Fronteiras de gênero em Guiné-Bissau: por uma Antropologia endógena e ativa Peti Mama Gomes Universidade Federal do Pará, Brasil https://orcid.org/0000-0003-3807-3187 gomespetimama@gmail.com Carla Susana Alem Abrantes Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Brasil https://orcid.org/0000-0003-3807-3187 sabrantes@gmail.com Introdução As mulheres em associações femininas na Guiné-Bissau podem ser localizadas como expressões contra-hegemônicas, que possuem uma dinâmica e uma gramática peculiares no que diz respeito aos modos de conceber e expressar identidades femininas africanas. Afinal, uma vida que supõe a produção compartilhada de objetos, de saberes e de comida Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 54, n. 2, jul./out. 2023, p. 297-344. DOI: 10.36517/rcs.54.2.a05 ISSN: 2318-4620
P. M. Gomes e C. S. A. Abrantes 167 nas plantações, na família, nos encontros e nas demais redes de sociabilidade e convivência dentro e fora das associações não se conforma às expectativas do sistema-mundo pautado por valores e ética capitalistas. Em um cenário de produção de conhecimento que localizamos dentro de um viés eurocêntrico, nem sempre se chega a uma compreensão do que a realidade das mulheres africanas significa para quem as vive. Este artigo parte desse pressuposto para apresentar um escopo mais abrangente das questões de gênero buscando estabelecer fronteiras possíveis de entendimento e permitindo uma reflexão que ultrapasse padrões históricos de construção acadêmica. Trata-se, portanto, de uma análise que coloca em movimento e busca o reconhecimento de terminadas categorias, relações, experiências do feminino em África, o que enquadramos como inserida na dimensão de um “ativismo”. O saber antropológico nos serve de alicerce e arcabouço teórico-metodológico para vislumbrar processos de vida social cotidianos sem o risco de categorias explicativas que reduzam certas experiências aos modelos esperados de agências externas àquela realidade. A proposta é reunir um conjunto de referências teóricas não hegemônicas e localizadas em esferas de conhecimento que, por vezes, são silenciadas ou não nomeadas nos espaços legítimos e reconhecidos como centros de reflexão científica sobre a sociedade. Neste artigo, autoras e autores com produção localizada no continente africano serão apresentados para um diálogo com as questões de gênero para um enquadramento mais amplo. Embora o estudo parta de uma pesquisa e descrição etnográfica, serão priorizados aspectos teóricos dos resultados alcançados, sem uma preocupação quanto a uma descrição densa. As análises aqui apresentadas foram resultado do encontro etnográfico com as mulheres no norte de Guiné-Bissau,
Fronteiras de gênero em Guiné-Bissau… produto final das trocas efetivas em campo, trazendo assim, subjetividades diferenciadas entre a visão das pesquisadoras e o pensamento das mulheres interlocutoras deste trabalho. Além disso, este artigo incorpora a experiência de pesquisa organizada dentro dos quadros de formação pós-graduada em um curso recentemente criado no escopo da cooperação acadêmica Sul-Sul ligado às políticas de internacionalização do ensino e da pesquisa em uma aproximação com o continente africano 40 . Enquadra-se, assim, dentro do processo contínuo da reflexão sobre a Nação, como propôs Peirano (2014) onde uma necessidade do autoexame intelectual que comporte propostas teóricas e metodológicas em uma linguagem de comunicação e de troca e cooperação entre as nações. Neste processo formativo que abrange um grande espaço para os aspectos empíricos e etnográficos, por vezes, as questões tradicionais da Antropologia ganham novos modos de serem abordadas e abrem possibilidades para o navegar nas franjas de um conhecimento dialógico e criativo. Assim, ao longo de 3 meses de pesquisa de campo realizada no ano de 2018, uma das autoras acompanhou os afazeres cotidianos de mulheres nas associações Bontche e Babock , sobretudo as suas formas de organização e pertencimentos locais que nos levaram a refletir sobre as condições de possibilidades para a pesquisa antropológica em um cenário do século XXI, marcado pelo trânsito de indivíduos entre fronteiras comunitárias, étnicas e nacionais. Dividimos o artigo em três tópicos: 1) gênero em diferentes perspectivas teóricas; 2) contextos locais de experiência feminina em Guiné-Bissau; 3) agências e os caminhos para o conhecimento plural. Assim, na primeira parte serão mostradas as fronteiras de gênero nas suas diferentes perspectivas 40 Programa Associado de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) PPGA-UFC/UNILAB. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
