ou tiveram como principal área de atuação a região Metropolitana de São Paulo. Dos oito principais líderes do grupo mencionados pelo GAECO, sete são nascidos na Região Metropolitana de São Paulo, sendo quatro paulistanos, dois do ABC paulista e um de Osasco/SP. Embora não atuem unicamente como varejistas, seus pontos de droga conhecidos estão, em sua maioria, também na metrópole paulista.
Tais fatos reiteram a ideia de que o PCC é, em sua essência, uma organização de origem paulistana, com suas raízes fincadas no ambiente urbano. Ainda que o grupo possua grande presença no interior e que alguns de seus integrantes mais importantes na cadeia do tráfico de drogas sejam dessa porção do estado de São Paulo, o poder dentro da facção encontra-se historicamente concentrado nas mãos dos líderes oriundos da Região Metropolitana.
A Sintonia do Sistema, por sua vez, é responsável por consolidar e coordenar todas as atividades realizadas pela facção no âmbito do sistema prisional paulista. A Sintonia do Sistema consolida e coordena diversas células da facção, subdivididas primeiro de acordo com o tipo de unidade prisional: o Sistema propriamente dito (penitenciárias destinadas a presos já condenados pela justiça), os CDP (Centros de Detenção Provisória), as Femininas (unidades prisionais destinadas às mulheres), as Comarcas6 (delegacias que custodiam presos) e as Colônias (unidades agrícolas de encarceramento), dentre outras. O esquema que se segue exemplifica essa lógica de forma simplificada, demonstrando como ela se aplicaria a quatro unidades penais hipotéticas (CDP1, CDP2, Penitenciária 1 e Penitenciária 2).
Cada uma dessas frações é ainda subdividida em células menores, as quais tem, geralmente, como unidade os estabelecimentos prisionais. Grandes estruturas carcerárias podem subdividir ainda mais, contando com células gerenciais do PCC em raios ou pavilhões específicos, conforme ilustra a Figura 1. Tal arranjo é, no entanto, bastante fluido, adaptando-se à realidade da unidade prisional e à relevância da facção na estrutura da facilidade carcerária.
Figura 1 — Diagrama simplificado da estrutura de gerenciamento do PCC no sistema prisional paulista |
Fonte: elaboração própria |
Considerando a origem prisional do PCC e a centralidade que o ambiente do cárcere possui no cenário criminal brasileiro, entende-se as motivações que levam a facção a empreender tamanho esforço para regular as cadeias e seus mercados internos. Embora os valores movimentados pelos presos possam parecer, a princípio, relativamente baixos, deve-se entender que a população prisional brasileira, com mais de 800 mil internos torna-se cada vez mais um mercado significativo, sobretudo para as facções criminosas.
É importante ainda atentar que o controle da venda de bens de toda natureza dentro do ambiente prisional implica em significativo acúmulo de poder para quem o detém. Há relatos de um amplo rol de atividades comerciais que seriam geridas pelo PCC no sistema prisional, passando pelas cantinas das cadeias, a venda de cigarros e narcóticos e o domínio das estruturas de jogo do bicho nas unidades.
Tão importante quanto a ocupação dos espaços econômicos do cárcere é a inserção nas posições de poder das cadeias. Os trabalhos elaborados por Dias (2011) e Biondi (2009) reiteram a ideia de que a facção ocupa espaços estratégicos dentro das unidades sob seu comando, em especial o cargo denominado de faxina, que consiste no indivíduo responsável por realizar a limpeza do presídio em determinados ambientes fora das celas. Esta mobilidade privilegiada confere ao faxina centralidade nas relações dentro do ambiente prisional, tornando essa função de extremo interesse para os integrantes do PCC (DIAS, 2011).
A regulação das relações entre os presos e a intermediação das questões entre a administração prisional e os internos consistem, possivelmente, nas principais estratégias do processo de ocupação de espaços políticos protagonizado pelo PCC nas cadeias. A partir dessa dupla mediação o grupo lograria fortalecer-se simultaneamente nas relações horizontais de poder (presos–presos) e nas articulações verticais (administração–presos), assumindo posição evidentemente vantajosa.
A Sintonia da Rua, por sua vez, é a fração responsável por gerenciar todas as questões relacionadas à facção no ambiente extramuros do mundo do crime do estado de São Paulo. A Sintonia da Rua é subdividida territorialmente em 8 unidades: Norte, Centro, Oeste, Leste, Sul (todas essas frações referentes ao município de São Paulo), ABC, Baixada e Interior.7 Esse modelo de fracionamento proposto no qual seis das oito unidades se referem à metrópole paulistana consiste também uma importante evidência da centralidade que a Capital possui na dinâmica do grupo.
Dentro da sintonia da Rua se mostra especialmente relevante para se compreender e analisar a dinâmica territorial do PCC o conceito de quebrada.8 A quebrada remete originalmente à ideia do espaço urbano socialmente fragmentado em classes, dividido entre os ambientes dos ricos e os dos pobres, semelhante à dualidade que, no Rio de Janeiro, se estabelece entre Morro e Asfalto. Nesse sentido, a quebrada corresponde ao espaço da pobreza e da precariedade. Freitas Junior (2017) se refere à quebrada como um local definível a partir da vulnerabilidade, propondo a “designação de quebrada à circunscrição, dentro dos bairros, que identificam os locais mais vulneráveis” (FREITAS JUNIOR, 2017, p. 22).
