Revista de Psicologia, Fortaleza, v.16, e025007. jan./dez. 2025

DOI: 10.36517/revpsiufc.16.2025.e025007

 

 

 

 

 

RECEBIDO EM: 22/12/2024

PRIMEIRA DECISÃO EDITORIAL: 12/03/2025

VERSÃO FINAL: 24/03/2025

APROVADO EM: 09/04/2025

 

Trajetórias mais pretes que nunca: caminhos de de(s)colonização da formação em psicologia.

Trajectories blacker than ever: paths to de(s)colonization of training in psychology.

Trayectorias más oscuras que nunca: caminos de de(s)colonización de la formación en psicología.

 

Raimundo Cirilo de Sousa Neto

Psicólogo e Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará, Brasil. Membro do Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação (VIESES/UFC). Bolsista de Demanda Social da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5305-7121. Email: xrcirilox@gmail.com. Rua Pinho Pessoa, 640, Ap. 102, Joaquim Távora. CEP: 60135-170 Fortaleza-CE, Brasil.

João Paulo Pereira Barros

Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Líder do Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação (VIESES/UFC) do CNPQ. Bolsista de Produtividade 1D do CNPQ. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7680-576X. Email: joaopaulobarros07@gmail.com. Fortaleza-CE, Brasil.

 

Resumo

A pesquisa tem como objetivo discutir as trajetórias acadêmicas de estudantes negres em um curso de Psicologia em uma universidade federal da região nordeste do Brasil, focando na decolonização da formação. A proposta metodológica teve caráter qualitativo e se delineou pelo desenvolvimento de oficinas de discussão e experimentação artística com os participantes. Resultados destacam a estrutura branca e eurocêntrica da universidade, efeitos subjetivos como inferiorização e objetificação das subjetividades negras, e estratégias como aquilombamento e produção de novos referenciais teóricos como linhas de fuga e enfrentamento ao racismo acadêmico. A pesquisa contribui para visibilizar trajetórias de estudantes negres e questionar a colonialidade na formação em Psicologia.

Palavras-chave: Decolonialidade; psicologia; branquitude; formação;

 

Abstract

The research aims to discuss the academic trajectories of black students in a Psychology course at a federal university in the northeast region of Brazil, focusing on the decolonization of training. The methodological proposal had a qualitative character and was outlined by the development of discussion workshops and artistic experimentation with the participants. Results highlight the white and Eurocentric structure of the university, subjective effects such as the inferiorization and objectification of black subjectivities, and strategies such as aquilombamento and the production of new theoretical references as lines of escape and confrontation with academic racism. The research contributes to visualizing the trajectories of black students and questioning coloniality in Psychology training.

Decoloniality; psychology; whiteness; university education;

 

Resumen

La investigación tiene como objetivo discutir las trayectorias académicas de estudiantes negros de una carrera de Psicología en una universidad federal de la región noreste de Brasil, con foco en la descolonización de la formación. La propuesta metodológica tuvo un carácter cualitativo y estuvo marcada por el desarrollo de talleres de discusión y experimentación artística con los participantes. Los resultados resaltan la estructura blanca y eurocéntrica de la universidad, efectos subjetivos como la inferiorización y cosificación de las subjetividades negras, y estrategias como el quilombomento y la producción de nuevos referentes teóricos como líneas de escape y confrontación con el racismo académico. La investigación contribuye a visualizar las trayectorias de los estudiantes negros y cuestionar la colonialidad en la formación de Psicología.

Descolonialidad; psicología; blancura; capacitación;

 

Iniciando Movimento, Contando Histórias e Desacobertando Incômodos.

O presente artigo, derivado de uma pesquisa de Iniciação Científica, que resultou em um Trabalho de Conclusão de Curso, trata sobre os movimentos de de(s)colonização que são inventados e efetivados em um curso de psicologia. O objetivo geral do estudo é discutir, a partir das trajetórias acadêmicas de estudantes negres/pretes do curso, experiências, desafios e pistas no que se refere aos movimentos de de(s)colonização da formação em Psicologia e assim, visibilizar as estratégias de permanência criadas pelos próprios estudantes.

Entendemos a de(s)colonização como as movimentações teóricas e epistemológicas que começam a ganhar força e sistematicidade a partir da década de 70 com as produções críticas de diversos grupos que têm como fio condutor comum a concepção da diferença colonial que se estabelece entre colonizador e colonizado (Ballestrin, 2013). É a diferença colonial que instaura o colonialismo como um sistema de dominação e exploração material e simbólica, e a colonialidade como a perpetuação desse sistema mesmo após o suposto fim das ocupações coloniais. Essa perpetuação se complexifica em diferentes dimensões como a Colonialidade do Poder, do Saber, do Ser (Ballestrin, 2013) e do Gênero (Lugones, 2014). É importante destacar que opto por usar a grafia de(s)colonização/de(s)colonizar, com um s intruso e ressaltado, assumindo as pluralidades, polissemias, sinonímias e contradições que o termo carrega consigo, porém, é preciso diferenciar alguns significados históricos. O termo Decolonialidade é geralmente associado às produções intelectuais latinoamericanas do Grupo Modernidade/Colonialidade mantendo seu foco nas estruturas de Saber, Poder e Subjetivação que se perpetuaram após o fim do período colonial. Já a Pós-colonialidade se localiza dentro do arcabouço conceitual do Grupo de Estudos Subalternos, o qual mantinha diálogo próximo com as teorias pós-estruturalistas europeias a ponto dessas proximidade ter gerado críticas importante ao grupo, mas também remete ao período histórico vivenciado logo após o fim da colonização europeia em alguns países africanos, como a Argélia e a África do Sul (Ballestrin, 2013). Entendido mais como um conjunto de práticas do que como um conceito em si, a Contracolonialidade prioriza as resistências postas em prática pelas populações negras, originárias e quilombolas como forma de defesa às identidades culturais frente aos processos exploratórios e aniquiladores da colonialidade, apontando para a criação de outras formas de vida e de relação com a terra (Santos, 2023).

