Dominação na Amazônia brasileira: uma leitura a partir de Pierre Bourdieu Maria José Teisserenc Universidade Federal do Pará, Brasil https://orcid.org/0000-0002-1908-7463 mjteisserenc@uol.com.br Pierre Teisserenc Université Paris XIII, França https://orcid.org/0000-0003-1702-6699 pierre-teisserenc@wanadoo.fr Introdução Neste artigo é apreciada a adequação do quadro teórico de Pierre Bourdieu à abordagem de situações na Amazônia brasileira nas quais é verificado que a dominação tem como base o sistema de aviamento . Um sistema cujas raízes remontam à colonização, e que permanece, apesar da República instaurada no Brasil e a progressiva expansão de uma economia capitalista e periférica, desde o fim do século Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 54, n. 2, jul./out. 2023, p. 227-262. DOI: 10.36517/rcs.54.2.a03 ISSN: 2318-4620
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 89 XIX 7 . Ocorre que, em tempos mais recentes, com o retorno da democracia ao Brasil, em meados dos anos de 1980, experiências locais de mobilização e ações de enfrentamento a desafios ambientais passaram a interpelar esse modo de dominação e o modelo de sociedade capitalista a ele associado. A partir dos modos de dominação identificados por Pierre Bourdieu retomaremos, então, na literatura especializada, mas também, a partir de observações empíricas, situações na Amazônia brasileira desde fins do século XIX, a partir do desenvolvimento do chamado Ciclo da Borracha, com o objetivo de apreciar seus efeitos em termos de permanência e como, em certas condições locais, favorecidas pelo retorno da democracia no Brasil, esse sistema de dominação passa a ser questionado. Assim, passemos então à primeira parte deste artigo, na qual apresentamos o quadro teórico elaborado por Pierre Bourdieu que aqui nos interessa, para, em seguida, buscarmos contribuir com a compreensão de situações da Amazônia brasileira, apresentando as características desse contexto e colocarmos a questão da permanência de um modo particular de dominação, apesar de mudanças sociais e econômicas operadas. Permanência cujas razões ligam-se a um passado colonial e ao papel desempenhado por um tipo de dominação na construção do Brasil enquanto nação, e considerá-lo face 7 A ideia da permanência do aviamento enquanto sistema de dominação, característico de diversas situações na Amazônia brasileira desde sua colonização, integra a tese de Márcio Meira (2018). Uma tese que, inspirada em Fernand Braudel (1969), adota a perspectiva da longa duração. Nesse trabalho, aliás muito bem documentado, Márcio Meira, parte da “condição colonial vivida pelos escravos” para compreender a continuidade de um sistema que conseguiu se impor apesar da diversidade de contextos históricos e sociogeográficos que compõem o imenso território da Amazônia, desde sua conquista e exploração colonial até hoje. Segundo este autor, “a continuidade e o aprofundamento desse sistema haviam se estabelecido e fortalecido desde os tempos coloniais” (MEIRA, 2018, p. 99). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... aos desafios socioambientais e a capacidade destes desafios em interpelá-lo. Para concluir apresentaremos algumas observações relativas à pertinência da perspectiva de Pierre Bourdieu sobre os modos de dominação nos tempos atuais. Os modos de dominação em Pierre Bourdieu No segundo número de Actes de la recherche en sciences sociales , revista criada por Pierre Bourdieu em 1975, foi publicado um artigo de sua autoria sobre os modos de dominação, importante chave de leitura para os trabalhos posteriores desse autor. Uma das intuições de Pierre Bourdieu, na qual ressoa o pensamento de Karl Polanyi na sua obra mais conhecida A Grande Transformação ([1944], 1980), é considerar que Nas sociedades desprovidas de mercado “autorregulado”, de sistema educacional, de aparelho jurídico e de Estado, as relações de dominação não podem ser instauradas e mantidas sem estratégias indefinidamente renovadas 8 (BOURDIEU, 1976, p.122). Nessas sociedades pré-capitalistas, os dominantes “são condenados às formas elementares da dominação, isto é a dominação direta de uma pessoa sobre outra cujo limite é a apropriação da pessoa, isto é a escravidão” (BOURDIEU, 1976, p. 126). Uma apropriação que afeta o conjunto da vida dos indivíduos: trabalho, família, vida social no sentido amplo. Uma dominação que se sustenta em “estratégias complexas cuja 8 Neste artigo as citações dos trabalhos em francês estão em tradução livre. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 91 eficácia depende não somente da força material e simbólica das partes em presença, mas também de suas habilidades em mobilizar o grupo suscitando a comiseração ou a indignação” (BOURDIEU, 1976, p. 127). A complexidade dessas estratégias se deve ao fato de que o dominante, para se impor, assujeita-se a exigências que legitimam sua pretensão e sua posição na sociedade e o obriga, por isso, a ser generoso, a ser digno nas relações com seus “clientes” sempre que ele consegue impor uma situação de dependência através da compaixão, ao mesmo tempo da violência quando, em função das circunstâncias, o “cliente” recusa o jogo. Por parte de quem manda, tudo se resume a estratégias, sobretudo de estratégias de violência simbólica muitas vezes mais eficientes que as estratégias econômicas. Isso, porque, como precisa o autor, apenas duas maneiras que ao final são uma de se prender alguém permanentemente: a dádiva e a dívida, as obrigações abertamente econômicas da dívida ou as obrigações “morais” ou “afetivas” criadas e cultivadas pela troca, isto é, a violência aberta (física ou econômica) ou a violência simbólica como violência censurada e eufemizada, irreconhecível e reconhecida (BOURDIEU, 1976, p. 127). Nas sociedades pré-capitalistas, essas duas formas de violência coexistem na medida em que a dominação que prevalece não pode ser exercida a não ser sob a forma elementar da brutalidade física, de uma pessoa para com outra, e que, na ausência de intermediários, trate-se de pessoas ou instituições, é então necessário, para se cumprir abertamente, “de se dissimular sob o véu de relações encantadas” (BOURDIEU, 1976, p. 127), caracterizando-se assim a violência simbólica. Isso é possível se o poder do dominante se baseia não somente na sua riqueza pessoal, mas também em uma rede de Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... relações no campo econômico que ele deve manter para se beneficiar das vantagens de sua dominação. Como? “Para ser tratado como senhor, o dominante deve manifestar as virtudes que convém à sua posição, a começar pela generosidade e a dignidade, nas suas relações com os ‘clientes’” (BOURDIEU, 1976, p. 127). Assim, se explica a importância das reconversões do capital econômico em capital simbólico por meio de práticas de generosidade que dissimulam, eufemizam a dominação. Tais práticas alimentam estratégias de dominação que “podem parecer ao mesmo tempo tanto as mais brutais, mais primitivas, mais bárbaras ou mais sutis, mais humanas, mais respeitosas pela pessoa” (BOURDIEU, 1976, p. 128). Esta dualidade é fundamental para compreender essas estratégias encontradas tanto no caso de dívida quanto de dádiva. Ela explica o caráter essencial da ambiguidade nas práticas dos senhores operadas através de estratégias tão opostas tais como as geradas pela violência aberta ou pela violência dissimulada, em função do estado das relações de força entre as partes. Nas sociedades capitalistas, caracterizadas por um mercado autorregulado, por um sistema educacional, um aparelho jurídico, um Estado e outros, onde estratégias de dominação apresentam as condições de uma dominação impessoal e de uma reprodução impessoal das relações de dominação, é diferente. Os dominantes, nesse caso, beneficiários de uma violência dissimulada em mecanismos objetivos, os deixam simplesmente serem operados dentro de campos como o mercado de trabalho ou o mercado escolar, dos quais dispõem os dominantes como oportunidades para objetivar o capital social por eles acumulado, aproveitando-se desse modo de um universo social no qual “as relações de dominação são mediadas por mecanismos objetivos e institucionalizados” (BOURDIEU, 1976, p. 122), em cujos efeitos se encontra a Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 93 garantia de uma redistribuição do capital econômico sob a forma de capital simbólico. Nesse sentido, o trabalho de eufemização é economizado dado que estratégias indiretas e impessoais assumem o lugar do exercício direto e pessoal da dominação. O contexto socioeconômico amazônico e a permanência de um sistema de dominação Analisando as tendências