É importante ainda ressaltar que a quebrada consiste em uma referência espacial para quase todas as questões relacionadas aos membros do PCC em liberdade. Em regra, junto aos líderes da sua quebrada é que o integrante deve pagar a cebola, buscar apoio quando precisar e prestar contas quando for demandado; enfim, é contatando os líderes da sua quebrada que o irmão se mantém em sintonia.
Pode-se afirmar que a quebrada consiste na principal unidade territorial de gestão da rua para o PCC. Nessa escala a facção gerencia e desempenha boa parte de suas atividades na Rua, tanto as de caráter comercial quanto aquelas ligadas à regulação do mundo do crime e das relações sociais na periferia em um sentido mais amplo. Essas últimas atividades, tendem a ser realizadas preferencialmente a partir da escala da quebrada, uma vez que a regulação dos pequenos conflitos sociais depende da proximidade entre os integrantes do PCC e as comunidades locais.
O que aqui se denomina de cenário interiorano-fronteiriço resulta da consolidação dos fluxos de ilícitos que se estabeleceram a partir das fronteiras em direção às principais capitais do país. As fronteiras com o Paraguai e a Bolívia são as mais relevantes nesse processo, sobretudo, pelo fato de partirem dessa região os fluxos que abastecem os mercados de produtos ilícitos de São Paulo e Rio de Janeiro.
A criminalidade na fronteira entre Brasil e Paraguai antecede a questão do tráfico de drogas, tendo sua origem vinculada à dinâmica do contrabando. Tais fluxos foram construídos, sobretudo, durante o período em que o país vizinho permaneceu sob controle da ditadura do General Stroessner, época na qual se consolidaram as relações entre organizações criminosas voltadas ao descaminho e as estruturas políticas paraguaias (MIRANDA, 2001). Desde os anos 1960, já eram conhecidos os esquemas de contrabando articulados por parte do generalato paraguaio.
A queda de Stroessner, no entanto, não representou o fim das práticas ilícitas no Paraguai. Segundo o jornalista Vladimir Jara (2003), quando os esquemas saem do controle direto do governo central eles se multiplicam e passam a estabelecer redes ainda mais complexas, protagonizadas cada vez mais pelas elites locais, ainda que contando com uma cultura nacional de conivência com a ilegalidade.
Essa permissividade com o delito tão enraizada no Paraguai e no ainda relativamente pouco ocupado oeste da Bolívia (ou região da Media Luna) mostrava-se extremamente funcional para atender o crescente apetite por bens ilícitos existentes no vizinho Brasil. Os fluxos ilegais estabelecidos a partir deste encontro entre oferta e demanda experimentaram, ao longo dos anos 1980 e 90, aumento exponencial, estimulados pela expansão do crime nas grandes cidades brasileiras que precisavam cada vez mais de drogas, armas e itens de consumo contrabandeáveis.
Embora seja difícil precisar em que momento se inicia o tráfico de maconha na fronteira entre Brasil e Paraguai, parece bastante plausível a ideia de que essa dinâmica teria sido iniciada por redes atuantes no circuito do contrabando, que enxergaram no tráfico de maconha uma oportunidade para ampliar seus ganhos, valendo-se de mecanismos de burla de fiscalização já instituídos nessa rota. Segundo Abreu (2015), uma das hipóteses mais aceitáveis seria a de que em meados dos anos 1970 os sacoleiros que adquiriam produtos no Paraguai passam a também trazer maconha para revender nas grandes cidades.
A trajetória do denominado Clã dos Turcos na fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai é possivelmente a primeira evidência da consolidação de grupos especializados no narcotráfico na região. A atuação dos irmãos Gandi e Fahd Jamil Georges no tráfico de drogas é relativamente bem documentada, destacando-se reportagem feita por Borges (2019) e obra de Vladimir Jara (2003) que detalha as atividades dessa organização criminosa no final dos anos 1970 e início dos 80. Nas décadas seguintes, a venda de drogas se ampliou brutalmente na região, com o Paraguai assumindo protagonismo na produção de maconha voltada para abastecer o crescente mercado brasileiro e dos demais países do Cone Sul. As negociações promovidas pelo Clã dos Turcos consolidaram as cidades gêmeas de Pedro Juan Caballero/Paraguai e Ponta Porã/Brasil como o principal hub de narcóticos para o mercado brasileiro, operando primeiramente apenas maconha e, posteriormente, também carregamentos de cocaína vindos da Bolívia, Peru e mesmo da longínqua Colômbia.