A de(s)colonização, por sua vez, atinge toda essa complexa rede ao mesmo tempo. Trata-se de um exercício de abertura radical ao que antes estava impossibilitado pela opressão e violência colonial. Fanon (2022) utiliza a expressão “sair da grande noite anterior à vida” para falar desse exercício. O martinicano, entende o empreendimento de(s)colonial como uma ruptura violenta com o mundo como nos foi dado pelo sistema colonial. Os usos da violência nesse contexto não remetem ao aniquilamento da diferença, mas sim à produção de novas realidades, novos mundos e novos sujeitos. Só através das ruínas do colonialismo/colonialidade que poderão surgir novas formas de vida e organização social, outras gramáticas, línguas, relações com o corpo, com a natureza e com os outros (Fanon, 2022; Mbembe, 2019).

Em um âmbito epistêmico, a de(s)colonização envolve o que é caracterizado como Giro Decolonial, um processo de descentramento das epistemes hegemônicas, que se estabeleceram como centrais por sequestros e investidas violentas contra saberes, conhecimentos e cosmopercepções orientais, africanas e latino-americanas. A Europa, e mais contemporaneamente os Estados Unidos da América, criam um circuito geopolítico muito específico que só valida os próprios conhecimentos, partindo de pressupostos modernos como a neutralidade, universalidade e homogeneização linguística, no que Castro-Gómez (2005) chamou de Hybris do Ponto Zero. A isso, Carneiro (2023) chama Epistemicídio.

Este arcabouço de dominação epistêmica vêm sendo contestado nas últimas décadas nas universidades brasileiras devido às intensas mudanças que têm experimentado. Em 2018, pela primeira vez na história, pessoas negras/pretas se tornam maioria numérica (50,3%) entre estudantes de universidades públicas do país (Mendonça, 2019). Tal mudança é causada principalmente pela implementação da Lei 12.711/2012, a Lei de Cotas, que garante a reserva de 50% das vagas em instituições públicas de ensino superior para pessoas advindas de escolas públicas, de baixa renda, pretes, pardes ou indígenas. Porém, mesmo diante da significativa mudança no perfil de discentes, a universidade continua sendo um espaço majoritariamente branco, eurocentrado, masculinista e colonial. Este fato é confirmado tanto pela estrutura de ensino e produção científica, como pela sua própria concepção ocidentalizada. As universidades se configuram como espaços de reprodução, muitas vezes irrefletida, de teorias e práticas, vistas como universais e neutras, mas que são provincianas e não respondem nem correspondem às realidades dos povos subalternizados (Grosfoguel, 2016).

Estas fórmulas se repetem quando falamos sobre a Psicologia. Estamos acostumados a importar teorias para o contexto brasileiro e aplicá-las, reproduzi-las e transmiti-las sem muita moderação e quase nenhuma crítica (Costa et.al, 2021). Mesmo diante das imensas transformações nos perfis de discentes negres/pretes, poucas mudanças estruturais são observadas quando se trata das grades curriculares. As discussões sobre racismo, colonização, sexismo, capacitismo e desigualdades sociais em geral são relegadas a um lugar de apêndice da formação, como temas secundários. O sujeito masculino, branco, heterossexual, cisgênero, sem deficiência e com poder aquisitivo relevante ainda é o universal usado como régua epistêmica e clínica para a psicologia. Existe uma incompatibilidade obscena entre esse sujeito etéreo e universal e os sujeitos reais submetidos a uma série de violações e subalternizações.

Portanto, as possíveis contribuições do artigo vão em direção a uma visibilização das experiências e trajetórias coletivas de estudantes pretes/negres de psicologia, como têm se organizado e criado espaços e fraturas criativas onde uma política de reconhecimento e permanência seja efetivada. Além disso, através das próprias narrativas, buscamos coletivizar os entendimentos possíveis acerca dos movimentos de de(s)colonização, tratando-os não meramente como um tensionamento acadêmico, mas como uma práxis.

 

Contra as Caravelas, Pequenas Canoas Metodológicas.

A investigação de caráter qualitativo se efetivou a partir da proposição de oficinas de discussão e experimentação artística com estudantes de um curso de psicologia de uma capital do nordeste brasileiro. Os momentos foram gravados e posteriormente transcritos na íntegra. Para a discussão dos resultados gerados pelas oficinas, selecionamos trechos das falas des participantes que funcionassem como pistas para podermos pensar suas trajetórias enquanto estudantes negres/pretes de psicologia, e os movimentos de de(s)colonização que têm experimentado, levando em conta o objetivo geral do trabalho.

Encontramos nos trabalhos de pesquisa participativa ferramentas para propor e efetivar uma ética de pesquisa que desobedece às binaridades, dicotomias e supostas neutralidades tão comuns em nossas instituições de ensino e formas de pesquisar. Nos distanciando das perspectivas moderno-coloniais de produção de conhecimento, não se trata meramente de uma coleta de dados, mas sim da criação e potencialização de dispositivos coletivos para a problematização, análise e transformação da realidade em que vivemos (Rocha, 2006; Benício et. al, 2018; Costa et. al, 2021).

A ferramenta metodológica utilizada, a oficina de discussão e experimentação artística, possibilitou-nos um espaço dialógico para a partilha e formulação coletiva de conhecimentos, funcionando como um lugar de troca de experiências, negociações de sentidos, deslocamentos discursivos e subjetivos, problematizações acerca das vivências dos participantes e proposição política sobre os temas apresentados (Barros, Silva & Gomes, 2020).