P. M. Gomes e C. S. A. Abrantes 169 teóricas, a partir da pluralidade de pertencimentos identitários. Em seguida, as mulheres guineenses em associações no contexto de associativismo permitem mostrar a centralidade do tema para a Nação. Por último, discute-se a agência possível no âmbito intelectual, em espaços de fala, de reflexão, de teorização, que constituem também uma parte do ativismo africano e guineense. Categorias de gênero em diferentes perspectivas teóricas As diferentes visões sobre as mulheres no contexto acadêmico africano e guineense, em particular, norteiam um entendimento sobre “outras” formas de se estar no mundo, de ser mulher, de pensar a pluralidade de pertencimentos identitários. Assume-se a possibilidade de que, em algumas sociedades, a ideia de gênero não necessariamente se constituiu (ou se constitui ainda hoje) como elemento estruturante da sociedade. Entendendo que o problema do gênero se coloca como relevante para uma reflexão sobre subordinação e opressão das mulheres desde meados do século XX, Oyèrónk Oyěwùmí (2014) mostra que essa posição é tomada como universal, lembrando-nos que tanto a categoria “mulher” como a ideia de “subordinação” podem ganhar outra perspectiva se tomadas a partir de geografias e processos históricos “outros”. A categoria “mulher” tomada como um fenômeno universal passa a ser questionada também por Butler (2008), quando a autora sinaliza para o fato de que, mesmo quando se apresentam “mulheres” no plural, não deixam de ser pensadas como uma unidade, uma essência, uma
Fronteiras de gênero em Guiné-Bissau… descrição singular, “mulher”. Do mesmo modo, o feminismo que procurou consolidar a luta de todas as mulheres diante dos homens, também confirmou um status universal ao patriarcado, tornando esse fenômeno supostamente universal como aquele produtor de uma estrutura fictícia e que pode não ser sustentável dentro de realidades “outras”, particulares, em que se apresentam as variações de cada cultura e/ou sociedade. Essa construção, como sugeriu Scott (1990), pode ter sido parte dos processos de racionalização de pesquisadores que conceituaram as questões de gênero dentro de um percurso histórico. Assim, ao serem revelados os limites de tais análises, encontramos a sua localização como parte de construções sociais historicamente localizadas, ou seja, enquadradas como “gênero” e “experiência feminina”, construções teóricas que acabam por ser também fenômenos culturais. Assim, Oyěwùmí (2014) e outras estudiosas têm insistido nos limites da ideia de universalidade para a categoria analítica “gênero”, mostrando de que maneira o conceito remonta a particularidades de processos políticos de mulheres anglófonas/americanas e brancas, especialmente nos Estados Unidos. Na verdade, um estudo sério das questões femininas e de gênero, no continente africano, em particular, não pode levar em conta o papel que historicamente desempenharam as feministas ocidentais e nem tampouco ignorar as teorias por elas produzidas. Portanto, de se observar a necessidade de um reposicionamento, como aponta Gomes: Uma análise equilibrada e situada dos contextos africanos requer, todavia, um reposicionamento dos estudiosos das questões de gênero, em África, no sentido de um questionamento da identidade social dessas mulheres, dos seus interesses e das suas preocupações. É importante conhecer a história dos dominadores e dos detentores do poder nos países africanos, mas é igualmente fundamental que essas histórias sejam narradas a Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
P. M. Gomes e C. S. A. Abrantes 171 partir do olhar de quem viveu as experiências sob a condição de dominado e de subordinado. No caso da Guiné-Bissau, as “outras vozes” que aqui procurei trazer representam os sucessos e os limites de um processo de libertação que viu como protagonistas as populações guineenses, e, em particular, as mulheres (GOMES, 2016, p. 21). Deste modo, em uníssono com Gomes (2016), esta pesquisa se propôs a trazer “outras vozes” de mulheres localizadas no interior de Canchungo e Bissau, em Guiné-Bissau, na África Ocidental. As experiências e dados etnográficos com essas mulheres revela que a realidade da mulher europeia é completamente diferente da mulher africana e guineense, sendo que esta também é bastante diversa e difícil de ser generalizada. É com Butler que podemos afirmar que, não é por acaso que “generalizar e expandir essas análises a todas as mulheres é um erro, posto que a identidade feminina muda de acordo com a realidade na qual se