A inexistência de produção de drogas9 e armas em território nacional capaz de satisfazer a demanda interna também proveriam a fronteira de centralidade no ambiente criminal brasileiro. Nos grandes centros urbanos, a fronteira assume proporção quase mítica, como local de origem de quase todos os bens ilícitos desejados e o qual se encontrava (nos anos 1980 e 90) praticamente inacessível aos narcotraficantes donos do varejo das favelas de Rio e São Paulo, que dispunham de pouquíssima mobilidade e dependiam de intermediários vindos do interior e da própria zona fronteiriça para lograr abastecer seus pontos de venda de entorpecentes.
As principais restrições logísticas, no entanto, não se relacionavam a internalização das drogas em solo brasileiro. Na verdade, o cruze fronteiriço nunca chegou a ser, de fato, a maior dificuldade para as organizações criminosas, dada a ampla dimensão dos limites do Brasil com seus vizinhos e as restrições das estruturas nacionais de fiscalização. Para além da transposição da fronteira em si, boa parte das dificuldades limitações logísticas do tráfico no Brasil está em atravessar as centenas de quilômetros de rodovias interioranas e criar um corredor razoavelmente seguro, que conecte as localidades fronteiriças e as grandes metrópoles brasileiras, situadas no litoral ou nas proximidades.
O abastecimento dos mercados emergentes de drogas do Rio de Janeiro e São Paulo depende da perenidade desses fluxos que se originam no ambiente fronteiriço e atravessam o interior do Sul/Sudeste/Centro-Oeste do país, geralmente por meio de caminhões e pequenas aeronaves, consolidando o que se convencionou denominar de Rota Caipira. Essa rota se traduz, na verdade, menos em um traçado específico e mais em uma região de trânsito intenso da maconha e cocaína originada das fronteiras com o Paraguai e a Bolívia e endereçada aos grandes núcleos urbanos e portos do Brasil. Segundo Abreu (2017), a região abrangeria o interior paulista, Triângulo mineiro e sul goiano, miolo logístico do caminho entre os países produtores da droga e os grandes centros de consumo.
O mapa que segue visa delimitar os múltiplos trajetos que endossam a Rota Caipira. Deve-se ter em mente, no entanto, que tais percursos são realmente bastante diversos, tanto pela multiplicidade logística que a rede rodoviária oferece quanto pelo uso recorrente de aviões, que tornam bem amplas as possibilidades de caminhos para se chegar aos destinos almejados.
Figura 2: Mapa da Rota Caipira: trajetos mais relevantes |
Fonte: elaboração própria |
Em sua obra sobre a rota caipira, o jornalista Allan de Abreu (2016) produziu extenso e detalhado compêndio de eventos e atores ligados narcotráfico nesse cenário, exemplificando a intensa movimentação de ilícitos que existe na região. Ao longo de sua narrativa, fica clara a relevância que o PCC assumiu na rota caipira, ainda que a facção esteja longe de ser hegemônica em um cenário no qual atuam grupos e players de múltiplas origens. Coexistem na região traficantes de matrizes diversas, desde integrantes de facções foragidos das grandes capitais, até brokers vinculados a organizações criminosas extracontinentais, como libaneses, mexicanos e italianos; passando, evidentemente, por criminosos oriundos do próprio cenário interiorano-fronteiriço.
A presença e a relevância das facções nesse cenário consistem em fenômenos relativamente recentes, inaugurado, possivelmente pela chegada de Luís Fernando da Costa (Fernandinho Beira-Mar). Segundo o jornalista paraguaio Vladimir Jara (2003), Beira-Mar chegou no Paraguai no final de 1998 e se instalou na cidade de Capitán Bado (epicentro da produção canábica paraguaia), sob a proteção do Clã Morel, grupo familiar com longo histórico no narcotráfico e na política local. A trajetória de Beira-Mar no Paraguai tem em seus capítulos finais um progressivo tensionamento com o Clã Morel e o subsequente extermínio de vários integrantes do grupo outrora aliado, o que levou o traficante carioca a ter que abandonar o país. Esse desfecho violento denota as incompatibilidades, tensões e rupturas que resultariam da chegada dos criminosos oriundos das grandes cidades ao cenário interiorano-fronteiriço.
Ainda que a fronteira historicamente fosse um local marcado pela presença precária do Estado e a resolução violenta dos conflitos, a chegada dos criminosos cariocas e paulistas traria novos componentes de brutalidade ao cenário local. No ambiente criminal da fronteira, predominavam, até então, grupos de matriz familiar, geralmente ligados também à produção agrícola latifundiária e bastante aceitos e inseridos nos círculos políticos e sociais das elites locais. Dessa forma, a chegada de Beira-Mar e da lógica violenta das favelas cariocas se choca com os modelos criminais vigentes na região.