Ao todo, 9 pessoas participaram da pesquisa, todas estudantes de psicologia, 1 delas já egressa e no momento cursando o mestrado também em psicologia na mesma universidade. Sobre o pertencimento étnico-racial, 3 pessoas se autodeclararam pretas, 5 pardas e 1 não soube responder a pergunta. Quanto à identidade de gênero, 5 se declararam homens e 4 mulheres, todes cisgêneros. Acerca da sexualidade, 4 eram bissexuais, 2 heterossexuais, 2 preferiram não responder a questão e 1 homossexual. Todas as pessoas responderam negativamente quanto à possuir deficiência física e/ou diversidade funcional. 2 des participantes eram assistidos pela Lei 12.711/2012. O realizador da oficina, o pesquisador principal, era também um estudante de psicologia, preto, homossexual e cisgênero, não era assistido pela Lei de Cotas e não apresentava deficiência ou diversidade funcional. De forma a manter a privacidade, segurança e anonimato dos participantes da pesquisa, os nomes utilizados são fictícios e de origem africana. Tais nomes terão seus significados apresentados de acordo com a aparição de cada fala no corpo do texto.

 

As inscrições para quem se destinaram as oficinas foram feitas por meio da plataforma Google Forms e para a divulgação das ações foram utilizadas diversas estratégias, como: divulgação pelo Instagram do VIESES, envio de e-mails pela coordenação do curso e convites diretos, sendo essa última estratégia a mais eficaz. No total foram realizadas 12 inscrições, e contamos com a participação de 9 pessoas nas oficinas.

Foram realizados, portanto dois encontros tendo a arte contemporânea como intercessora e aliada: o primeiro, intitulado “Trajetórias mais pretes que nunca”, discutiu os percursos pessoais até a chegada na universidade e no curso de Psicologia, focando no impacto dos processos de racialização nesses trajetos, com o objetivo de inverter a lógica tradicional e analisar como esses corpos transformam a universidade. Após o tempo de discussão, foi apresentada a proposta de experimentação artística, chamada de “Bordando uma Trajetória”, que consistia em produzir um mural em tecido que falasse sobre nossas trajetórias pessoais, acadêmicas e ancestrais. Para isso utilizamos diversos materiais: algodão cru, tintas, pincéis, canetinhas, lápis, entre outros.

 O segundo encontro, “Como criamos para nós uma de(s)colonização?”, abordou o conceito de decolonialidade e de(s)colonização, destacando as estratégias e alianças teóricas adotadas para efetivar esse movimento e os efeitos na permanência universitária. A experimentação foi denominada “Redistribuindo a violência epistêmica” e convidava a um exercício de rasura de figuras clássicas de teóricos estudados em nossa formação eminentemente branca, eurocêntrica e masculinista. Os materiais utilizados foram fotos, tesouras, colas, pincéis, canetas, tintas, um isqueiro, uma faca, revistas e jornais para recorte.

A aspiração de(s)colonial da pesquisa também se sustenta na criação de dispositivos que fortaleçam a produção de narrativas insurgentes, isto é, que desestabilizam as cristalizações coloniais e as políticas de esquecimento, apagamento e silenciamento de corpos e experiências subalternas (Costa et. al, 2021). Tendo isso em foco, as narrativas des participantes da pesquisa foram nosso principal material de análise, permitindo, assim, muito mais que uma mera ilustração empírica de uma teoria, uma possibilidade de elaboração e visibilização dessas trajetórias insurgentes em meio a um espaço e uma gramática branca, também possibilitando que os sujeitos criem e recriem suas formas de falar sobre si numa prática autopoiética coletiva.

A presente pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará, sob o parecer de nº 3080121.7.0000.5054, compondo o conjunto de investigações do projeto guarda-chuva "Aspectos psicossociais da violência e práticas de re-existência juvenis em periferias de Fortaleza-CE”.

 

Uma Brancura Esmagadora

Estamos diante de um mundo feito para o branco, gramaticalmente, simbolicamente e acima de tudo concretamente e observamos essa brancura se reproduzindo nos mais diversos âmbitos da nossa vida (Fanon, 2020; Kilomba, 2019). Paradoxalmente, ausente e onipresente, a branquitude é essa lógica que legitima, produz e mantém os privilégios políticos, econômicos, simbólicos e subjetivos da população branca, ao mesmo tempo que cria e sustenta um lugar de subalternização, violência e eminente extermínio de corpos pretos/negros. Estamos diante do silêncio, de um acordo tácito branco que, tendo para si o ideal de humano, projeta no Outro a fantasmagoria da raça e todos os outros possíveis significantes insuportáveis à civilização (Bento, 2014; Cardoso, 2014; Mbembe, 2018). Segundo Maria Aparecida Silva Bento (2014), essa lógica de funcionamento social, que se baseia numa isenção do branco como participante das dinâmicas raciais no Brasil, afinal a experiência branca não admite objetivamente a marcação racial, e consequente centralidade de pretes/negres no debate sobre desigualdades raciais, serve de motor a esta manutenção da superioridade concreta e simbólica da população branca.

É possível, portanto, pensar a universidade, essa estrutura de produção e reprodução do conhecimento fundada e sustentada na colonização, como um quadrante do cubo branco do qual nos fala Grada Kilomba (de São Paulo, 2019), e assim refletir, a partir de falas e narrativas de estudantes, os efeitos de habitar esse quadrante. Debateremos alguns desses efeitos e desafios à de(s)colonização que foram ressaltados durante as oficinas de discussão e experimentação artística, como: o não reconhecimento/pertencimento à universidade, o sentimento de inferioridade e a fixação de corpos negros enquanto objetos de pesquisa.