vive” (BUTLER, 2014, p. 184). Ao recuperar o diálogo das autoras acima apresentadas, explicita-se que a categoria gênero não pode ser vista da mesma forma em tempos e espaços diferentes, ou em sociedades que apresentem características sociais históricas diversas. Portanto, é necessário analisar as várias dinâmicas e atores locais (agregados, grupos, organizações etc.) que tomaram e tomam parte no processo de construção das identidades de gênero. Sendo assim, é inevitável voltar, mais uma vez, a Oyéwùmí (1997), no sentido de sua crítica manifestada quando traz a noção de que não se pode tomar a questão histórica como algo dado. Isto é, é essencial problematizar este lugar histórico de produção de conhecimento, o que abre para novas possibilidades reflexivas e discursivas, o que aqui propomos chamar de “ativas”. Por exemplo, na sociedade Iorubá (Nigéria), que foi o campo de análise de Oyéwùmí, os homens e as mulheres não
Fronteiras de gênero em Guiné-Bissau… se classificam segundo distinções biológicas. Até porque nos trabalhos no campo (agricultura e pesca) não mulheres na definição de gênero expresso nas condições da divisão de trabalho. A própria tradução de ser mulher e ser homem, segundo Adesina (2012 apud OYÉWÙMÍ, 1997) na linguagem Iorubá não é genderizada. As “categorias como ´masculino´ e ´feminino´ são de difícil tradução linguística uma vez que muito pouco sobre a associação de tais categorias socialmente construídas com a masculinidade ou feminilidade anatómicas” (ADESINA apud OYÉWÙMÍ, 1997, p. 33). Em vista disso e, partindo do princípio de que outras formas de ser masculino e de ser feminino em diferentes sociedades, as fronteiras do gênero se dão através de outros aspectos, tais como a idade ou a divisão do trabalho. Em síntese, Oyéwùmí apresenta que nessa sociedade africana, nigeriana, a percepção sobre a forma corporal não é a base da hierarquia social: os homens e mulheres não se classificam segundo distinções anatômicas. Reconhecer o processo dominante de classificação de gênero nas construções teóricas e localizar as limitações de determinadas análises, nos leva, como propôs Butler (2008), a mudanças que se estabelecem na política feminista, por passarem a revelar a diversidade de experiências e o modo variável com que a construção de identidades de gênero se dá. Assim, estamos tratando de um ponto de mudança e rompimento com a universalidade que se revela problemática, não somente no cotidiano da experiência humana, mas, principalmente, nas discussões acadêmicas que muitas vezes orientam e criam novos paradigmas sociais, culturais e existenciais. A partir desta reflexão geral quanto às questões de identidade de gênero que são construídas como universais e ao relacioná-las à sua condição de representações sociais historicamente situadas, abrimos espaço para reconhecer “outras” construções da categoria “mulher”, “africana” e Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
P. M. Gomes e C. S. A. Abrantes 173 “guineense” e como estas se enquadram em uma perspectiva diferente em termos de consciência e comportamento. Experiências femininas em Guiné-Bissau A partir destes “outros” vieses teóricos, podemos agora refletir sobre as fronteiras da experiência estabelecidas no âmbito das discussões de gênero. O destaque desta seção vai para as visões de mulheres africanas, guineenses, inseridas em associações locais escolhidas como base empírica para esta pesquisa. São duas associações: uma está localizada na zona urbana, no bairro de São Paulo da capital Bissau e se caracteriza como uma cooperativa de mulheres produtoras de roupas, denominada de Bontche, e a outra no contexto rural da região de Cacheu, setor de Canchungo, denomina-se Babock e representa um coletivo de lideranças femininas que trabalham na agricultura e que surgiu nos anos “mil novecentos e noventa com trinta membros mantendo estas relações de amizade” e trabalho (GOMES, 2019, p. 98) 41 . Para além dos dados coletados no diálogo com essas associações, soma-se a esta análise considerações sobre a própria experiência pessoal de uma das autoras. Sendo esse um contexto social onde a diferença se contrapõe à experiência europeia ou “ocidental”, as mulheres africanas são muitas vezes definidas a partir de um determinado discurso dominante que as pautam por bases “culturais” e de um modo generalizante. A ideia do “outro” que aqui buscamos uma suspensão do sentido, colocando-o 41 Bontche é uma palavra de língua Balanta, o maior grupo étnico da Guiné-Bissau, e significa ¨bonito¨. Babock significa a junção de várias aldeias que falam a mesma língua étnica.