Ocorrem, a partir da chegada de Beira-Mar ao Paraguai, as primeiras tensões decorrentes do contato entre os dois cenários criminais aqui definidos e apresentados. As diferenças entre o modelo criminal urbano-prisional (sobretudo o carioca), marcado pelo uso permanente de armamento de guerra, violência generalizada e reduzida vinculação entre os narcotraficantes e autoridades de alto escalão se choca com a realidade fronteiriça, na qual a violência era bem mais seletiva e os traficantes se inseriam de forma muito mais direta e funcional no contexto político-institucional. De certa forma, o Comando Vermelho dos anos 1990, violento e avesso aos acertos e às proximidades com as autoridades, era a antítese do crime organizado representado pelo Clã do Turcos, que faziam uso pontual da violência e viviam inseridos em uma aura de semioficialidade. Manso e Dias (2018), ao descrever o comportamento e as relações dos grupos “nativos” da fronteira com as autoridades locais, ressaltam que os grupos criminais tradicionais eram percebidos como agentes de manutenção da ordem e aliados políticos.
Se a chegada do Comando Vermelho à região de fronteira através de Beira-Mar resultou em episódio disruptivo, específico e pontual, a aproximação do PCC dessa região se daria de forma muito mais contínua e orgânica, o que se explica em parte pela própria adesão que a facção paulista consolidou gradualmente nos estados do Paraná, Mato Grosso e até mesmo dentro do Paraguai e da Bolívia. Os relatos produzidos por Manso e Dias (2018) narram a incursão de emissário da facção de vulgo Corcel ao Paraguai e à Bolívia, ocorrida no início de 2008. Corcel era um gerente financeiro do PCC e tinha como missão estabelecer os primeiros contatos entre os fornecedores locais e a facção como “pessoa jurídica”.
No entanto, antes da chegada de Corcel muitos outros irmãos já circulavam pela região de fronteira, tocando seus negócios pessoais, sobretudo relacionados a drogas e armas. Essa presença perene de integrantes da facção paulista na região foi provavelmente o diferencial em relação ao Comando Vermelho que permitiu ao PCC fincar raízes. Deve-se considerar que a presença de criminosos oriundos do interior de São Paulo no Mato Grosso do sul, por exemplo, é recorrente e nada acintosa, enquanto um bandido carioca consiste em a figura exógena à paisagem fronteiriça com o Paraguai ou a Bolívia. Do ponto de vista das conexões e articulações entre redes ilícitas, é de se esperar que mesmo um criminoso paulistano também disponha de melhor trânsito no interior de seu próprio estado e nas unidades da Federação vizinhas do que um indivíduo originário do Rio de Janeiro, estado bastante distante física e culturalmente da faixa de fronteira.
Alguns desafios, no entanto, se impunham igualmente a cariocas e paulistas. A resistência dos criminosos autóctones da região de fronteira à livre circulação dos indivíduos oriundos do cenário urbano-prisional consistiu em um dos mais importantes entraves à penetração dos faccionados nesse outro ambiente. As organizações da fronteira, que possuíam forte componente familiar e vinculação com redes locais de poder, sempre se mostraram relutantes em permitir que os atores criminais exógenos, vindos de Rio e São Paulo tivessem livre acesso à região e à rede de fornecedores ali atuantes, o que poderia incorrer em seu esvaziamento comercial e político.
Preservar sua prevalência no cenário fronteiriço era uma questão eminentemente territorial, na qual os espaços apropriados pelas redes criminais tradicionais poderiam até ser, eventualmente, compartilhados com grupos paulistas e cariocas, mas sempre de forma controlada, considerando que os acessos aos fornecedores fossem limitados. Impedir a ascensão de grupos externos significava ainda garantir a perpetuação do poder na mão de uma elite histórica, que dominava simultaneamente o cenário do tráfico de drogas e a dinâmica fundiária-produtiva, exercendo, muitas vezes, esse controle dos dois lados da fronteira.
Um dos casos mais emblemáticos desse tipo de resistência aos grupos oriundos do cenário urbano-prisional foi o de Jorge Rafaat Toumani, liderança criminal também de origem libanesa, atuante em Pedro Juan Caballero/Ponta Porã desde o início do presente século. Após o declínio da família Jamil, Rafaat se torna a principal figura do narcotráfico na região, ainda que em um cenário, como já mencionado antes, muito mais complexo e heterogêneo. A dominância de Rafaat se manifestava por meio de sua capacidade de restringir os acessos de seus concorrentes a outros fornecedores de drogas do cenário criminal de Pedro Juan Caballero/Ponta Porã, o que deixa diversos outros players locais insatisfeitos, entre eles o PCC.
Em junho de 2016, um pool de narcotraficantes de origens diversas reuniu um grande grupo de sicários com armamento pesado e conseguiram executar Rafaat, dando fim a prevalência dos grupos de familiares e de matriz libanesa/brasileira na região e inaugurando um novo período, menos estável e com intensa participação no ambiente fronteiriço de facções e criminosos advindos do cenário urbano-prisional, ligados, especialmente ao PCC. Apesar de sua origem no cenário urbana-prisional o PCC conseguiu, de certa forma, se moldar ao ambiente interiorano-fronteiriço, em um processo gradual de conquista de liderança e espaço nessa outra realidade. Cabe aqui aprofundar as análises acerca das transformações pelas quais passou a dinâmica de apropriação do espaço, propondo-se um modelo de reorganização da espacialidade do PCC centrado em uma atuação capaz de integrar os cenários urbano-prisional e interiorano-fronteiriço.