 

Discutindo não-lugares, falando das nossas ausências

A partir das oficinas, percebemos que o sentimento de não pertencimento atravessa a trajetória de grande parte des estudantes. Podemos ver isso na seguinte fala:

Bomani: […] sendo bem honesto, a minha trajetória nessa universidade, principalmente com a pandemia […] foi marcada muito por uma trajetória de não pertencimento. É complicado porque durante muito tempo a minha mentalidade, o meus caminhos de pensar, eles não estavam situados numa lógica de ocupação, de pertencimento, de apropriação dos espaços, mas numa lógica de "oh se for me permitido esse espaço, por favor me deixem tocar uma migalha", sabe?! (Transcrição das Oficinas).

O relato de Bomani converge com essa ideia de separação entre o mundo branco e o Sujeito negro. O que se coloca em jogo nesta experiência é o que Fanon (2020) aponta em suas considerações sobre reconhecimento. Diante das lógicas e gramática coloniais e brancas, a existência do Sujeito negro é encoberta. Não nos vemos nos livros, nem nas técnicas, nem nas salas de aula ou em qualquer posição que seja. Ausência forjada na e pela branquitude, que assim mantém seu poder, seu espaço e sua supremacia (Kilomba, 2019).

Uma das facetas desse apagamento está no Epistemicídio. O conceito trabalhado por Sueli Carneiro (2005) remete à deslegitimação das formas de conhecimento não europeias e a negação de sujeitos colonizados como produtores de algum saber válido. A autora complexifica esse entendimento propondo que o epistemicídio está diretamente relacionado a negação de educação de qualidade, a inferiorização intelectual e a deslegitimação de corpos racializados como produtores de saber.

O pertencimento também é afetado por fatores materiais. Os últimos anos da educação superior pública brasileira foram marcados pelos sucessivos cortes orçamentários e ataques ideológicos. Somado a isso temos os numerosos processos de empobrecimento e precarização da vida que recaem com mais afinco sobre a população negra. Fazendo uma crítica à estrutura de financiamento e manutenção da universidade, Bonami traz uma fala que problematiza as condições de permanência de corpos negros/pretos na academia:

Bonami: [...] a nossa existência que é comprometida, por exemplo, as pessoas que tem que trabalhar, que não podem estar nas cadeiras optativas à tarde, não podem participar dos laboratórios, não tem bolsa para todo mundo, é uma lógica bem material que impede a permanência de alguns corpos aqui, corpos pretos e periféricos. (Transcrição das Oficinas)

Todos estes aspectos têm ressonâncias negativas nas dinâmicas de reconhecimento de pessoas pretas/negras enquanto sujeitos políticos e produtores de conhecimento. Esse reconhecimento passa diretamente pela capacidade de identificar-se e sentir-se pertencente a um lugar, neste caso a universidade e a psicologia, mas também a sociedade e o status de humano. Existe, portanto, uma cisão evidente entre a lógica de funcionamento da universidade moderna e da psicologia hegemônica e os corpos que hoje a ocupam. Isso tem efeitos formativos importantes que foram destacados durante as oficinas quando Akin fala “Tal hora o nosso conhecimento não abarca, o que se produz aqui não abarca as realidades e parece que é uma realidade distante, ou que é uma realidade de minoria, mas não, é a maioria” (Transcrição das oficinas).

Aqui falamos de representatividade política e teórica. Quem além de nós, pretes, negres, indígenas, mulheres, pessoas LGBTQIAPN+, pessoas com deficiência e periféricos formulará os problemas, intervenções e soluções adequados às nossas realidades? Diferente da ideia moderno-colonial de identidade como uma essência ou como instância pétrea, Souza, Damico e David (2020) propõe um pólo revolucionário para os processos de representação e identificação que se aproximam de uma política identitária da produção de um comum, reivindicando mudanças mais radicais nas relações subjetivas, econômicas e políticas. Esse movimento rompe com a desumanização colonial em direção a um novo humanismo (Souza, Damico & David, 2020; Fanon, 2020).

 

Sobre o suposto complexo de inferioridade des negres acadêmicos.

Jafari: Não é fácil estar aqui [...].Constantemente eu acho que tem até uma questão de autoestima assim, por exemplo, eu constantemente me sinto uma pessoa muito burra, eu não consigo, eu não sei, como se eu tivesse muito para trás, sabe. Mas é um curso que pede muito e às vezes eu sinto como se eu não fosse suficiente. (Transcrição das Oficinas)

              Uma outra característica do Epistemicídio apontada por Carneiro (2023) diz respeito a um processo de inferiorização intelectual do negro. Para a autora essa inferioridade é uma produção tácita e complexa manifestada, dentre outros fatores, pelas condições precárias de acesso à educação por parte da população não-branca. Junto a isso, o imaginário racista da branquitude fixa negres/pretes nessa imagem de “burro”, como acentua Jafari durante uma de nossas oficinas.

              Fanon (2020), se dedica a desmantelar o argumento racista de que existiria uma espécie de predisposição à subalternização entre os povos colonizados. O argumento do martinicano vai em direção a ideia de que, de forma análoga ao complexo de dependência/inferioridade de negre, existe um complexo de superioridade no branco. “A inferiorização é o correlato nativo da superiorização europeia. Tenhamos coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado” (p.107, grifo do autor). Portanto, não existe um fundamento biológico, social, histórico, ou mesmo subjetivo que justifique um destino inato e inferior ao negre, mas sim uma dialogicidade que constitui lugares e experiências desiguais entre colonizador e colonizado. Se há uma patologia de negre, também há uma patologia do branco. Essa relação também fica notória na fala de Dolapo, onde expressa as dificuldades afetivas de manter uma relação com outros estudantes brancos que não seja mediada pelas barreiras simbólicas das comparações e inferiorizações:

Dolapo: [...] outro aspecto é a relação afetuosa, porque aqui dentro [nas oficinas] a gente tá fazendo um afeto extremamente potente, mas quando a gente tá conversando com pessoas brancas, a gente não se sente assim, a gente tá na sala de aula, a gente não sente assim. Isso diz muito né? A gente tá nos nossos nos Laboratórios, a gente se sente insuficiente, para trás, inferior. (Transcrição das Oficinas)

“O que parece é que sempre tem alguém falando por você e nunca você falando por si mesmo, sobre você mesmo.”