Fronteiras de gênero em Guiné-Bissau… entre aspas reforça sempre uma distância que se estabelece entre dois modos de pertencimento. Assim, procurar as fronteiras do que é universal também nos remete a revolver os sentidos do que é muitas vezes considerado como “cultural” ou “diferente”, marcadores dos modos com que o pensamento social se constitui em sua trajetória epistêmica (WOLF, 2005). Catarina Martins (2016) traz uma reflexão de um olhar do Norte Ocidental enquanto lócus privilegiado para estas análises culturais, como encontramos na citação abaixo: o olhar do Norte incide não sobre mulheres com as suas experiências diversificadas em contextos muito heterogéneos e singulares, mas primordialmente como uma visão das “Mulheres dos Outros”, ou seja, mulheres aprisionadas pela cultura a que pertencem e que se impõe sobre elas de um modo invariavelmente mais determinante e coercivo do que acontece no Norte, através da opressão masculina entendida como marca própria dessa cultura (...). Pelo contrário, as “mulheres dos Outros” são necessariamente apresentadas como vítimas dos respetivos homens o que torna a ação redentora do Ocidente num imperativo ético. A invisibilização de que as “mulheres dos Outros” são vítimas, mesmo no olhar bem-intencionado e solidário de muitas mulheres do Norte, resulta de, no seu lugar, está uma representação profundamente sumária: ficções como a “Mulher Asiática”, a “Mulher Latino-Americana”, a “Mulher Muçulmana”, a “Mulher Africana”, sobrepõem-se e amputam as mulheres reais pela redução a uma espécie de máximo denominador comum metonímico que facilita a sua identificação no Ocidente (MARTINS, 2016, p. 253). O “olhar bem-intencionado e solidário de muitas mulheres do Norte”, para o qual Martins chama atenção no seu texto, resulta de um lócus social, cultural e político que não representa as mulheres que, em sua maioria, vivem no Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
P. M. Gomes e C. S. A. Abrantes 175 continente africano ou mesmo, de forma particular, as mulheres guineenses em associações que configuram-se como objeto desta pesquisa. Em geral, a autora traz exemplos de mutilação genital feminina na África; uso de burka ou o véu islâmico para as mulheres muçulmanas ou aquelas que consentem um casamento poligâmico. Cabe ir mais fundo neste trabalho, como se procurou realizar junto às mulheres em associação na Guiné-Bissau, compreendendo as relações comunitárias, de parentesco e de trocas de sobrevivência que ampliam o entendimento das escolhas que se apresentam às mulheres sem uma imposição de categorias importadas ou até mesmo o isolamento de uma condição feminina das relações que sustentam a sua existência e significado. Nas duas associações de mulheres em Guiné-Bissau, constatamos que as mulheres ainda têm um controle maior dos meios de produção, em sua base agrícola e comercial. Em outras palavras, o armazenamento de economia doméstica e social é garantido pelas mulheres. Nesse contexto, ao aprofundarmos o olhar para as redes de relações e trocas estabelecidas entre diferentes ¨atrizes¨ envolvidas, encontramos a necessidade de pluralizar as visões sobre essa experiência feminina. Para além das funções econômicas, as relações de parentesco também estabelecem pontes de acesso a esse lugar do feminino em determinados cenários. Na pesquisa sobre mulheres em associação, foram encontradas experiências de famílias poligâmicas que organizam a convivência e as relações cotidianas. O casamento de cumbossa 42 , termo em crioulo Guiné-Bissau que distingue as mulheres que compartilham um mesmo homem dentro de um casamento poligâmico reformula e cria modos de se estar em família e em comunidade próprios, remetidos a padrões de pertencimento locais. 42 Cumbossa literalmente significa rival amorosa ou Coesposa.