geopolíticas relacionadas à formação da Amazônia brasileira, Berta Becker (2009) identificou três aspectos significativos: 1) o caráter tardio da ocupação desse território com o objetivo de satisfazer interesses externos ao Brasil; 2) a escolha política por manter o controle do território através de unidades administradas pelo poder central; e 3) a coexistência em um mesmo território de duas modalidades de ocupação e de desenvolvimento. Uma das modalidades orientada por uma visão externa, que afirma a soberania do território privilegiando as relações com o Governo Federal para a exploração de seus recursos, caso do Ciclo Econômico da Borracha 9 . Outra modalidade, orientada por uma visão interna, privilegiou um desenvolvimento endógeno e a autonomia local, como foi o caso de iniciativas missionárias que se impuseram como respostas à incapacidade 9 “A borracha se inscrevia no coração das máquinas da nova etapa da Revolução Industrial e ainda fazia parte do novo símbolo da modernidade que era o automóvel (nas cidades de Belém e Manaus). Todavia, em contraposição a esse polo moderno da nova fase de desenvolvimento capitalista esteve associada uma das mais brutais formas de opressão e exploração de que se tem notícia. O termo “inferno verde” se referia à vida nos seringais, o verdadeiro inferno que enredava o cotidiano de exploração do seringueiro” (PORTO GONÇALVES, 2001, p. 88). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... e/ou falta de interesse das autoridades políticas do período colonial em assumir suas responsabilidades. Assim, as missões ... ainda conseguiram o controle do território com uma base econômica organizada, e que o governo colonial nao logrou realizar. Aliás, os feitos econômicos governamentais em surtos dominantes em curtos períodos de tempo e em certos espaços foram desagregadores para o vale do Amazonas, embora tenham constituído condição fundamental para a unidade política da Amazônia (BECKER, 2009, p. 24). Essas tendências geopolíticas reemergem, sobretudo na segunda metade do século XX, em uma região caracterizada, segundo Philippe Léna (2002), pela coexistência de dois modelos de desenvolvimento: um modelo tradicional, paternalista e clientelista, baseado no sistema de aviamento ; e um modelo modernizador, desenvolvimentista e predador, adotado no fim dos anos de 1960 pelos governos militares, no qual a Amazônia passa a figurar como “fronteira de recursos que deve ser ocupada e explorada no intuito de firmar a soberania nacional na região e acelerar o crescimento econômico do país” (LÉNA, 2002, p. 3). Sem nenhuma dúvida, o Ciclo da Borracha, que corresponde ao período de 1870-1920, constituiu uma etapa significativa da penetração do capitalismo internacional na Amazônia, avalizado pelo poder central. Tratou-se de uma expansão econômica que integrou um modo de dominação, baseado em relações sociais praticadas desde o período colonial, como o aviamento , e que vai se adaptar ao modelo “modernista” 10 para satisfazer exigências de uma produção de bens primários para 10 Márcio Meira confirma os laços desse sistema com a colonização da região: “a história do extrativismo e do escambo e, portanto, do sistema de aviamento se confunde com o do colonialismo e da escravidão moderna” (MEIRA, 2018, p. 98). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 95 exportação. Esse modo de dominação impôs-se então ao conjunto do território amazônico, como entendido por Márcio Meira (2018), ao considerar que a partir de 1870, e durante 50 anos, “a exploração da borracha transformou o antigo sistema do aviamento numa ampla e complexa rede hierárquica de comércio que se espalhou em toda a Amazônia” (MEIRA, 2018, p. 103), segundo modalidades que se adaptaram aos produtos e aos serviços respectivos tanto nas zonas rurais quanto nas urbanas. Mesmo se sua duração não ultrapassou meio século, o impacto do Ciclo da Borracha foi considerável. Depois de sua reabilitação passageira durante a Segunda Guerra mundial, em função de uma economia de guerra imposta pelas potências estrangeiras, a produção de borracha para exportação é sucedida por uma política de colonização do território amazônico, iniciada pelos governos militares nos anos de 1960, que se associou notadamente à construção de rodovias tendo em vista a exploração madeireira, mineral e agropecuária por grupos industriais. Disso resultou uma aceleração da engrenagem técnico-política da região em condições extremamente violentas, sem levar em conta diversidades sociais, culturais e ambientais. Concebendo a Amazônia como uma plataforma de recursos a ser ocupada e explorada, sob risco de perda da soberania sobre o território, os governos do Regime Militar, implementaram uma política de colonização com o objetivo de promover o desenvolvimento da Amazônia e contribuir com a redução das tensões sociais das periferias das grandes metrópoles do centro-sul do Brasil, confrontadas com a pobreza e o desemprego, oferecendo a populações pouco qualificadas uma oportunidade de acesso à terra e a uma atividade de sobrevivência (LÉNA, 1996). Esta política de colonização acompanhou “uma implantação do capitalismo que não se articulou jamais às estruturas sociais ou políticas locais” (MEILLASSOUX, 1996, p. 350), exacerbando as tensões entre dois modelos de sociedade uma sociedade Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... pré-capitalista de tipo tradicional e uma sociedade capitalista autoritária que se implantava. Disso advém efeitos sociais extremamente perversos tais como a destruição de modos de vida e dos saberes nativos das populações amazônicas chamadas de “tradicionais”. Até o retorno da democracia em meados dos anos de 1980, essa política de colonização contribuiu para a manutenção de uma situação de tensões na Amazônia resultante da coexistência dos dois modelos de sociedade que tenderam, a depender do contexto, a se oporem, ou a se ignorarem. Uma tal coexistência mostrou-se assim fecunda para manter e muitas vezes fortalecer um modo de dominação por meio de formas que a seguir serão tratadas. Sobre os conflitos que esta situação tem gerado, no fim deste artigo trataremos da maneira como se conseguiu legitimá-los em resposta aos desafios socioambientais que se impuseram com a retomada da democracia no Brasil, graças a implementação de novas políticas públicas. O sistema paternalista do aviamento no Ciclo da Borracha O sistema paternalista 11 do aviamento que se impôs com o Ciclo da Borracha é o resultado de um modo de exploração da seiva de uma espécie vegetal de ocorrência dispersa na floresta, operado pelos seringueiros, conjunto de 11 Em L’oppression paternaliste au Brésil, Geffray; Léna e Araújo (1996) justificam a referência ao paternalismo, e não ao clientelismo, pois “O paternalismo designa originalmente uma forma arcaica do capitalismo europeu” que traz a vantagem “de exprimir claramente a desigualdade fundamental das formas de exploração coloniais e sua camuflagem ideológica”, diferente “das outras definições, mais descritivas e mais neutras” (GEFFRAY; LÉNA; ARAUJO, 1996, p. 105). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 97 trabalhadores oriundos das chamadas populações caboclas da região e outros, grande parte deles, vindos do Nordeste do Brasil. Aos seringueiros, sob o rígido controle dos senhores dos seringais, chamados seringalistas, eram confiadas parcelas de florestas, isoladas e geralmente muito distantes dos centros urbanos e do acesso a qualquer serviço. O isolamento dos seringueiros era rigidamente controlado pelos seringalistas, senhores absolutos das unidades produtivas. Estes senhores, pertencentes à elite, residiam principalmente em Manaus ou Belém e eram os que mantinham relações comerciais com as casas aviadoras. Sediadas naquelas cidades, as casas aviadoras forneciam os produtos manufaturados que eram levados aos longínquos seringais pelos regatões , embarcações pelas quais a borracha produzida, na forma de bolas defumadas, as chamadas pélas , era trazida para as casas aviadoras, responsáveis pela exportação do produto (WEINSTEIN, 1993). Como indicado a mão de obra para o trabalho nos seringais em larga medida foi constituída por migrantes do Nordeste do Brasil que, na Amazônia, esperavam se estabelecer, constituir, ou arranjar, uma família 12 e melhorar suas condições de vida. As necessidades desses migrantes explicam a importância da provisão de produtos manufaturados para assegurar sua sobrevivência em regiões isoladas, nas quais as redes comerciais desempenham um papel estratégico, e a elas não tinham acesso direto. Este acesso passava pelo controle dos seringalistas que, por sua vez, na organização da produção da borracha monopolizava a distribuição dos produtos manufaturados vindos do exterior e o escoamento da produção do seringal. 