A raça é uma ficção, uma fantasmagoria colonial e ocidental que serve como base fundamental para a hierarquização dos corpos e das vidas. Por uma série de mecanismos lógicos, ontológicos, políticos e epistemológicos, a modernidade colonial cria para si, com o intuito de se estabelecer como sujeito, a ideia de um outro racialmente diferente. Por meio de uma miríade de projeções, o mundo europeu e branco impõe aos sujeitos, populações e territórios africanos e latinoamericanos tudo aquilo que rejeitam em si mesmos: animalidade, erotismo, mitologia, agressividade, misticismo, selvageria, incivilidade, desrazão, maldade, preguiça, ou seja, a pura negatividade (Mbembe, 2018). Do outro lado da moeda, sendo sustentado por uma positividade, temos o sujeito branco: civilizado, humano, racional, científico, cordial, lógico, bondoso, ativo. Sendo assim, como anuncia o título da tese de Sueli Carneiro (2023), o Outro é construído como um não-ser, para assim fundamentar o Ser.

Portanto, podemos entender a raça como a operadora lógica e ontológica de objetificação de negre. O objeto não fala, não age, não produz conhecimento, apenas serve como instrumento ao sujeito. Fanon narra poeticamente esse enclausuramento: “Vim ao mundo preocupado em suscitar um sentido nas coisas, minha alma cheia de desejos de estar na origem do mundo, e eis que me descubro objeto em meio a outros objetos.” (2020, p. 125). Diante da irracionalidade que é a racialização e objetificação, qualquer possibilidade de se reconhecer enquanto sujeito é aniquilada e substituída por uma imposição de significados externos.

A fixação/objetificação retira a voz do Sujeito colonizado e o impede de falar por si próprio, o impede inclusive de criar uma narrativa sobre sua experiência, porque a gramática do mundo também lhe é tomada. A fala que intitula esta seção do texto foi dita por Jafari em um dos nossos encontros nas oficinas.

O campo científico é infestado de “problemas da população negra”, todos eles criados pelos colonizadores partindo muito mais de uma série de projeções do que a realidade opressora vivida por essa população (Ramos, 1995). A essa essencialização e fixação produzida pela teoria social brasileira e que se expande para outras áreas do conhecimento como a própria psicologia, Guerreiro Ramos, sociólogo e político negro brasileiro, chamou de negro-tema, em contraposição ao negro-vida, categoria que representaria a real experiência social de negre (Ramos, 1995; Weber & Medeiros, 2020).

Essa repartição epistemológica e ontológica da realidade entre sujeito e objeto têm fortes efeitos na produção de conhecimento em psicologia. Temos sido constantemente colocados em um lugar de “objetividade esmagadora” (Fanon, 2020, p. 125) e exotismo, sempre à disposição dos investimentos extrativistas da produção científica branca. Durante as oficinas isso é colocado de forma muito explícita pelas pessoas participantes. Existe uma recusa ao não-lugar e à objetificação que se expressa pelo desejo de falar por conta própria, contar a própria história e pensar seus próprios problemas.

A opção teórica pela crítica à colonialidade, ao epistemicídio e a branquitude, nos permite uma redistribuição da fala, da escuta e do olhar, colocando em análise os supostos sujeitos: o universal, o colonizador, o cientista e o branco. Se faz necessário, portanto, experimentarmos um duplo movimento: nomear a branquitude, mancando-a como um processo racial; e visibilizar as experiências negras diante das opressões e precarizações da vida. Ao mesmo tempo racializar o branco, transformando-o em branco-tema e retirando-o de seu conforto ontológico (Cardoso, 2014; Mombaça, 2021), e desobjetificar e negre, possibilitando uma fala por si mesmo que expoem e desestabiliza as hierarquias moderno-coloniais.

 

Sentidos Da De(S)Colonização Na/Da Formação

Por seu caráter múltiplo, os sentidos em torno dos movimentos de(s)coloniais permanecem sem uma concepção fechada, admitindo então, a metamorfose e pluralidade de definições. Uma concepção popular acerca da de(s)colonização diz respeito a sua relação direta ou até a sua redução às dinâmicas étnico raciais. Quando a pergunta “Descolonizar é só sobre raça?” foi colocada na segunda oficina, as pessoas participantes respondem em consenso que não, afirmando que o movimento abrange muito mais questões, como as questões de gênero, política, economia, dentre outras. Porém, quando levamos em conta que as situações de desumanização e opressão criadas pelo sistema moderno-colonial recaem de forma mais específica e perversa sobre corpos racializados, acaba que a categoria raça toma relevo nas discussões.

Adelowo: [...] decolonialidade ultrapassar essa barreira do racial. [...] Interessante pensar também nessa mudança de perspectiva. [...] Eu vejo essa decolonialidade muito presente para além das questões raciais, mas muito voltada para essas pessoas, povos e culturas que constantemente são invisibilizadas e colocadas de lado ou assassinados ou povos indígenas que somem do nada. (Transcrição das Oficinas)

              Maldonado-Torres (2020), em suas dez teses sobre colonialidade e decolonialidade, propõe que a Modernidade/Colonialidade é uma catástrofe metafísica que envolveria pelo menos 3 eixos: Ser, pelo controle do tempo e espaço; Saber, pelo controle do objeto e método; e por fim, Poder, pelo controle da estrutura e cultura. O sujeito e a subjetividade, seriam comuns ao 3 eixos de dominação. Deste modo, a de(s)colonização agirá simultaneamente nestes 3 aspectos. O autor também afirma que esse trabalho exige que o condenado/colonizado se torne agente da mudança social, agindo ao mesmo tempo como ativista, pensador e criador. Essa ação coordenada aparece na fala de Núbia, quando ela destaca dois sentidos para o movimento, um subjetivo e um objetivo:

Núbia: [...] o sentido subjetivo que eu atribuo a esse movimento de descolonização é no processo de identificação. Eu me vejo nessas teorias, porque eu vejo que essas teorias e essas práticas estão falando e tratando de lugares dos quais eu sou atravessada. Quando eu vejo autores e autoras falando da América Latina eu me vejo ali. [...] O sentido objetivo que eu trago é um sentido de transformação, de mudança de paradigma. [...] Eu entendo a decolonialidade com um sentido transformador. (Transcrição das Oficinas)

Monifa destaca o sentido epistemológico da de(s)colonização, dando enfoque as possibilidade de pluriversalidade:

Monifa: Eu fico pensando na palavra lógica. A decolonialidade para mim parece uma certa lógica que desestabiliza o sistema colonial, desestabiliza essa lógica de sujeito universal e de não-sujeito, esses vários sistemas de universalismo e compõem essa rede que a gente vê todo dia na política, cultura, transporte, acessibilidade… (Transcrição das Oficinas)

              Ainda segundo as teses de Maldonado-Torres (2020), temos que a decolonialidade não pode ser pensada fora de uma perspectiva coletiva, sendo sempre um exercício de criação comunitária, que se dá no encontro com o diferente. Seu significado político está na vontade ativa de comunidade ou vontade de vida que inaugura futuros e mundos possíveis (Mbembe, 2019, p. 10-11). Akin ressalta o caráter coletivo, permanente e popular da de(s)colonização em sua fala:

Akin: Acho que a decolonialidade atravessa todos nós, quem nós somos e a nossas origens, mas eu acho que é um constante exercício da gente afirmar quem a gente é, sobreviver e lutar para que os nossos sobrevivam, aqueles que compartilham da história de toda luta, de toda opressão, de toda morte, mas também de toda a vida, de toda a potência, de toda a criação e resistência, tanto no campo teórico e epistemológico, das produções científicas, quanto dos nossos modo de ser, de pensar, de agir e de se ver. (Transcrição das Oficinas)

Os sentidos de de(s)colonização trazidos até aqui implicam tensionamentos tanto para constituição da psicologia como área de conhecimento, como para a formação. Coloca-se em análise, portanto, o modelo de ciências adotado e a ideia de sujeito. Esses questionamentos permitem que possamos criar reflexões críticas em que estejam atentas às práticas de resistência e potência de criação que os saberes subalternos produzem, colocando-os em lugar de protagonismo.

Adelowo enfatiza ainda a dimensão cultural da de(s)colonização quando diz “Uma dimensão bem forte para mim é a dimensão da cultura. A cultura na colonização é extremamente tomada de assalto, ela é invadida, ela é rasgada, destruída, substituída e no movimento de descolonização eu vejo muito o contrário” (Transcrição das oficinas).

              A luta anticolonial tem um caráter fortemente estético de reinvenção e retomada da cultura, sendo assim as discussões acerca da cultura também devem fazer parte do currículo, tomando as práticas estéticas e culturais, a música, a literatura e as artes plásticas como referências para o fazer psi. Mbembe (2019) ao enfatizar o caráter estético da luta anticolonial afirma que na luta, inevitavelmente, se rompe radicalmente com as antigas práticas culturais do colonizador e é somente através disso que é possível reverter a história e produzir uma nova gramática para a vida do colonizado.

 

Gingando Entre Aquilombamentos E Ocupações

A partir das oficinas, conseguimos mapear pelo menos 3 estratégias de enfrentamento e permanência: Aquilombamentos, para falar dos espaços coletivos que criamos; Ocupações, para dizer sobre os tensionamentos que provocamos nos lugares que nos vinculamos; e Torção de Referências, para pensar quais alianças teóricas temos estabelecido para a efetivação de uma de(s)colonização.

Uma forma de enfrentamento a essa dinâmica de exclusão que marca a vivência da universidade e do curso de psicologia por pessoas racializadas, periferizadas, dissidentes e desobedientes de gênero e sexualidade e com deficiência, tem sido a criação de espaços coletivos de discussão teórica e vivencial entre pessoas negras. Aqui retomo a ideia de quilombo como potencializadora dessas criações, identificações e reposicionamentos. Desde o período escravocrata, os quilombos têm representado a fuga da realidade opressiva imposta pelo colonizador, mas também como espaço de retomada e avivamento dos laços de reconhecimento, ancestralidade e coletividade da comunidade negra (Nascimento, 2021).

No âmbito universitário, os processos de aquilombamento e ocupação de espaços ganham relevo de resistência à escassez teórica, metodológica e epistemológica. Com o aumento considerável na entrada de pessoas negras na academia, graças às políticas de ações afirmativas, esses agrupamentos têm sido cada vez mais comuns. Siqueira e Ramos (2021), destacam ainda que os aquilombamentos tem efeitos de promoção de saúde entre os estudantes negros/pretos, pois possibilitam reelaborações subjetivas, afirmações identitárias positivas e criação de redes de apoio mútuo, tendo repercussões importantes nas significações dessas trajetórias.

 Alex Ratts (2009) afirma que a universidade é o campo de batalha prioritário, do que o autor chama de Movimento Negro Contemporâneo. “A presença da população negra nas universidades fez emergir outra configuração de suas entidades organizativas, já que, ao ocupar outro território social, outras necessidades entravam em evidência.” (Costa & Reis, 2022, p. 117).