Fronteiras de gênero em Guiné-Bissau… Estes elos e os significados de gênero atribuídos nesse contexto são relevantes para as distinções que procuramos estabelecer. O “casamento formal”, em que ocorre uma cerimônia religiosa ou civil entre um homem e uma mulher, “raramente” acontece no interior nas tabancas de Canchungo na Guiné-Bissau 43 . Ali, um homem vive com duas ou mais mulheres ao longo da maior parte da sua vida (muito embora haja alguns que optem por se casar com apenas uma mulher, o que é uma minoria das experiências nessa localidade). O casamento de um homem com mais de uma mulher é conhecido como “casamento tradicional”. Ao partirmos da perspectiva de uma família guineense, encontramos um homem que se casou com duas mulheres: uma de nome Blandim Mendes e outra Aissatu Mendes, ambas designadas pelo termo cumbossas . A ordem de chegada das mulheres à família e à “relação é muito importante” porque, na verdade, um arranjo social que também dita regras hierárquicas e imprime formas e funções nas relações estabelecidas entre essas pessoas. A segunda mulher, assim, deve respeitar sempre a posição da sua Cumbossa (primeira esposa) no caso de uma decisão que deve ser tomada na esfera privada. Ao estabelecer uma “reflexão ativa”, entramos em contato com uma família composta por um pai que se casou com duas mulheres que coabitam a mesma casa e compartilham quase “tudo”. Doris Wieser (2018, p. 336) coloca que a “poligamia é uma forma de organização familiar amplamente difundida no continente africano mas não em África embora não seja aceito pela lei dos Estados modernamente constituídos em suas legislações e tipificações sociais por ele regulamentadas”. Atualmente, em muitos dos Estados africanos modernos, cuja população é islâmica na sua maioria, a poligamia é legal, segundo Wieser (2018). Também, como sugere Borges, o 43 Tabanca está associada a uma determinada região ou setor, formada por diferentes famílias que compartilham espaços de sociabilidade e se entreajudam cotidianamente. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
P. M. Gomes e C. S. A. Abrantes 177 casamento islâmico na Guiné-Bissau é contratual e, “considerando que os contratos são negociáveis” (BORGES, 2009, p. 28), pode ser utilizado dentro de subterfúgios contratuais a partir de ambiguidades na lei. Entretanto, nem sempre a possibilidade de escolha da própria mulher em aceitar o casamento cumbossa, por se tratar de um casamento tradicional que se negocia entre famílias. Ou seja, nem todas as escolhas permitem que a mulher determine as cláusulas do contrato, pois a decisão acaba ficando a cargo do status de sua família. Certas famílias guineenses comungam desse modelo de casamento aceito, reconhecido e valorizado, muito embora a Guiné-Bissau tenha recebido como herança da colonização portuguesa as influências da religião católica (14% da população) que define que homens não podem se casar com mais de uma mulher. Assim como a família referenciada anteriormente, muitas outras na Guiné-Bissau têm ascendência da religião tradicional de suas comunidades, não sendo nem católicas, nem muçulmanas. Portanto, o modelo de casamento não se enquadra no religioso ou no civil, mas sim, em um viés socialmente localizado: casamentos negociados entre os grupos familiares de onde se originaram. A poligamia apresenta traços importantes da vida social em Guiné Bissau, pois todo um contexto social, econômico e político que lhe sustenta e de onde extrai sua significação social, de modo que algumas mulheres não consideram a questão como um “problema” (haja vista a ressalva de que isso também depende de cada caso específico). Desta maneira, é possível traçar um diálogo sobre a poligamia em Guiné Bissau com a obra da romancista senegalesa Ken Bugul, que explicita e argumenta favoravelmente sobre a possibilidade de que um homem possa