Desde seu surgimento, o PCC sempre dependeu de sua capacidade de se expandir e incorporar novos espaços de atuação para se consolidar no mundo do crime. O esquema que se segue apresenta um modelo analítico do fluxo de expansão territorial da facção. Segundo esse modelo, o Comando parte de um contexto urbano-prisional, no qual está organicamente inserido, em direção a cenários interioranos e ao ambiente da fronteira, aos quais precisa se adaptar para alcançar protagonismo.
Figura 3 — Fluxo da expansão territorial do Primeiro Comando da Capital |
Fonte: elaboração própria |
Cronologicamente, o primeiro grande esforço expansivo consistiu em transpor os muros das instituições penais em que seus líderes estavam encarcerados para se estabelecer em outras unidades e progressivamente se tornar hegemônico no sistema prisional paulista. As sucessivas transferências de seus líderes e integrantes foram fundamentais para a expansão do grupo pelo amplo conjunto de unidades penitenciárias do estado de São Paulo, o qual foi tomado a partir do violento processo narrado por Dias (2011).
O segundo movimento expansivo executado pela organização foi no sentido de se espraiar pelas ruas das periferias e favelas de São Paulo. Essa ação não se mostrou, a princípio, tão difícil, uma vez que as principais lideranças do grupo eram egressas dessas mesmas quebradas. A transposição da cadeia para a rua exigiu uma progressiva mudança de atuação no campo dos ilícitos, com as lideranças do grupo se assentando cada vez mais no varejo do tráfico de drogas, ainda que os assaltos continuassem no rol das principais atividades desempenhadas pelos integrantes do PCC.
A interiorização no estado de São Paulo também não representou uma dificuldade significativa para o PCC, visto que boa parte da população prisional paulista também foi migrada para unidades situadas em cidades do interior a partir do fechamento da gigantesca estrutura da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru. As transferências dos líderes do Comando para unidades no interior do estado, destacando-se o assentamento da cúpula da facção na cidade Presidente Venceslau (a mais de 600 km de distância da capital) também serviu para aproximar o PCC dos criminosos do interior paulista. Para Silvestre (2016) A dispersão das unidades prisionais no interior de São Paulo teve resultado contrário ao que se esperava, pois terminou por fortalecer estadualmente a rede do PCC nos presídios.
A aproximação entre os líderes do PCC e a massa carcerária das pequenas cidades resultou em um processo expressivo de arregimentação de integrantes interioranos, incluindo desde novatos no crime até traficantes mais velhos e bem estruturados,10 interessados em ampliar sua base comercial e adquirir o prestígio, a proteção e os contatos ofertados aos membros do Comando.
A expansão do PCC no cenário interiorano-fronteiriço é ainda motivada pelas passagens dos seus líderes encarcerados por unidades prisionais do Paraná e do Mato Grosso do Sul, as quais ajudaram a criar condições para a aproximação da organização com os criminosos desses estados. Esta rede de contatos construída a partir do conjunto de movimentos de interiorização aqui narrados é fundamental para o processo de ocupação do espaço interiorano-fronteiriço, pois permite ao PCC construir parcerias, cooptar grandes traficantes para suas fileiras e, por fim, eliminar intermediários, seja por meio de by-pass comercial ou mesmo por meio da violência, aniquilando fisicamente aqueles que obstruíam a entrada da organização na fronteira.11
A relevância do PCC no cenário interiorano-fronteiriço e, mais especificamente, na rota caipira é inquestionável, havendo, no entanto, diferentes interpretações acerca da existência efetiva de uma hegemonia da facção nesse ambiente. Alguns autores como Abreu (2017) sugerem que o grupo se tornou dominante na Rota Caipira por dispor de uma rede de filiados bem mais ampla que as demais quadrilhas, com numerosos membros em estados-chave, como Mato Grosso do Sul e Mato Grosso.
Esse processo ocorreu em detrimento dos grupos tradicionais da fronteira, os quais perderam força e passaram gradualmente a compartilhar território com o PCC. Esse avanço do PCC no que era historicamente território dos narcotraficantes autóctones da fronteira aparenta não ser reversível, em face à capacidade de persistir que a facção tem demonstrado, mesmo em cenário evidentemente hostil.
Uma célula da facção que demonstrou ser especialmente importante nesse processo de expansão é a Sintonia dos Estados e Países (também denominada Resumo Disciplinar dos Estados e Países), fração subordinada diretamente à Final e responsável pela coordenação do grupo em todos os ambientes fora do estado de São Paulo. Essa célula apresentou crescimento acelerado na última década. Segundo os dados obtidos GAECO de São Paulo na Operação Echelon, a Sintonia dos Estados e Países é subdividida em pelo menos 28 células de caráter territorial, sendo cada uma delas responsável por uma unidade da Federação (excluindo-se São Paulo dessa conta), além do Paraguai e da Bolívia. Esses dois países, por apresentarem um elevado número de integrantes da facção, possuiriam Sintonias próprias; ou seja, uma célula exclusivamente voltada à gestão das atividades nestes países.