              Outro movimento importante para a efetivação de uma de(s)colonização da psicologia, passa pela tarefa de revisar nosso arsenal teórico. Essa estratégia investe na invenção de uma nova gramática para nossas vidas, passando pelo trabalho artesanal de refundar nossas bases éticas e políticas em direção à pluriversidade e coexistência de saberes. É necessário, portanto, movimentar o pensamento, tendo como base a realidade dos corpos oprimidos e subalternos, extinguindo o ciclo de silenciamentos e invisibilizações. Os participantes relatam essa composição trazendo não só referências teóricas, mas também artísticas, com destaque para a música, cinema e literatura.

Núbia: Eu penso na cultura, na arte, na música, muito nos movimentos de Rap e Hip Hop. Meu xodó é Racionais, Karol Conká, Tasha e Tracie. São pessoas que falam de coisas que me atravessam. Eu entendo elas como aliadas, eu entendo elas como proponentes. Penso até nas gringas Rihanna, Cardi B, Beyoncé, Megan Thee Stallion. (Transcrição das Oficinas)

Monifa: Quando eu escutei vocês falarem as primeiras pessoas que vieram na minha cabeça foram Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus. (Transcrição das Oficinas)

              A cultura negra passa por um processo de inferiorização perverso, sendo tida como menor ou sem conteúdo, o que também é uma das facetas do racismo, da colonialidade e da tentativa de retirar das populações subalternas o status de criadora, o que também dificulta o acesso a essas produções. Segundo Kilomba (2019), criações artísticas são formas de crítica, autorreflexão e proposições de novas maneiras de conceber tempo, espaço, subjetividade e comunidade. A decolonialidade requer uma mente crítica e sentidos reavivados para buscar conexão em um mundo marcado por separação. A criação artística decolonial visa manter corpo e mente abertos e sentidos aguçados para responder criticamente à separação ontológica, funcionando como uma extensão da prece de Fanon ao seu corpo. Além disso, a performance estética decolonial é vista como um ritual que mantém o corpo aberto, questionador e preparado para agir.

Quando se trata de referências teóricas, a maioria das que foram citadas são negras. Um fato interessante é que grande parte dos autores citados não são da área da psicologia. Aqui percebo duas faces da mesma moeda: 1) a real inviabilidade, silenciamento e apagamento que teóricos e teóricas negres sofrem dentro da área, tendo em vista sua formação história eurocêntrica, o que implica na geopolítica do conhecimento (Kilomba, 2019; Mignolo, 2020); 2) a defasagem explicativa que uma perspectiva unicamente psicologizante tem, se fazendo necessário e incontornável o diálogo com outras áreas do conhecimento.

As falas também apontam para como a universidade, por sua estrutura eurocêntrica e colonial, acaba por endurecer os itinerários de estudo, fixando-os em autores considerados hegemônicos. Sobre o assunto, Jafari diz “Quanto às leituras, eu percebi que na universidade eu estava muito cristalizado em referências brancas. [...] Então para mim tem sido um processo de descoberta e aproximação” (Transcrição das oficinas).

Assim, a atitude de(s)colonial exige o trabalho de buscar, criar e potencializar ancoragens para o surgimento do novo mundo que se descortina a partir da nossa luta e resistência. Para a psicologia, se faz necessária a tarefa de “pensar com os pés onde pisa”, como diz Miranda e Félix-Silva (2022), movimentar o pensamento a partir das sensibilidades, fissuras e fragilidades da vida, com o compromisso ético e político de potencializar a vida.

 

Considerações Finais

São inegáveis as mudanças experimentadas pela universidade brasileira desde a efetivação e ampliação das ações afirmativas e a significativa entrada de corpos e vivências negras, periferizadas, dissidentes de sexo e gênero e com deficiência. Mesmo ainda enfrentando diversos desafios e violências ligadas à permanência, a presente pesquisa, que teve como objetivo discutir as trajetórias acadêmicas de estudantes negres, focando na decolonização da formação em psicologia, aponta que tais corpos têm criado espaços potentes de resistência e aquilombamento, promovendo profundas transformações na estrutura epistêmica e política da universidade e da formação em psicologia.

Mesmo que a formação em psicologia ainda se sustente fortemente em uma estrutura branca, eurocêntrica e excludente, as existências negras que se colocam neste espaço têm operado fraturas nesse edifício colonial e criado estratégias, como as apontadas nesta pesquisa - aquilombamentos, ocupações de espaços formativos e torções de referências teóricas - para reivindicar outros lugares de enunciação para suas narrativas, operando o que aqui chamamos de de(s)colonização. A proposição de espaços coletivizados de resistência, como grupos de estudos e coletivos racializados, além de fortalecer a permanência e criar redes de apoio mútuo, reconfiguram as possibilidades de produção de conhecimento, tirando a centralidade da branquitude e inaugurando novas gramáticas para os corpos negres na universidade.

É urgente, portanto, que as estruturas curriculares e intitucionais sejam tensionadas e reformuladas apontando para um comprometimento da psicologia com uma formação antirracista e de(s)colonial. Isso envolve, tanto a ampliação e efetivação de políticas afirmativas para o ingresso e permanência de estudantes negres, como a revisão dos referenciais teóricos e epistemológicos, priorizando epistemologias africanas e afrodiaspóricas. Também se faz necessário garantir condições concretas e sustentáveis para tal permanência, efetivando radicalmente a assistência estudantil, o suporte psicossocial e as ações de enfrentamento ao racismo estrutural. Já na psicologia, o investimento em práticas formativas deve ser atravessado por experiências que dialoguem com saberes contra-hegemônicos e metodologias participativas que se proponham a superar as colonialidades do saber.

 

Referências

Ballestrin, L. (2013). América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, (11), 89–117. doi:10.1590/s0103-33522013000200004

Barros, João Paulo Pereira, da Silva, D. B., & de Araújo Gomes, C. J. (2020). Dispositivos grupais com jovens: rizomas em territorialidades periféricas. Em F. C. S. Lemos, D. Galindo, P. P. G. de Bicalho, P. de T. R. de Oliveira, L. P. R. Júnior, A. M. Sampaio, … D. C. P. de Moraes (Orgs.), Pesquisar com as psicologias: artesanias e artifícios. (p. 205–2026). Curitiba: Editora CRV.