Fronteiras de gênero em Guiné-Bissau… se casar com duas ou três mulheres 44 . Em seu romance autobiográfico The Abandoned Baobab: The Autobiography of a Senegalese Woman (1991) está expresso que o sentimento de integração ao coletivo é um processo importante de paz interior e realização pessoal e isso acontece quando se busca o quadro de referência das origens (familiares, comunitárias) de uma pessoa (BUGUL, 1991, p. 60). Ou seja: Bugul parece defender que, como a união poligâmica pode ser, para uma determinada mulher, uma opção consciente por um caminho de realização pessoal, dependendo de posições identitárias marcadas por interseções diversas. Não se trata, como é evidente, de uma vitória sobre a sociedade patriarcal, mas da criação de um lugar de liberdade e poder para a mulher nos interstícios do poder masculino, que acaba por conduzir a alterações nas estruturas deste último (MARTINS, 2016, p. 68) Desta forma, é importante procurar pelo contexto completo em que as mulheres estão inseridas, desde suas subjetividades até à complexidade da sociedade mais ampla e como concebem o bem-viver como espaços de liberdade e poder. As particularidades das experiências femininas colocadas em comparação transcultural nos possibilitam olhares e horizontes sobre a realidade de muitas mulheres que vivem um casamento no continente africano evitando julgamentos e exclusões ao que é moralmente aceito em certos meios sociais. 44 Ken Bugul é uma mulher de 30 anos que, com uma educação ocidental de nível superior e após ter conhecido vários países europeus e vivido relações diversas com homens desses países, regressa à aldeia natal no Senegal, para se tornar a vigésima oitava (28ª) esposa de um chefe religioso islâmico com mais de 70 anos. Esta mulher denuncia a representação colonial do africano como ser selvagem e brutal. Sublinhamos que Ken Bugul insere o seu trabalho ao ativismo pelos direitos das mulheres, que inclui desde a luta contra a ablação genital até o planejamento familiar (DIAW, 2018, p.37). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
P. M. Gomes e C. S. A. Abrantes 179 Uma possibilidade de aprofundamento teórico seria pautar as diferenças e as escolhas pessoais como algo enriquecedor, inserindo-as em relações estabelecidas socialmente em determinados contextos geopolíticos. Luciene Santos nos fornece exemplos de experiências variáveis de mulheres, independentemente de classe, raça, etnia, região e do espaço: a experiência das mulheres pode variar [...] a necessidade de uma análise e de um olhar situados para um entendimento menos redutor da vida das mulheres num dado contexto. Esta perspectiva permite identificar as relações de força subjacentes aos papéis de género numa dada comunidade/grupo social e diferenciá-las de outras relações de subordinação configuradas a partir de um imaginário moderno-colonial [...] (SANTOS, 2017, p. 169). A centralidade dos estudos que trazem esta perspectiva da construção de gênero permite relativizar a homogeneidade simbolicamente arraigada na concepção ocidental, pois, uma vez que existem diversas maneiras de ser mulher, podemos valorizar suas experiências únicas, as suas lutas, as necessidades e desejos, como foi colocado acima. Além de uma trilha marcada pela subjetividade e trajetórias individuais, reconhecemos a relevância das propostas de Santos sobre como pensar diferentes maneiras de ser mulher nas esferas pública e privada. 45 Se tomarmos os casos das associações de mulheres em Guiné-Bissau, encontramos múltiplas estratégias adaptativas recorrentes no cotidiano, como a agricultura, a costura e o comércio. Esses trabalhos geralmente começam com pequenos 45 Sobre este tensionamento entre âmbitos e espaços de vida da mulher, ainda que no contexto brasileiro, dividido nesta perspectiva dicotômica de esfera pública e esfera privada, ver também Venturini, Recamán, Oliveira (2004).