A presença e a atuação dos integrantes da Sintonia Geral dos Estados e Países obedece a uma lógica claramente espacializada, na qual estados limítrofes a São Paulo (à exceção do Rio de Janeiro) possuem mais integrantes são organizacionalmente mais importantes. Paraná, Mato Grosso do Sul e, eventualmente, Minas Gerais são estados considerados pelas lideranças da facção como desenvolvidos, terminologia utilizada para designar as unidades da Federação que possuem maior capacidade e, aparentemente, maior autonomia de gestão.12
A atuação do PCC internamente nos estados também é heterogênea, sendo marcadamente mais fortes nos municípios próximos da divisa com São Paulo. Em Minas Gerais, por exemplo a facção é bem mais atuante no sul do estado e na região do Triângulo Mineiro, ambas lindeiras ao território paulista (MIRANDA, 2017). Tais evidências fortalecem a perspectiva de que a facção se espraia a partir de uma lógica de continuidade física do espaço, tendo, a princípio, dificuldades em se estabelecer em localidades mais distantes e desconectadas de seus espaços de origem.
A presença intensa do PCC no Paraná e no Mato Grosso do Sul não pode ser entendida, contudo, apenas pela questão da contiguidade. O caráter fronteiriço desses estados é central para o projeto expansionista da facção. A construção de um corredor de domínio entre as áreas de produção de drogas (ou de venda a preço mais reduzidos) situadas na fronteira e as áreas de varejo ou mesmo exportação constitui evidente interesse da facção. Na Bolívia e sobretudo no Paraguai a atuação da facção já transpôs a região de fronteira, encontrando-se integrantes do PCC em diversas cidades e unidades prisionais, mesmo no interior desses países.
Outra evidência do processo expansivo é a ampliação pela qual passa o conceito de quebrada. A referência inicialmente estabelecida junto aos bairros da metrópole paulista foi sendo progressivamente substituída por enquadramentos mais amplos e diversos. Os limites da quebrada passaram a ter que assimilar outras morfologias espaciais, como cidades de diversos tamanhos do Brasil e dos países vizinhos, espaços cada vez mais incorporados e apropriados pela dinâmica expansiva do grupo.
A tabela que segue foi elaborada a partir da compilação dos chamados cara-crachá 13 elaborados pela facção, sistematizando-se apenas as respostas dos campos que possuem maior pertinência para a análise da questão territorial. Embora ela se baseie em dados dos Estados e Países, entende-se que tais informações são aplicáveis a qualquer local gerido pelo PCC.
Tabela 1 — Exemplos de quebradas declaradas pelos integrantes
Integrante | Quebrada de origem | Quebrada atual | Local de batismo |
---|---|---|---|
01 | Hidrolândia/CE | Hidrolândia/CE | Sistema Alrim Moura Costa |
02 | Fortaleza/CE | Caucaia Jurema/CE | Rua |
03 | Osasco/SP | Cidade do Leste/PY | Penitenciária de Neuquen/Argentina |
04 | São José do Rio Preto/SP | Paraguai | Coronel Oviedo/PY |
05 | Campo Grande — Brazil | — | Sistema Cidade de Leste (Py) |
Fonte: Elaborada pelo próprio autor a partir de material apreendidojunto a integrantes do PCC. |
Essa sucinta compilação das quebradas apresentadas como referência dos integrantes da facção evidencia as novas morfologias incorporadas ao conceito, coexistindo registros em que o termo é utilizado para designar um bairro com menções em que se refere a um país fronteiriço inteiro, no caso o Paraguai.
A presença perene do PCC no ambiente da fronteira configura uma situação que não conseguiu ser reproduzida por outros grupos oriundos do cenário urbano. A atuação sistemática do PCC no cenário fronteiriço o difere dos demais grupos urbano-prisionais presentes na região, que possuem inserção pontual e geralmente derivada da capacidade empreendedora de uma liderança específica, tal qual ocorreu com o Comando Vermelho durante a incursão de Beira-Mar no Paraguai. Mesmo sofrendo diversos reveses, o PCC tem logrado repor suas lideranças na fronteira, mantendo sua presença em um cenário violento e dinâmico, no qual mesmo os grupos de origem local têm dificuldades em persistir.
Esse processo de expansão não transcorre, no entanto, de forma irrestrita ou livre de pressões por parte dos demais atores sociais. A facção teve de realizar significativas concessões para atuar em novas áreas, adotando em seu espaço de expansão posturas distintas daquelas assumidas em seu espaço de origem. A incorporação desses novos territórios demandou à facção a elaboração de novas estratégias e interação, sobretudo para se relacionar com os atores criminais presentes. Em Diogo (2021), são aprofundadas e analisadas tais estratégias, mas cabe ao menos ressaltar para a finalidade deste artigo, que o grupo se comporta de forma diferente nesses novos contextos, onde renuncia à ambição monopolista que apresenta em São Paulo para se tornar apenas mais um ator no complexo cenário criminal da fronteira.