12 Caio Prado Júnior ([1942], 2011) tratou dessas práticas, arranjos ocasionais, como estabelecido a partir do sistema colonial brasileiro. Um sistema no qual se permitiu o cruzamento de raças, através da “licença de costumes, que sempre foi a norma no Brasil colonial”, contribuindo assim para, em certo sentido, a “absorção de populações indígenas” (PRADO JÚNIOR, 2011, p. 102). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... Entre o “maior” patrão situado em Manaus ou Belém e o “menor” freguês situado nos sertões mais profundos uma complexa cadeia hierárquica de poder, de natureza étnica, social e política, que incluiu entre os “aviados” e os chamados “caboclos”, mas também nordestinos pobres, indígenas e quilombolas; e entre os “aviadores” imigrantes portugueses, espanhóis, árabes de origem libanesa e síria, judeus do norte da África e também migrantes nordestinos, incluídos os funcionários públicos e militares (MEIRA, 2018, p. 107). Em tal sistema, a situação do seringueiro é a de um homem trabalhando habitualmente sozinho em seu percurso de coleta, no interior da floresta, sem relações com o mundo exterior, a não ser através de seu patrão, o seringalista , do qual dependia não somente para vender sua produção, mas igualmente para adquirir o necessário para sua subsistência e a de sua família. Aquisição de produtos mediante pagamento com a borracha produzida jamais totalizado, dada a diferença, sempre vantajosa para o patrão, entre os valores pagos pela borracha e os valores cobrados pelos produtos manufaturados por ele fornecidos. Esta situação de dependência e os compromissos estabelecidos eram tão fortes que, na maior parte dos casos, o seringueiro não podia, sob pena de morte, nem cessar sua atividade nem vender sua produção a um outro patrão. O [ seringueiro , grifos nossos ] encontrava-se de pés e mãos atados, a um sistema de poder fundado em relações clientelistas (LÉNA, 1996, p. 113). A troca em questão implicava em assimetria não distante da descrita por Pierre Bourdieu quando analisa a dominação no campo político na qual “passa-se, gradualmente, da simetria da troca de dádivas à assimetria da redistribuição ostentatória Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 99 que é a base da constituição da autoridade política” (BOURDIEU, 1980, p. 210). Uma autoridade manifesta na expressão tipicamente simbólica de testemunhos de gratidão, de homenagens, de respeito, de obrigações ou de dívida moral. Assim, pode-se perceber que na redistribuição, o que tocava ao seringueiro não se apresentava como uma dívida, mas como uma dádiva, conferindo ao doador prestígio e legitimidade, pois: a dádiva permite de certo modo possuir a vida daqueles que não podem retribuir à altura e devem por consequência assumir uma dívida moral... Nessas situações, é a ausência de garantia institucional da dominação que obriga o dominante a ampliar esforços em permanência para assegurá-la (BOURDIEU, 1980, p. 110). No caso do seringalista , esses esforços caracterizam o trabalho de constituição de seu capital, a partir da formação de uma clientela, e de conversão de seu capital material em capital simbólico graças à organização de uma rede de bens e de serviços voltados às necessidades daquela (LÉNA, 1996). Esta atividade de conversão de capitais deve-se ao fato de o seringalista não evoluir no mesmo universo econômico e social que seus seringueiros e ocupar uma posição-chave entre o mercado e os seringueiros , desarticulados e sem autonomia. Disso, portanto, o seringalista emerge como único beneficiário. Para manter o controle sobre uma mão-de-obra, impedindo-a de fugas ou de acesso a certa autonomia, o seringalista desenvolve estratégias de dominação que, em função das circunstâncias e de contextos, iam “da redistribuição clientelista generosa à violência física extrema. [cujo, grifos nossos ] limite absoluto é a escravidão, próxima de certas formas de servidão por dívida praticadas atualmente no Brasil” (LÉNA, 1996, p. 116).  Esta atividade de conversão dá-se igualmente, segundo Christian Geffray, com base na “ficção de uma equivalência Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... entre os bens trocados, ficção dependente da “palavra” do seringalista que a sustenta e justifica”. De fato, na medida em que o trabalho do seringueiro não é pago em moeda e sim com produtos e serviços, a troca baseia-se no valor estimado do látex em comparação aos bens manufaturados fornecidos. É nessa estimação que “reside toda a arte original da dominação: fazer com que nela se acredite” (GEFFRAY, 1996, p. 155). E esta crença é tão importante quanto a equivalência fictícia que tem por função justificar uma dívida original 13 que se apresenta como “a forma contábil da exploração, que compõe o quadro imaginário no qual o cativeiro dos produtores se reveste de uma significação em cifras, coletivamente reconhecida, e pode adquirir uma legitimidade” (GEFFRAY, 1996, p. 156). Um dos efeitos perversos desta dívida é de desenvolver nos dominados uma consideração para com seus exploradores, que são louvados e amados pela generosidade de seus serviços e presentes. Eles se tornam protetores e redistribuidores paternais… a população destinatária de suas generosidades que eles coletivamente excluem de todo acesso autônomo ao mercado, acreditam neles, obedecem e para eles trabalham (GEFFRAY, 1996, p. 156). 13 Quando em uma de suas viagens a serviço do governo brasileiro, dessa vez ao Amazonas e Acre, no início do século XX, Euclides da Cunha registrou precisas descrições sobre as condições de trabalho nos seringais. Pelas observações desse autor a produção da borracha se com base na “mais criminosa organização do trabalho" e "o seringueiro realiza uma tremenda anomalia, é o homem que trabalha para escravizar-se” (CUNHA, 1976, p.109). Considerava Euclides da Cunha a inexistência de condições para saldar a dívida original contraída pelo seringueiro antes mesmo de iniciar seu trabalho na coleta de látex. Uma dívida jamais saldada, pois, anualmente atualizada com base nos cálculos do patrão (PACHECO, 2012). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 101 Por isso o seringalista , enquanto “dominante paternalista, seja ele o mais medíocre” (GEFFRAY, 1996, p. 159), dispõe, em sua relação com o dominado, de uma legitimidade pois considerado como a encarnação da lei. Uma lei imposta ao dominado e que obriga o dominante, enquanto “bom patrão”, ao “amor do dominado”, com tudo o que isso implica em termos de exigências e de obrigações. Mas, caso o “bom patrão”, não respeite a lei, abusando de sua legitimidade enquanto encarnação desta, o dominado não dispõe de nenhum recurso, nenhum apoio para se defender. A fuga então, tal como faziam muitos cativos em regime de escravidão, emerge como único meio de não ser executado pelo senhor 14 . O sistema paternalista do aviamento , que se atualiza durante o Ciclo da Borracha 15 , consegue se estender ao conjunto da Amazônia 16 e segue adaptando-se a atividades e contextos diferentes 17 . No caso da coleta da castanha do Pará 17 Esta extensão a diferentes contextos dá-se por adaptação das formas de dominação às atividades e à sua perenizacão. Márcio Meira mostra, por exemplo, como em 2013-2014 os beneficiários do Bolsa Família e Previdência Especial sofreram com a “reciclagem do sistema do aviamento , no qual os comerciantes localizados na cidade passam a se apropriar ilegalmente dos cartões de crédito dos beneficiários desses Programas do Governo Federal, mantendo-os preso a dívidas impagáveis” (MEIRA, 2018, p. 116). Noutro caso, bem mais recente, 16 “A curta importância assumida pela borracha na pauta de exportações brasileiras não corresponde à importância e à permanência das relações sociais e do modo de vida que ela criou. Isso explica, de um lado, que a borracha continuasse sendo produzida, apesar das circunstâncias adversas do mercado internacional, e, de outro, que outras produções possam ser realizadas mantendo-se as relações sociais supostas na extração da borracha” (OLIVEIRA, 2012, p. 28). 15 De acordo com Márcio Meira (2018, p. 101), “a economia do látex no século XIX não criou, mas “retomou” e “ampliou” o “tradicional sistema de aviamento”, em vigor em várias partes da Amazônia”. 14 Sobre a prática de assassinato dos empregados e serviçais pelos “patrões” na Amazônia, ver as descrições de Christian Geffray (2007) em A Opressão paternalista: cordialidade e brutalidade no cotidiano brasileiro . Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... também foi possível verificar a incidência do sistema de aviamento . A situação dos coletores nos castanhais De acordo com a socióloga Marília Ferreira Emmi (1999; 2002), reconhecida especialista das relações entre poder econômico e político ligados ao extrativismo nos castanhais, a castanha passa a se destacar na economia da Amazônia quando declina o extrativismo do látex das seringueiras. Fruto da castanheira ( Bertholletia excelsa ), essa amêndoa nutritiva tradicionalmente integrada na alimentação de pessoas e animais na Amazônia, no início do século XIX figurava entre os produtos brasileiros exportados, sobretudo para os Estados Unidos e a Inglaterra. A incidência das castanheiras verificada nas terras altas e solos firmes da bacia amazônica, se no Amazonas, Acre, Amapá e Pará. No Pará, depois de desenvolvidas a exploração nas regiões do Trombetas e Baixo Tocantins, a coleta de castanha para exportação vai se tornar bastante expressiva nos anos de 1920 nas terras da confluência dos rios Itacaiunas e Tocantins, na região de Marabá, município que, por várias constatou-se “a situação dos pequenos produtores de abacaxi de Salvaterra, município situado na Ilha do Marajó, no estado do Pará, que se beneficiaram de um programa governamental de apoio técnico e financeiro para o desenvolvimento dessa cultura e utilizaram os serviços de “atravessadores” estabelecidos na capital do estado, para escoar sua produção. Os atravessadores compravam a produção antes de seu plantio. Uma forma de prestação por adiantamento de dinheiro, possibilitando o investimento na plantação e o atendimento de necessidades básicas dos produtores que assim adentram uma cadeia de dependência tal como no aviamento, em modos atualizados (TEISSERENC; TEISSERENC, 2016). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 103 décadas do século XX, se notabilizou como “terra dos castanhais”. No caso da região de Marabá, onde se concentraram os estudos de Emmi (1999; 2002), dos castanhais, grupos oligárquicos se constituíram em seus “donos” passando a exercer controle absoluto, das terras onde estes (os castanhais) estavam presentes. Por meio desse controle os tais “donos” construíram sua legitimidade econômica e política. Vale ressaltar, nesse sentido, que a atividade produtiva, da extração à exportação, estava sob o controle daqueles que detinham as terras, as embarcações para o transporte fluvial e o comércio da castanha e outros gêneros. Nessa engrenagem as pessoas que trabalham apanhando a castanha encontravam-se dominadas pelos “donos” de castanhais, tanto pelo sistema de dívidas, como pela violência exercida diretamente por jagunços e pistoleiros ao seu serviço. O trabalho dos coletores, ou apanhadores , de castanhas, à diferença do dos seringueiros , é ritmado pelo tempo da safra (de dezembro, janeiro até abril), o que leva a estratégias diferentes para se impor a dominação. De fato, na situação em questão, mesmo havendo, como no caso do seringal , controle nas vias de circulação e de comercialização dos produtos e dos serviços necessários à sobrevivência dos trabalhadores, não se verifica aquela estimativa fictícia dos valores dos bens trocados pelo trabalho efetuado, base do sistema de dívida, imposto diretamente pelo seringalista ou pela pessoa de sua confiança localmente situada e a seu serviço. No caso do castanhal, de acordo com o observado pela antropóloga Neide Esterci (1996) em suas pesquisas dos anos de 1980, o proprietário do castanhal era obrigado a contar com intermediários, os chamados gatos , para recrutar os apanhadores mediante propostas contratuais geralmente falsas. Aliás, a denominação gato é significativa da dissimulação presente nessas práticas contratuais: Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... um termo jocoso e pejorativo que alude a ̀ habilidade desses intermediários de seduzir os trabalhadores com "falsas promessas" sobre salários, condições de vida e de trabalho. A palavra também indica as muitas práticas dos empreiteiros denunciadas pelos trabalhadores como formas de apropriação de parte ou mesmo de toda sua remuneração: a retirada de uma "porcentagem" da remuneração devida aos trabalhadores sob alegação de ajudarem-nos a organizar e executar o serviço de forma mais rentável; a distorção das medidas de área estipulada para a tarefa a ser realizada; a manipulação das contas de modo a criar ou aumentar a dívida do trabalhador; finalmente, a fuga com o montante de dinheiro pago pela empresa e no qual se inclui a remuneração a ser repassada aos trabalhadores no final da tarefa”. (ESTERCI, 1996, p. 132). Essas “falsas promessas” sedutoras feitas aos apanhadores , levam a aceitar a proposta dos recrutadores e assim se deslocarem dos estados vizinhos de Goiás e do Maranhão, para trabalhar nos castanhais do Pará durante os quatro meses do período de apanha . Durante esse período os apanhadores precariamente alojados, privam-se como podem para economizar esperando retornar aos seus lugares de origem levando o ganho acumulado. Diferente da relação entre seringueiro e seringalista baseada na dádiva e na dívida, o contrato entre o proprietário do castanhal e o apanhador de castanha se com base em uma troca monetária mínima. O que poderia colocar o apanhador de castanha em uma situação mais livre na medida em que o acesso ao mercado de bens e serviços não é intermediado pelo proprietário do castanhal. Mas, não. Essa relação, como demonstrado por Geffray (1995), se caracteriza por uma grande violência por parte dos donos dos castanhais que, ao contrário dos seringalistas , não podem dissimular os Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 105 mecanismos de dominação e assim suscitar um reconhecimento em troca dos serviços prestados aos seringueiros , como o direito a uma moradia para si e a família. Na situação dos apanhadores de castanha “tal agrado, símbolo da exploração, mais ainda sua objetivação institucional” (GEFFRAY, 1995, p. 49), não ocorre. Na impossibilidade de transformar os apanhadores de castanha em uma clientela cativa, aos donos dos castanhais o único recurso disponível é a força bruta. Desse modo, para que a situação permaneça em paz, o explorado não opõe resistência à dívida 18 calculada e contínua contra sua prestação. Caso resista a continuar o trabalho por desacordo quanto à dívida, sua morte estará sentenciada pelo patrão. Da mesma maneira, convencido de sua dívida, caso se esforce ao máximo no trabalho para saldá-la, e alcance de fato uma situação de solvência, o apanhador de castanha também será executado a mando do patrão. O mais impressionante, a partir do que descreve Geffray (1995) é a naturalização dessa habitual violência por parte dos donos dos castanhais, dispostos a matar sem nenhum pudor, sem que em sua memória habitem as lembranças de suas vítimas, muitas, é preciso dizer. A memória se faz presente quando não mais o que dizer, “quando se esgota a linguagem… é a violência sórdida no silêncio dos mais fortes” (GEFFRAY, 1995, p. 50). Para esses dominadores, o assassinato não se reduz a um crime; ele é um dos componentes do exercício da dominação e encontra seu sentido dentro da 18 Para Jean-Claude Meillassoux a constituição da dívida é necessária ao exercício do paternalismo. “Basta manter a pessoa em uma situação de necessidade, diminuindo seus rendimentos, e de incapacitá-la física e moralmente a encontrar outros recursos. As intenções do paternalismo são de distanciar a remuneração do trabalho do quadro contratual para assim manter relações arbitrárias de indulgência” (MEILLASSOUX, 1996, p. 352). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... lógica da exploração 19 . “O assassinato atinge seletivamente e em definitivo todos os maus jogadores” (GEFFRAY, 1995, p. 52). A onipresença do modo de dominação que encontrou sua forma canônica no sistema paternalista do aviamento e que permaneceu na implementação da política de colonização da Amazônia brasileira a partir dos anos de 1960 (BECKER, 2009), revela sua grande legitimidade. Uma legitimidade cujas razões podem ser identificadas no processo de estruturação do Estado brasileiro a partir da Proclamação da República em 1889. Relembrar algumas das características desta construção pode contribuir para a compreender as razões da permanência desse modo de dominação na sociedade brasileira, a legitimidade que ela adquiriu e o que explica a importância de seus efeitos sobre os territórios. Modos de dominação e construção da nação brasileira. O Estado-nação 19 É importante lembrar aqui as duas fontes de violência das quais são vítimas populações dominadas na Amazônia: as práticas dos dominantes, em meio aos quais os fazendeiros e práticas da vida social dos dominados, tratadas por Maria Sylvia de Carvalho Franco (1977 [1969]) e Caio Prado Júnior (2011 [1942]). Comparando a situação das famílias dominantes, no seio das quais os interesses de poder justificam uma solidariedade, um controle permanente e o respeito das regras “como as prescrições fundamentais de autoridade paterna” (FRANCO, 1977, p. 47) com a das famílias dos dominados, onde não controles baseados em interesses, Maria Sylvia de Carvalho Franco afirma “o que sobressai como padrão de comportamento é a violência, correspondendo a todo um sistema de valores centrados na coragem pessoal” (FRANCO, 1977, p. 51). Desse modo “a violência se erige em uma conduta legítima” (FRANCO, 1977, p. 51). Essas relações se desenvolvem em um contexto em que, segundo Caio Prado Júnior, “a escravidão, a instabilidade e insegurança econômicas...; tudo contribuirá para se opor à constituição da família, na sua expressão integral em bases sólidas e estáveis” (PRADO JÚNIOR, 2011, p. 372). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 107 brasileiro: incompletudes que se perenizam As análises de Darcy Ribeiro (1995) sobre a constituição do “povo brasileiro” no contexto da Proclamação da República mostram uma situação em que, diferente de muitos países multiétnicos, “os brasileiros se integram em uma única etnia nacional, constituindo assim um povo incorporado em uma nação unificada, num estado uni-étnico” (RIBEIRO, 1995, p. 22). Esta situação muito particular deve-se ao desejo de criação de uma unidade nacional com base em uma uniformidade cultural, o que constitui uma característica extraordinariamente importante em vista do que ocorreu em outras partes da América, sobretudo a hispânica. Esta vontade se impôs ocultando disparidades, contradições, e os antagonismos de classe que persistem, através de “processos tão violentos de ordenação e repressão que constituíram, de fato, um continuado genocídio e um etnocídio implacável” (RIBEIRO, 1995, p. 22). Assim procedendo, o país teria economizado a passagem de uma sociedade pré-capitalista a uma sociedade capitalista como descrita por Pierre Bourdieu (1994), sem a dissimulação das relações de dominação e a justificação dos efeitos de uma dominação exercida com base em relações impessoais graças à institucionalização de campos sociais como o mercado de trabalho, a educação, o direito, a religião, a política, em cujas funções se encontra a de gerenciar tais efeitos. Compreende-se melhor porque, no caso brasileiro, a unidade reivindicada se apresenta como o resultado de “um processo continuado e violento de unificação política” que “potencializa e reforça a repressão social e classista”, enquanto a uniformidade cultural reivindicada se impôs, exacerbando antagonismos de classe em benefício de uma camada social Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... muito privilegiada 20 , esquecendo quase que completamente que, como refere Bertha Becker esse “povo-nação surge da concentração de uma força de trabalho escrava, recrutada para servir a propósitos mercantis alheios a ela” (BECKER, 2009, p. 23). O que foi alcançado através da violência e repressão, do “genocídio” e “etnocídio”, afirmado por Darcy Ribeiro (1995). Esta exacerbação, que alimenta uma distância social particularmente grande entre os dominantes e os dominados, traduz-se, do lado das elites “primeiro lusitanos, depois luso-brasileiras e, afinal, brasileiras”, por um medo dos riscos de sublevação das classes oprimidas; um medo que explica “a brutalidade repressiva contra qualquer emergência e a predisposição autoritária do poder central, que não admite qualquer alteração da ordem vigente” (RIBEIRO, 1995, p. 24). Este medo é consequência do abismo profundo que separa as classes sociais, sem que isso degenere em conflitos sociais graças a uma divisão dos espaços urbanos que permite a cada classe funcionar em casta ou em gueto. Os dominantes se isolam “numa barreira de indiferença” para se proteger da “miséria repugnante”, a qual por todos os meios se busca “ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social” (RIBEIRO, 1995, p. 24) 21 . 21 Esta análise do contexto socioeconômico brasileiro vai ao encontro daquela desenvolvida por Francisco de Oliveira (1988) sobre o retardo de nossa industrialização. Corroborando a perspectiva de Celso Furtado, Oliveira afirma que tal retardo deveu-se à permanência, até os anos 1930 momento da grande crise do capitalismo mundial dos padrões escravocratas nas relações de trabalho e de seus efeitos nas práticas e estratégias dos dominantes. Nesse sentido, “o escravismo constituía-se em óbice à industrialização na medida em que o custo da reprodução do 20 Essa exacerbação, que contribui com a manutenção de formas de dominação, está na origem de uma narrativa nacional desconectada da realidade: “o espantoso é que os Brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, “democracia racial”, raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais” (RIBEIRO, 1995, p. 24). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 109 Eis a situação do “povo brasileiro” que “pagou um preço terrivelmente alto em lutas das mais cruentas de que se tem registro na história, sem conseguir sair, através delas, da situação de dependência e de opressão em que vive e peleja” (RIBEIRO, 1995, p. 25). Segundo Darcy Ribeiro, a incitação à violência que emana da classe dominante e sua recusa a toda reforma institucional contrária aos seus interesses, a ela se opondo pela repressão, é constituinte da história do Brasil. A construção deste Estado-nação brasileiro acompanhou-se, na escala local, da permanência de um sistema de poder cujas raízes se encontram na colonização, o mesmo que se impôs durante o Ciclo da Borracha sob a forma do aviamento , e que resistiu às grandes transformações socioeconômicas e sociopolíticas pelas quais o país passou desde fins do século XIX. Poder local na Amazônia e o clientelismo em sua reprodução O poder local, no nosso entender, carrega hoje ainda características do sistema de aviamento como tratado por Pierre Teisserenc (2016). Entre essas características, encontra-se o par paternalismo-clientelismo como fenômeno. Na origem deste fenômeno, que ainda pode ser verificado, mesmo se podemos escolher nossos representantes pelo voto, está o aviamento 22 , o que se explica pela busca por parte dos eleitores 22 Cf. Léna (1996) que, a propósito do clientelismo eleitoral, o analisa como resultado de mecanismos similares no exercício da dominação-exploração fundados na dependência pessoal. escravo era um custo interno na produção” (OLIVEIRA, 1988, p. 41), o que explica a manutenção de um padrão não-capitalista e de “relações não-capitalistas”, que têm como efeito garantir “as estruturas de dominação e a reprodução do sistema” (OLIVEIRA, 1988, p. 44). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... de vantagens outorgadas pelos poderes públicos e manipuladas pelos notáveis locais. Entre esses notáveis, figura emblemática é a do coronel , que passou a existir durante o período imperial no Brasil, e que durante os primeiros tempos da República, momentaneamente é fortalecido” (LÉNA, 1996, p. 119). Esse último, ao apoiar uma candidatura ao poder local, dirigia-se aos eleitores fazendo-lhes individualmente promessas em troca de seus votos. Os eleitores para se beneficiarem da generosidade do coronel 23 cumpriam sua parte no trato. Tal comportamento, no entanto, não corresponde simplesmente a um cálculo racional, pois, como os compromissos são baseados em promessas, o não cumprimento do trato implica em represálias por parte de quem se elege, para isso contando com a chantagem permanente, de sucesso garantido pelos serviços de delação prestados eventualmente por um apoiador, vizinho ou conhecido de um eventual “traidor” (TEISSERENC, 2016). Esse poder de dominação, contando permanentemente entre seus métodos com a chantagem, “exercida pelo governante local sobre os cidadãos graças a ̀ uma gestão hábil e perversa dos empregos públicos 24 , o que, em tal contexto, constitui a fonte principal de um poder discricionário cuja autoridade se assenta na manutenção de um tipo de 24 O município de Salvaterra (PA), situado na ilha do Marajó, estado do Pará, possuía em 2015 uma população próxima de 25.000 hab. Naquele ano no setor da educação, pelo menos 900 postos de trabalho estavam preenchidos com contratações temporárias, permitindo assim o funcionamento de 57 escolas. 23 Incontornável referência na análise sociológica da estruturação do poder político no Brasil republicano é Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976). A autora demonstrou como o voto corresponde a uma troca entre o candidato e o eleitor intermediado pelo “coronel”, sob a forma da promessa de um serviço cuja realização incerta constitui ameaça permanente. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 111 dominação ainda mais perverso” (TEISSERENC, 2016, p. 58), considerando a precariedade desses empregos 25 . De fato, nas famílias que não possuem outras rendas a não ser aquelas advindas de programas de redistribuição de renda do governo, da aposentadoria dos avós e/ou geradas por atividades de agricultura de subsistência, pela pesca artesanal, ou por um pequeno comércio, entre outros, um emprego público, mesmo de duração determinada, é quase um milagre e a incerteza em mantê-lo uma ameaça, uma fonte incessante de angústia. A análise dessas relações paternalistas mostra que elas põem em causa três fatores: um problema geral de acesso a recursos quer se trate de bens de produção, de acesso aos serviços, de recursos financeiros, de bens simbólicos 26 –, de déficit de autonomia por parte dos dominados e de ausência de um mercado de trabalho regulado. As semelhanças entre essas situações de dominação, dos seringueiros do Ciclo da Borracha, dos apanhadores de castanha e, mais recentemente, a situação dos empregados na educação em Salvaterra (PA), testemunham uma continuidade compondo com as transformações vividas pela sociedade brasileira desde o fim do período colonial, passando pelo Império, pela Proclamação da República e pela construção de um Estado-nação, mesmo com a industrialização, enfim, mesmo com sua transformação em sociedade capitalista. A constatação dessa continuidade reforça a tese desenvolvida por Márcio Meira (2018). 26 Ainda no município de Salvaterra (PA), um dos prefeitos, de confissão evangélica, utilizou seu pertencimento religioso como um recurso privilegiado na distribuição de bens a seus eleitores prometidos durante a campanha eleitoral, além do recurso do acesso a emprego público através de contrato temporário. 25 A renovação anual, no caso dos contratos ligados à educação, na véspera das férias escolares de janeiro e fevereiro, tanto mantém a incerteza quanto libera os cofres municipais de dispêndios com remuneração nos dois meses de recesso. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... Resta explicar as particularidades da construção deste Estado-nação e a permanência de um sistema de poder local herdeiro de características de modos de dominação tão antigos. Brasil, uma sociedade capitalista híbrida? Tal situação, caracterizada pela permanência e a visibilidade de relações de dominação tanto a nível nacional quanto a nível local, faz eco a uma das ideias do quadro teórico de Pierre Bourdieu, segundo a qual o que distingue as sociedades pré-capitalistas das sociedades capitalistas, são as formas de expressão da violência manifestas em relações pessoais ou impessoais. Como procuramos demonstrar anteriormente, no caso da sociedade pré-capitalista amazônica, o sistema de dominação pelo aviamento , que ganhou expressão no fim do século XIX no período do Ciclo da Borracha, difundiu-se, para além dos seringais , na organização da exploração dos recursos naturais da Amazônia. Difusão de um sistema caracterizado por uma dominação fundada em relações pessoais e na ampliação de uma violência 27 tanto física quanto simbólica, uma vez reunidas condições favoráveis aos dominadores para converter dívida em dádiva, como normalmente se dava na relação entre o seringalista e o seringueiro . Esta conversão da violência física em simbólica, que se através de um trabalho oneroso de dissimulação dos mecanismos de dominação, exigia dos 27 Não é o aviamento praticado no contexto do Ciclo da Borracha que origina a violência nas relações interpessoais em questão. Esta violência é inerente à situação de categorias sociais dominadas, como demonstrado nos estudos Caio Prado Júnior (2011) e de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1977). Ver nota 13 . Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 113 seringalista s, a manutenção de uma rede complexa para assegurar o fornecimento de bens manufaturados e dos serviços de primeira necessidade necessários à sobrevivência dos seringueiros , e de suas famílias, quando este era o caso, pagos a um preço estimado de modo aleatório e enviesado do valor do látex colhido em favor dos seringalistas . Na Amazônia, a modernização adotada a partir da segunda metade do século XX, na continuidade da constituição de um Estado-nação republicano 28 , difere do que se produziu na Europa e América do Norte, pois articulada a uma cultura política autoritária. É como se os dominantes não tivessem conseguido perceber as vantagens oferecidas como é em geral o caso em uma sociedade capitalista pelo funcionamento de campos como o mercado de trabalho, a educação, a religião, a política, cujos efeitos enquanto dissimuladores da dominação, os dispensaria de, para se justificarem, operarem seus poderes com estratégias onerosas e complexas. Pode-se constatar que tal modernização se deu mantendo-se práticas no exercício do poder local características de uma dominação pessoal, autoritária e explícita. O olhar de Darcy Ribeiro (1995) sobre a construção de uma sociedade brasileira, ilusoriamente reunida em uma unidade cultural dissimuladora das grandes desigualdades econômicas e sociais, traz um primeiro elemento de explicação para compreender a natureza das relações entre classes sociais que se ignoram. Em meio a análises mais recentes, as de André Botelho (2019) 29 explicam a permanência de uma concepção 29 André Botelho baseia sua interpretação em Maria Sílvia de Carvalho Franco ([1969]1997). 28 Em meio às grandes transformações socioeconômicas e sociopolíticas que acompanham o chamado modelo modernista, note-se o desenvolvimento da educação e de um sistema de saúde, uma transferência dos investimentos para a exploração de matérias primas e setor industrial e uma aceleração da urbanização. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... autoritária e violenta da dominação, tanto ao nível nacional quanto local, apesar da construção de um Estado-nação dotado de instituições de forte legitimidade, dada a vontade das elites em manter uma dominação fundada em relações pessoais “incorporadas às instituições políticas como princípio mais geral de regulação das relações sociais... que se manifestam, fundamentalmente, no exercício personalizado do poder” (BOTELHO, 2019, p. 171). Retomando a tese desenvolvida por Lilia Moritz Schwarcz (2019), André Botelho justifica a permanência de uma dominação pessoal pela ausência de uma ruptura social na história do país sob efeito de uma guerra ou revolução –, o que confere, em relação ao passado “o peso de uma herança cultural” geradora de “formas de socialização modeladas pelo regime da escravidão” (BOTELHO, 2019, p. 174) 30 . Essa “herança cultural” estaria na origem de uma solidariedade restrita à esfera familiar “que aflora constantemente no fluxo do processo político” (BOTELHO, 2019, p. 104) na qual se reencontraria o essencial das características de um sistema paternalista de dominação que é predominante no exercício do poder local. Foi necessário esperar o retorno da democracia em fins dos anos de 1980 para que, localmente, algumas alterações no sistema de poder pudessem ser produzidas. Alterações possibilitadas uma vez considerados desafios ambientais segundo modalidades que resta a apresentar. 30 Essas análises vão ao encontro das de Caio Prado Júnior (2011[1942]) ao descrever sem complacência a situação de uma sociedade colonial amazonense caracterizada pela “instabilidade e incerteza” e que se apresenta “mais como uma aventura que a constituição de uma sociedade estável e organizada” e que se “revela em toda sua crueza e brutalidade”, reiterando a colonização brasileira como “empresa exploradora dos trópicos” (PRADO JÚNIOR, 2011, p. 227). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 115 O retorno da democracia e o desafio ambiental: o desafio ambiental quando considerado Com o retorno da democracia, a implementação de uma Constituinte e a promulgação de uma Nova Carta em 1988, na qual uma legislação ambiental foi contemplada, em um contexto internacional particularmente sensível aos desafios ecológicos 31 . A partir de então toda uma série de medidas foram tomadas pelo governo, que terão por efeito, em certos territórios, criar condições favoráveis à emergência de iniciativas de desenvolvimento orientadas pelas exigências ambientais e sociais, portanto correspondentes ao que se chamou modelo socioambiental (LÉNA, 2002, p. 3). Esse novo modelo se caracterizaria, pela mudança na estrutura da sociedade regional diversificação social, conscientização e aprendizagem política fruto da mobilidade populacional e da urbanização... e, provavelmente a mais importante transformação, expressa na organização da sociedade civil e no despertar da região para as conquistas da cidadania. [Tais mudanças originaram novas conflitualidades cujo efeito mais significativo é a existência de... grifos nossos ] um processo de politização da natureza, 31 Lembremos, como eventos ilustrativos, do impacto internacional do assassinato em 1988 de Chico Mendes, líder de um movimento social fortemente engajado na luta contra a desflorestação da Amazônia e pelos direitos sociais dos chamados “povos da floresta”, e/ou populações tradicionais (seringueiros, indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, quebradeiras de côco babaçu, entre outros segmentos). Assassinato que ocorre em contexto sensibilizado pela publicação de Nosso Futuro Comum , o Relatório Brundtland, em 1987 (CMMAD, 1991), documento preparatório à realização da Conferência Mundial sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente (Eco-92), em 1992 na cidade do Rio de Janeiro. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... desnaturalizando a questão ambiental (BECKER, 2009, p. 30-31). Tal processo teria feito da Amazônia, à época, “uma verdadeira fronteira experimental de um novo padrão de desenvolvimento” (BECKER, 2009, p. 104) caracterizada em especial pela “institucionalização de uma malha ambiental” (BECKER, 2009, p. 115), no âmbito de uma descentralização do poder. Dessa perspectiva compartilha Carlos Walter Porto Gonçalves (2001), autor que considera a institucionalização da malha ambiental na Amazônia como um laboratório da ecologização da política sob o efeito de uma diversidade de movimentos sociais portadores de reivindicações que concernem ao uso da terra de acordo com as exigências ambientais movimentos de re-existencia, posto que não lutam para resistir contra os que matam e desmatam, mas por uma determinada forma de existencia, um determinado modo de vida e de produção, por modos diferenciados de sentir, agir e pensar (PORTO GONÇALVES, p. 129-130). Também foi verificado que a emergência desse modelo socioambiental amazônico se manifestou em um contexto de “ambientalização” 32 das situações territoriais, que levam, sempre que as condições são favoráveis, a mobilizações de caráter político das chamadas populações tradicionais que interpelam o sistema tradicional de poder local. 32 Sobre a ambientalização enquanto contexto característico de uma etapa da “grande transformação” (POLANY, [1944] 1980) e as potencialidades do ambientalismo para regular o capitalismo e indicar transformações sociopolíticas e econômicas, conferir José Sérgio Leite Lopes (2006). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 117 Uma mobilização política A análise dessas mobilizações por Pierre Teisserenc (2016), conduz à distinção entre uma mobilização de natureza identitária, por parte de comunidades quilombolas engajadas na luta pelos seus territórios e direitos diferenciados, justificados pelas suas particularidades étnicas, e uma mobilização de natureza política, por parte de outros segmentos das chamadas populações tradicionais que buscaram tirar proveito da “malha institucional” das políticas públicas ambientais, implicando-se ativamente na criação de áreas protegidas, tais como as Resex (Reservas Extrativistas). De um lado, os quilombolas escolheram se implicar na cena local “como um grupo estigmatizado, preocupado em denunciar as discriminações sofridas e obter compensação por meio das vantagens reivindicadas” (TEISSERENC, 2016, p. 253). Sua mobilização, evidentemente permite respostas a certas reivindicações, mas nada foi alterado no sistema de poder local. De outro lado, a mobilização pelo reconhecimento de seu território e do direito ao uso de seus recursos a partir da criação de uma Resex oferece, em conjunturas favoráveis 33 , oportunidade de um reconhecimento cidadão em nome de competências coletivas para assegurar o desenvolvimento sustentável de um território graças à eficiência de saberes e fazeres nativos . De fato, observa-se como, em um novo contexto, a elaboração participativa de diagnósticos ambientais do território e o trabalho do Conselho Deliberativo 33 Por conjunturas favoráveis compreendemos situações que prevaleceram em duas Resex estudadas, nas quais, após eleições municipais marcadas pela participação do movimento social no poder local, o prefeito mesmo, ou o vice-prefeito passaram a participar das reuniões do Conselho Deliberativo das Resex instituídas em seus respectivos municípios, permitindo assim resolver problemas delicados de integração de decisões desta instância, de natureza deliberativa, no sistema de poder local tradicional, de natureza representativa. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... de uma Resex constituíram-se em ocasiões nas quais os membros das comunidades se engajaram em projetos coletivos inspirados nos saberes nativos e enriquecidos pelas contribuições, orientadas pelas exigências ambientais, de “novos parceiros, como ONGs, universidades, serviços especializados do Estado etc.” (TEISSERENC, Maria José, 2016, p. 239). E, do ponto de vista da mobilização, resultaram a priorização de acordos, a implementação de dispositivos de controle etc., com vistas à promoção do desenvolvimento sustentável do território. A priorização de acordos, no caso, foi possibilitada pelo trabalho no Conselho Deliberativo, cujo reconhecimento de seu caráter político se impôs desde que um dirigente municipal passou a participar pessoalmente dos debates e a considerar as decisões ali deliberadas. Um reconhecimento que é, ao mesmo tempo, das populações tradicionais enquanto beneficiárias de um território, a partir de um contrato com o Governo Federal, enquanto cidadãs que contribuem com o desenvolvimento sustentável. Este reconhecimento constitui uma maneira de confrontar o sistema local de dominação (TEISSERENC, Pierre, 2016), na medida em que representa o resultado 34 de jogos de alianças entre dominantes e dominados capazes de permitir a experimentação de um novo referencial de desenvolvimento do território, dirigido pelas exigências ambientais, em relação estreita com uma compreensão dos recursos do território enquanto bens comuns, podendo se constituir em modelo de desenvolvimento socioambiental . 34 A situação de ambientalização cria as condições de um trabalho de aprendizagem coletivo colocando em cena novas relações entre dominantes e dominados empenhados em responder às exigências ambientais de desenvolvimento de seu território em cujos efeitos se encontra uma “governança territorial ambiental” (TEISSERENC, Maria José, 2016; TEISSERENC, Pierre, 2016). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 119 Considerações finais: uma leitura do contexto atual A emergência de um modelo socioambiental se opõe, quando as circunstâncias locais permitem, ao modelo modernizador e, mais precisamente, ao sistema paternalista de dominação a ele associado. A análise das tensões resultantes desse confronto entre modelos aqui pretendida se inspira no quadro de análise de Pierre Bourdieu que, a nosso ver é pertinente. Para concluir, três aspectos desse quadro que nos chama a atenção ao nos referirmos a situações na Amazônia brasileira. O primeiro aspecto diz respeito à importância dos modos de dominação como descritos em Pierre Bourdieu para pensar características de uma dominação que se estrutura com a colonização e encontra-se atualizada em situações na Amazônia, mas também no país como um todo, ao nível de cada um de seus territórios. É evidente que a rapidez com que recentemente retornou o autoritarismo ao primeiro plano da cena política no Brasil, a partir da destituição da Presidenta Dilma Roussef em 2016 e do resultado das eleições de 2018, confirma a importância e pertinência de um quadro de análise que considere os modos de dominação como sugerido por Pierre Bourdieu. Muito embora, o recrudescimento das práticas autoritárias, e seus efeitos no curto prazo, em termos de confrontação entre o modelo modernizador e as novas práticas Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... locais de cidadania, inspiradas no modelo socioambiental 35 , ainda não seja possível averiguar. O segundo aspecto diz respeito ao interesse em privilegiar a análise das relações entre os dominantes e os dominados para distinguir as formas de dominação fundadas em relações pessoais, encontradas habitualmente nas sociedades pré-capitalistas, das dominações fundadas em relações impessoais, próprias das sociedades capitalistas. Este interesse confirma a importância das estratégias