Fronteiras de gênero em Guiné-Bissau… grupos na esfera doméstica, onde se planta produtos alimentícios considerados básicos para uma alimentação diária nas suas comunidades (tais como, hortaliças de legumes e verduras, arroz, milho, feijão, amendoim etc.). Os resultados dos trabalhos destas mulheres às vezes chegam às mesas de outras famílias, vizinhos, e no geral, até à esfera pública, marcada pela mediação de organizações não governamentais (ONGs). A partir das atividades desenvolvidas por elas, uma conquista de um reconhecimento em suas famílias, na comunidade, no setor 46 ou bairro. Em um cenário macro, as mulheres estão em maior número quando se pensa nos trabalhadores guineenses de um modo geral, sendo responsáveis pelo sustento de muitas pessoas ou famílias, ou pelo “armazenamento de economia local”, segundo o Relatório do FMI n.º 17/381 47 . O trabalho feito pelas mulheres é, assim, também percebido como uma contribuição para a luta contra a pobreza tanto nas suas comunidades, nos setores , como nos bairros. É desta maneira que as mulheres obtêm o reconhecimento por parte da maioria da comunidade, em sua região, além da importância das suas produções, comércios e organizações que colaboram muito para sua consequente emancipação socioeconômica, como sugere Cátia Lopes (2013). Vale ainda salientar que o peso da participação delas tem aumentado no desenvolvimento e na mudança de paradigmas sociais e mentalidades, dada à centralidade de suas posições e ações diárias nos grupos. Lopes (2013) coloca, em um de seus estudos efetuados a respeito da inserção de mulheres no microcrédito, que as mulheres exercerem duas funções simultâneas importantes no país 1) executoras de atividades econômicas, tais como a agricultura ou a pesca e 2) agentes de educação e da 47 Fundo Monetário Internacional de Guiné-Bissau, D.C. Novembro de 2017. 46 Setor é uma subdivisão política em Guiné-Bissau. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
P. M. Gomes e C. S. A. Abrantes 181 economia. Assim, elas continuam ocupando cada vez mais espaços sociais e econômicos, principalmente por estarem trabalhando em associações. A forte presença das mulheres em Guiné-Bissau, como trabalhadoras e responsáveis pelo sustento de muitas pessoas e de muitas famílias na atualidade, é considerada um valioso contributo para enfrentar as desigualdades existentes no mercado de trabalho, desigualdades estas que têm sido demonstradas por vários estudos e pesquisas recentes no país (SEMEDO, 2010). Nas esferas do Governo, promove-se recentemente pelo Departamento de Assuntos Políticos (DAP), a igualdade entre homens e mulheres em Guiné-Bissau, onde se procurou em 2018 garantir uma maior participação feminina nos espaços de poder com propostas de uma divisão mais igualitária entre gêneros (50/50) a serem colocadas em prática até 2030. Existem hoje várias iniciativas para recordar o percurso das mulheres guineenses, as suas dificuldades e as conquistas ao longo das décadas na luta pelos direitos e pela igualdade de oportunidades no país. As narrativas que fortalecem a participação e agência feminina na economia bem como conduzidas em setores do governo levaram à aprovação de uma lei de quota que obriga participação ativa de 36% das mulheres nos lugares de tomada de decisão do Estado nacional, isto é, nos partidos políticos e no parlamento 48 . Estas transformações recentes no contexto mais amplo dos processos de formação de Estado (ELIAS, 2002) têm efeitos sobre as atividades das mulheres em associação, das tabancas e das cidades, por representarem uma conquista das políticas públicas que operam visando a inclusão das mulheres guineenses nos setores públicos. A escuta e possibilidade de 48 UNIOGBIS, Departamento de Assuntos Políticos. Disponivem em: https://uniogbis.unmissions.org/na-guin%C3%A9-bissau-mulheres-%C3% A9-que-garantem-o-sustento-da-fam%C3%ADlia . Acesso em maio de 2018.