Benicio, L. F. de S., Barros, J. P. P., Rodrigues, J. S., Silva, D. B. da, Leonardo, C. dos S., & Costa, A. F. da. (2018). Necropolítica e Pesquisa-Intervenção sobre Homicídios de Adolescentes e Jovens em Fortaleza, CE. Psicologia Ciência e Profissão, 38(spe2), 192–207. doi:10.1590/1982-3703000212908

Bento, M. A. S. (2014). Branqueamento e Branquitude no Brasil. Em I. Carone & M. A. S. Bento (Orgs.), Psicologia Social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil (p. 25–57). Petrópolis: Vozes.

Cardoso, L. (2014). O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil (Universidade Estadual Paulista). Recuperado de https://repositorio.unesp.br/items/bc4ca8dd-3d18-4b5f-90a9-4269d7821c61

Carneiro, S. (2023). Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar.

Castro-Gómez, S. (2005). La hybris del punto cero: ciencia, raza e ilustración en la Nueva Granada (1750-1816). Pontificia Universidad Javeriana.

Costa, A. F., da Silva, D. B., dos Santos Alves, I., Frota, V. B. G., & Barros, J. P. P. (2021). Decolonizando a investigação com jovens em territorialidades periferizadas: pesquisa-inter(in)venção e a produção de políticas de re-existências. Em J. P. P. Barros, J. S. Rodrigues, & L. F. de Souza Benicio (Orgs.), Violências, desigualdades e (re)existências: cartografias psicossociais. (p. 273–295). Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora.

Costa, L. K. F., & Reis, M. C. G. (2022). A emergência dos coletivos de estudantes negros(as) e o combate à escassez epistemológica. Revista de educação popular, 21(1), 111–129. doi:10.14393/rep-2022-61788

de São Paulo, P. (2019). Grada Kilomba : desobediências poéticas. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo.

Fanon, F. (2020). Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora.

Fanon, F. (2022). Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Zahar.

Grosfoguel, R. (2016). A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Sociedade e Estado, 31(1), 25–49. doi:10.1590/s0102-69922016000100003

Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó.

Lugones, M. (2014). Rumo a um feminismo descolonial. Estudos feministas, 22(3), 935–952. doi:10.1590/s0104-026x2014000300013

Maldonado-Torres, N. (2020). Analítica da colonialidade e da decolonialidade: dimensões básicas. Em J. Bernardino-Costa, N. Maldonado-Torres, & R. Grosfoguel (Orgs.), Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. (p. 27–53). Belo Horizonte: Autêntica.

Mbembe, A. (2018). Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições.

Mbembe, A. (2019). Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Petrópolis: Vozes.

Mendonça, H. (2019, novembro 13). Negros são maioria nas universidades públicas do Brasil pela primeira vez. Recuperado 18 de dezembro de 2024, de Ediciones EL PAÍS S.L website: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/13/politica/1573643039_261472.html

Mignolo, W. D. (2020). Histórias locais/Projetos globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG.

Miranda, D. W., & Félix-Silva, A. V. (2022). As Subjetividades Periféricas e os Impasses para a Descolonização da Clínica Psicológica. Psicologia Ciência e Profissão, 42(spe). doi:10.1590/1982-3703003264143

Mombaça, J. (2021). Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó.

Nascimento, B. (2021). Sistemas sociais alternativos organizados pelos negros: dos quilombos às favelas. Em A. Ratts (Org.), Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos. (p. 92–101). Rio de Janeiro: Zahar.

Ramos, A. G. (1995). Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

Ratts, A. (2009). Encruzilhadas por todo percurso: individualidade e coletividade no movimento negro de base acadêmica. Em A. M. Pereira & J. Silva (Orgs.), Movimento Negro Brasileiro: escritos sobre o sentido de demoracia e justiça social no Brasil (p. 81–108). Belo Horizonte: Nandyala Livros e Serviços Ltda.

Rocha, M. L. (2006). Psicologia e as práticas institucionais: A pesquisa-intervenção em movimento. Psico, 37, 169–174. Recuperado de https://revistaseletronicas.pucrs.br/revistapsico/article/view/1431

Santos, A. B. dos. (2023). A terra dá, a terra quer. Ubu Editora.

Souza, T. de P., Damico, J. G., & David, E. de C. (2020). Paradoxos das políticas identitárias: (des)racialização como estratégia quilombista do comum. Acta Scientiarum Human and Social Sciences, 42(3), e56465. doi:10.4025/actascihumansoc.v42i3.56465

Weber, P. A., & Martins Medeiros, P. (2021). Sobre a zona de não-ser e o negro-tema: um debate acerca da produção do conhecimento a partir de Frantz Fanon e Guerreiro Ramos. Áskesis - Revista des discentes do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, 9(1), 266–283. doi:10.46269/9120.467

Financiamento

Agradecemos à Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) pelo financiamento da pesquisa.

 

 Bonami, originário da tribo Ngoni, do sudeste africano, significa "Guerreiro" ou "Soldado forte"

 Jafari, derivado da língua suaíli, expressa a ideia de dignidade.

 Dolapo, nome de origem iorubá da Nigéria, representa a união entre bênçãos e felicidade.

 Também de raiz iorubá, Adelowo significa "A coroa tem honra" ou "A coroa tem respeito".

 Núbia, com origem no Egito, carrega o sentido de "Mulher negra, forte, original, mãe de uma nação".

 Monifa, de ascendência iorubá, traduz-se como "Eu tenho sorte".

 Akin, também de origem iorubá, remete a atributos como coragem, força e heroísmo.