Se em São Paulo o PCC transcende a condição de grupo para se tornar um mediador ou mesmo uma estrutura de governança das relações entre criminosos, na fronteira a facção possui papel menos proeminente, ajustando sua conduta às suas reais possibilidades de exercício do poder. Nos ambientes em que o PCC disputa poder e mercados com outras facções, o grupo parece ter suas capacidades apropriar do espaço de forma exclusiva bem mais restringida, se assemelhando mais a uma grande quadrilha ou a uma rede de quadrilhas, no sentido tradicional desses termos.
O que aqui se denomina de transição territorial consiste no fenômeno de expansão do ambiente urbano-prisional para o interiorano-fronteiriço, movimento executado pelo PCC sem prejuízo ao domínio de seu espaço de origem. Mesmo sendo de matriz essencialmente paulistana, a facção conseguiu arregimentar lideranças do interior e dos estados vizinhos, constituindo uma rede de integrantes que se estende desde a capital até as proximidades da região de fronteira.
Essa transição, no entanto, transcorre em meio ao conjunto de dificuldades que um determinado ator social apresenta para se deslocar de seu cenário de origem para um novo contexto com o qual está, a princípio, pouco familiarizado. No caso do PCC esse processo se faz necessário para que a facção consiga ampliar suas possibilidades econômicas e políticas, ao reduzir sua dependência dos fornecedores de drogas e armas estabelecidos na região de fronteira.
Ainda que o PCC tenha se mostrado, desde o início da facção dispor de grande capacidade e interesse em se expandir, parece haver limites para as possibilidades de incorporação de novos territórios, impostos, sobretudo por outros atores da dinâmica criminal avessos à formação de uma hegemonia da facção paulista. As evidências dessas restrições podem ser constatadas tanto em locais muito próximos a São Paulo (no Rio de Janeiro, por exemplo, onde o grupo paulista é pouco relevante) quanto em locais física e culturalmente distantes, como a região andina, onde é produzida boa parte dos produtos que o PCC almeja adquirir por preço mais baratos. Nesse sentido, parece pertinente identificar que outras formas de resistência à expansão das organizações criminosas existem de fato, o que só pode ser devidamente aprofundado a partir de novas investigações sobre o tema.
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Cabe aqui fazer um aparte em relação ao fenômeno do banditismo rural e mais especificamente do Cangaço, transcorrido no sertão do nordeste brasileiro no final do século XIX e primeira metade do século XX. Para Pernambucano de Mello (2013), o banditismo rural se enraizou e expandiu sob a forma de Cangaço no sertão nordestino por ter encontrado ambiente adequado e específico para sua disseminação. Tais particularidades conferem ao Cangaço certa desvinculação dos fenômenos criminais cuja trajetória se almeja aqui delimitar. Ainda que existam similaridades entre os métodos dos grupos ligados ao banditismo rural e aqueles praticados pelas quadrilhas contemporâneas (sobretudo aquelas ligadas ao que se denominou mais recentemente de novo cangaço) parece pouco proveitoso aprofundar as análises em torno do cangaço, cujo contexto e desdobramento pouco se relacionam às condições que facilitaram o surgimento das facções.↩︎
Os debates consistem em discussões de caráter, geralmente, deliberativo travadas entre integrantes da facção.↩︎
Uma biqueira consiste em um ponto de varejo de drogas em São Paulo, sendo comum também o uso do termo lojinha, firma ou fm para designar esse tipo de unidade comercial. O controle do varejo de drogas consiste em uma vantagem no jogo de relações que resultam na apropriação do espaço e no domínio do mercado de ilícitos em favelas e periferias.↩︎
É importante ressaltar a diferença entre os negócios da facção daqueles pertencentes aos integrantes dela. Do ponto de vista gerencial e contábil tais negócios são manejados de forma completamente separadas, não havendo mistura entre as finanças do Comando e as de seus integrantes, a não ser quando autorizada pelas lideranças, cujos negócios também possuem contabilidade própria, embora possam se valer, eventualmente, dos canais de negociação utilizados pela facção.↩︎
Progressivamente a palavra sintonia foi sendo suprimida pelos integrantes do grupo em seus discursos ao se referenciarem às células da facção. Dessa forma, é comum, por exemplo, que a Sintonia dos Estados e Países seja chamada simplesmente de Estados e Países ou que a Sintonia da Rua seja citada pelos membros do PCC apenas como Rua.↩︎
Embora algumas autoridades estaduais de São Paulo alegassem já em 2006 que o encarceramento em delegacias se encontrava quase extinto, o PCC persistia, ao menos até 2011, utilizando essa categoria. Não se aprofundou nesse estudo se nessa época se mantinham significativas quantidades de detentos em delegacias na época, mas diversas reportagens disponíveis na internet sustentam que em 2011 ainda havia expressiva quantidade de detentos encarcerados em delegacias no estado de São Paulo.↩︎
Essa estruturação é constatável a partir de tabelas construídas pelas próprias estruturas de gestão da facção. É importante ressaltar que essas informações correspondem à estrutura do PCC no ano de 2011, sendo possível que tenham ocorrido alterações nos últimos dez anos.↩︎