dos atores que, mesmo quando visam promover o bem-estar individual, trabalham para confortar seu estatuto de dominante, não importa a forma, em função de cada contexto. O terceiro aspecto põe em causa o interesse sobre as formas de dissimulação dos mecanismos de dominação objetivados, no caso das sociedades capitalistas, a partir da organização de campos como o mercado de trabalho, a educação, a justiça, a religião, a política etc., que permitem desenvolver a dominação de maneira impessoal. Situações na Amazônia brasileira mostram que a penetração do capitalismo e as transformações societais que o acompanharam não permitiram a passagem de um modo de dominação fundado em relações pessoais a um novo modo no qual prevalecem relações impessoais, em razão de condições de construção de um Estado-nação que conservou certos traços coloniais, 35 É inapropriada qualquer previsão ainda sobre o que será feito do Brasil de amanhã tamanha a confusão na situação política do país estabelecida durante os dois governos que sucederam a destituição da Presidenta Dilma Roussef em 2016. Governos que se empenharam de maneira obsessiva a esvaziar a substância de tudo o que foi construído em termos de ambientalização e de políticas sociais no Brasil desde fins de 1980. Assim, apesar da importância que representa a eleição de Luiz Inacio Lula da Silva em 2022, para a democracia no Brasil, a consolidação do modelo socioambiental, origem de mudanças significativas tratadas nesse artigo, continua em horizonte nebuloso. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 121 limitando em particular a solidariedade à família dos dominantes, em detrimento de uma solidariedade para com o conjunto da sociedade (QUEIROZ, 1976). Espera-se que as tensões entre esses dois modelos de sociedade evocados anteriormente tragam novo espaço societal favorável a uma gestão que permita as experiências de deliberação, inspiradas no modelo socioambiental, abrir vias para o enfrentamento do sistema de dominação que organiza o poder local na sua forma atual. Referências BECKER, Bertha. Amazônia : geopolítica na virada do III Milênio. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. BOTELHO, André. O Retorno da sociedade : política e interpretações do Brasil. Petrópolis, Editora Vozes, 2019. BOURDIEU, Pierre. Les modes de domination. Actes de la Recherche en Sciences Sociales , n. 2-3, p. 122-132, juin 1976. BOURDIEU, Pierre. Le sens pratique . Paris: Éditions de Minuit, 1980. BOURDIEU, Pierre. Stratégies de reproduction et modes de domination. Actes de la Recherche en Sciences Sociales , n. 105, p. 3-12, décembre 1994. CMMAD, Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum . 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1991. ESTERCI, Neide. Imobilização por dívida e formas de dominação no Brasil de hoje. Lusotopie , p. 123-137, 1996. EMMI, Marília Ferreira. A Oligarquia do Tocantins e o domínio dos castanhais . Belém: Editora Naea, 1999. EMMI, Marília Ferreira. Os Castanhais do Tocantins e a indústria extrativa no Pará até a década de 60. Papers do NAEA , Belém, p. 1-25, outubro 2002. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... escravocrata . São Paulo: Editora Unesp, 1997. GEFFRAY, Christian. Chroniques de la servitude en Amazonie brésilienne . Paris: Éditions Karthala, 1995. GEFFRAY, Christian. Le mode ̀ le de l'exploitation paternaliste. Lusotopie , p. 153-162, 1996. GEFFRAY, Christian; LÉNA, Philippe; ARAUJO, Roberto. L’oppression paternaliste au Brésil. Lusotopie , p. 105-108, 1996. GEFFRAY, Christian. A Opressão Paternalista : cordialidade e brutalidade no cotidiano brasileiro. Rio de Janeiro: Educam, 2007. LEITE LOPES, Jose ́ Sérgio. Sobre processos de “Ambientalizac ̧ã o” de conflitos e sobre dilemas da participação”. Horizontes Antropológicos , Porto Alegre, ano 12, n. 25, jan-jun. 2006. LÉNA, Philippe. As Políticas de desenvolvimento sustentável para a Amazônia: problemas e contradições. Boletim Rede Amazônia . Rio de janeiro, Ano 1, n. 1, p. 9-20, 2002. LÉNA, Philippe. Les rapports de dépendance personnelle au Brésil. Permanence et transformations. Lusotopie , p. 111-122, 1996. MEILLASSOUX, Claude. Des dimensions du paternalisme au Bre ́ sil. Lusotopie , p. 343-354, 1996. MEIRA, Márcio Augusto Freitas de. A persistência do Aviamento : colonialismo e história indígena no noroeste amazônico. São Paulo: EDUFSCar, 2018. OLIVEIRA, João Pacheco de. Formas de dominação sobre o indígena na fronteira amazônica: Alto Solimões, de 1650 a 1910, Caderno CRH , Salvador, v. 25 n. 64, jan-abr, 2012. POLANYI, Karl. A grande transformação : as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 1980 [1944]. PORTO GONÇALVES, Carlos Walter. Amazônia, Amazônias . Sa ̃ o Paulo: Ed. Contexto, 2001. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios . Sao Paulo: Alfa-Ômega, 1976. RIBEIRO, Darcy. O Povo brasileiro : a formação e o sentido do Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 123 Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro . São Paulo: Companhia das Letras, 2019. TEISSERENC, Maria José da Silva Aquino. Politização, ambientalização e desenvolvimento territorial em Reservas Extrativistas. Caderno CRH , Salvador, v. 29, n. 77, p. 229-242, mai-ago de 2016. TEISSERENC, Maria José da Silva Aquino; TEISSERENC, Pierre. Dinâmicas territoriais e socioeconômicas na Amazônia brasileira”. In TEISSERENC, Maria José da Silva Aquino; SANTANA JR, Horácio Antunes; ESTERCI, Neide (Org.). Territórios, mobilizações e conservação socioambiental . São Luís: Edufma, 2016, p. 31-60. TEISSERENC, Pierre. As vias de integração da mobilização social no campo político. Caderno CRH , Salvador, v. 29, n. 77, p. 243-259, mai-ago de 2016. TEISSERENC, Pierre. Poder local e condições de sua renovação na Amazônia. Novos Cadernos NAEA , v 19, n.1, p. 47-70, jan-abril 2016. TEISSERENC, Pierre. Les RESEXs: un instrument au service des politiques de développement durable en Amazonie brésilienne. Revista Pós Ciências Sociais . São Luís, v. 6, n. 12, p. 41-68, 2009. WEINSTEIN, B. A borracha na Amazônia : expansão e decadência, 1850-1920. Tradução Lo ́ lito Lourenço de Oliveira. São Paulo: HUCITEC: Editora da Universidade de São Paulo, 1993. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
Dominação na Amazônia brasileira... Resumo: O quadro teórico de Pierre Bourdieu sobre os modos de dominação é utilizado neste artigo para refletir sobre situações socioeconômicas e sociopolíticas da Amazônia brasileira e sua evolução sob o efeito de um modo de dominação herdado do período colonial e que conseguiu se manter no fim do século XIX, mesmo com a Proclamação da República no Brasil e a penetração do capitalismo industrial. Após apresentar algumas características do contexto amazônico o objetivo é demonstrar como nele se impõe, permanece e se difunde uma dominação, cuja base, é o aviamento , em um contexto de desenvolvimento da exploração capitalista. Observa-se que a permanência desse sistema de dominação está relacionada à construção do Estado Nação brasileiro e sua influência no poder local. Ao fim cabe interrogar-se sobre as disputas entre o modelo modernizador e o modelo socioambiental que emerge com o retorno da democracia, em um contexto jamais tão incerto quanto o atual. Palavras-chave: Sistema de dominação; Aviamento; Dívida e dádiva; Ambientalização; Poder local. Abstract: This article uses Pierre Bourdieu's theoretical framework about domination modes to reflect on Brazilian Amazon socio-economic and socio-political situations and its evolution under the effect of a mode of domination inherited from the colonial period and that continued to exist at the end of the 19th century, even with the Proclamation of the Republic in Brazil and the penetration of industrial capitalism. After presenting some characteristics of the Amazon context, our objective is to show how a domination is imposed, remains and spreads, based on a business transaction known as “aviamento”, in a context of capitalist exploitation development. The permanence of this domination system is related to the Brazilian nation-state construction and its influence on local power. Finally, it is worth questioning the disputes between the modernizer model and the social-environmental model that emerges Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. J. Teisserenc e P. Teisserenc 125 with the return of democracy, in a context as uncertain as the present one. Keywords: Domination system; Aviamento; Debt and donation; Environmentalization; Local power.   Recebido para publicação em 17/02/2022 Aceito em 31/10/2023 ACESSO ABERTO Copyright: Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024