A utilização do termo quebrada é amplamente difundida entre as camadas populares de São Paulo, antecedendo, inclusive, o surgimento do PCC. Embora não exista certeza acerca da origem do termo, sabe-se que ele é utilizado pelo menos desde o início da década de 2000, estando presente no vocabulário adotado por grupos fortemente vinculados à periferia paulistana, como artistas de rap e pichadores, não estando seu uso restrito ao mundo do crime. Pereira (2010), em seu estudo, sobre as redes de relações entre os pichadores de São Paulo, ressalta que pertencer a uma quebrada significa ter um vínculo com um local específico e ao mesmo tempo se inserir no conjunto de locais que integram a periferia paulistana↩︎
O Brasil logrou produção substancial de maconha na região do polígono. Essa produção, no entanto, decaiu bastante desde os anos 1990. Segundo pesquisa feita por Ishibuya em 2005, cerca de 82,5% da maconha coletada de São Paulo viria do Mato Grosso do Sul/Paraguai contra apenas 5% do Polígono da Maconha.↩︎
O caso de Rodrigo Felício (Tico), traficante originário de Limeira/SP, é um típico exemplo da primeira situação. Segundo Abreu (2017), Tico foi batizado na facção ainda aos 19 anos, após ser preso e encarcerado em unidade prisional onde o PCC era hegemônico. A partir daí, Tico progrediu hierarquicamente na facção, tornando-se um dos principais nomes da Sintonia do Interior e da Sintonia do Progresso, ao mesmo tempo em que ampliou e articulou seus próprios negócios diretamente no Paraguai, a ponto de, em alguns anos, tornar-se um dos maiores fornecedores do próprio PCC e de seus líderes da capital.↩︎
Além do já mencionado caso de Jorge Rafaat, são numerosos os episódios violentos na fronteira de com o Paraguai envolvendo integrantes da facção, tanto na condição de autor de homicídio quanto na situação de vítima. Há diversos registros de integrantes da facção que foram executados, eventos muitas vezes atribuídos pela imprensa local a pistoleiros vinculados às lideranças tradicionais da região, como Fahd Jamil, Jarvis Ximenez Pavão ou o próprio Rafaat. As relações entre essas lideranças e o PCC, no entanto, seriam dúbias, fazendo negócios com a facção por um lado, mas, por outro, dificultando o acesso a contatos em escalas mais altas da cadeia de fornecimento de drogas e armas.↩︎
Historicamente, a gestão do PCC, nos estados em que a presença da organização é menos relevante, é conduzida por integrantes encarcerados em estados mais importantes para a facção, como o Paraná, Mato Grosso do Sul. Essa afirmativa é sustentada pelas listas periodicamente distribuídas pela facção para seus integrantes, as quais contêm o vulgo e o contato de seus representantes em todos os estados. Nessas listagens, é facilmente identificável que os responsáveis por estados em que a facção tem pouca relevância, tais como Rio de Janeiro ou o Distrito Federal, possuem celular com prefixos do Paraná ou do Mato Grosso do Sul.↩︎
O cara-crachá consiste na ficha de filiação dos integrantes do grupo, na qual constam diversos dados considerados importantes como o local de batismo, os padrinhos e as referências, as últimas cadeias em que o integrante esteve encarcerado. O conteúdo dessa ficha é constantemente revisado pela sintonia responsável, a qual acresce ou retira campos de consulta com certa periodicidade.↩︎
Resumo:
Este ensaio tem como objetivo discutir o
processo através o qual o Primeiro Comando da Capital se lançou em um
processo expansivo em direção a contextos espaciais até então inóspitos
à facção, situados, essencialmente, na porção interiorana e fronteiriça
do centro-sul do país. Nesse esforço analítico são analisados diversos
conteúdos (acadêmicos e jornalísticos) produzidos sobre a facção, além
de material elaborado pelo próprio grupo. Constata-se ao final que a
empreitada do grupo em transcender seu espaço de origem (aqui definido
com urbano-prisional) e se apropriar de novos espaços em contextos
diversos (aqui definidos como interiorano-fronteiriços) foi, em geral,
bem-sucedida, ainda que certas limitações tenham se imposto à atuação do
grupo nesse percurso.
Palavras-chave:
Crime organizado; território;
Primeiro Comando da Capital.
Abstract:
This essay aims to discuss the process
through which the First Command of the Capital launched an expansive
process towards spatial inhospitable contexts, situated essentially in
the countryside and border portions of the center-south of Brazil. In
this analytical effort, various contents (academic and journalistic)
produced about the PCC are analyzed, in addition to material prepared by
the group itself. At the end, it appears that the group’s endeavor to
transcend its space of origin (here defined as urban-prison) and to
appropriate new spaces in different contexts (here defined as
countryside-border) was, in general, successful, although certain
limitations have been imposed on the group’s performance along this
path.
Keywords:
Organised crime; territory; Primeiro
Comando da Capital — First Command of the Capital.
Recebido para publicação em 15/06/2022
Aceito em 11/10/2022
ACESSO ABERTO
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