Fronteiras de gênero em Guiné-Bissau… perceber como essas mulheres se localizam no diálogo com o Estado é também um outro aspecto das condições da experiência feminina africana, guineense, como vemos na fala da rainha 49 Tina da associação Mandjuandadi de Babock, localizada em Reno, que afirma: estamos aqui nas nossas tabancas fazendo o que realmente gostamos de fazer em grupos que gera um sustento de muitas famílias contribuindo direta e indiretamente para o desenvolvimento de comunidades, bairro, regiões e consequentemente o país” [...] precisamos de um diálogo daqui para Bissau, nas instâncias como do Estado [...] tudo que a gente faz [fez] é pensando no bem daqui e não (...) tendo a nossa representação daqui que leva nossa mensagem por exemplo: pensar nas políticas públicas virada para agricultura familiar, de comércio exterior” (...) devemos ter apoio por parte de Estado (notas de caderno de campo, rainha Tina Gomes, Canchungo- Guiné-Bissau, setembro de 2018). As contribuições das mulheres não se limitam apenas a suas tabancas ou bairros, mas algumas questões de maior interesse levantadas pela rainha em relação ao Estado. a expectativa de que seus nomes sejam incluídos e identificados nos produtos que concedem para venda aos estabelecimentos agropecuários. Além disso, exigem ações por parte do Estado para lidar com as questões de saúde da mulher 50 . Assim, uma demanda por apoio do Estado para consolidar os 50 É interessante e curioso verificar que, embora os problemas acima citados que as mulheres enfrentam sejam uma decorrência de suas situações de trabalhadoras diária, as suas reivindicações não são feitas aos maridos ou familiares, mas sim ao Estado. Isto é, reivindicam seus direitos como trabalhadoras inseridas em uma comunidade mais ampla. 49 Rainha é a pessoa responsável e porta voz das mulheres dentro de grupo de Mandjuandadi. Mandjuandadi é, portanto, uma das associações voluntárias das mulheres em Guiné-Bissau que tem por objetivo transmitir os sentimentos através da música e ser uma fonte de conselhos e um meio de produção de economia local ou nacional. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
P. M. Gomes e C. S. A. Abrantes 183 instrumentos de trabalho destas pequenas agricultoras e comerciantes nas tabancas , que também se veem como parte do crescimento e desenvolvimento econômico e social da Guiné-Bissau. As mulheres que compartilham os afazeres e práticas cotidianas em associações concebem a sua agência como relevante para a mudança, o bem-estar da sua comunidade e bairro e, portanto, buscam firmar estratégias em diálogo com a administração local e nacional. Assim, para continuarem trazendo estes resultados positivos dos seus trabalhos, os “lucros”, o Estado deve também agir na promoção dessas políticas, como é sublinhado pela rainha Tina. Apesar deste apelo das interlocutoras, elas consideram os seus trabalhos um sucesso, pois o “sentimento de autossatisfação” por existir um reconhecimento garantido em termos da percepção geral comunitária, quanto à importância dos seus trabalhos em associações. Isso faz com que se sintam realizadas tanto em grupo como individualmente por saberem que através de associação alcançam poderes econômicos, sobretudo por estarem gerindo seus próprios negócios à sua maneira. As duas associações analisadas, Amizade de Babock e Cooperativa Bontche que trabalham com agricultura, comércio e costura começaram nos últimos anos a ganhar peso e reconhecimento dos seus trabalhos pela comunidade, bairros e dentro das suas famílias, por estarem contribuindo para diminuir os momentos de dificuldade e de escassez de alimentos, bem como promover o investimento na alimentação e na educação dos seus filhos (mensalidade escolar), e, consequentemente, na economia social. Assim, o esforço para empregar e promover, por parte do Estado, as mulheres em associações ou cooperativas, está sendo levado a sério em um país cujo percentual populacional feminino atinge os 52%, em relação ao todo demográfico, segundo dados de 2018. Posto
Fronteiras de gênero em Guiné-Bissau… isto, os dados da nossa pesquisa recente em Guiné-Bissau com as mulheres de Babock e Bontche mostra mulheres ativas nos trabalhos coletivos pelo bem social e comunitário. Como vimos nesta seção, as visões sobre mulheres em Guiné-Bissau podem ser pensadas de forma plural e diversa do que é ser mulher, associadas não apenas às formas organizacionais locais (econômicas, religiosas e de parentesco), mas também em suas estratégias de relacionamento com o Estado e nas conexões com o cenário macro, que está em constante transformação. Ressalta-se que também uma reorientação no modo como as mulheres se percebem a si mesmas e se organizam em coletivos a partir das respostas que recebem da comunidade mais ampla, o que mostra um processo contínuo de luta e mobilização social. Agência e redes de associação: por um conhecimento plural e ativo A partir das agências femininas localizadas nas associações em Guiné-Bissau, abre-se, portanto, uma reflexão sobre a importância de localizarmos situações e a partir delas e dos cenários singulares estabelecermos elos para os significados e as relações de identificação feminina. Assim, este é um tema relevante para pensar a agência de mulheres no continente “africano”, ou pelo menos em parte dessas mulheres que percorrem os 54 países do continente, a partir de suas realidades plurais, bem como de seus papéis na vida cotidiana, seus arranjos, suas negociações, sua inteligibilidade e sua lógica social. Podemos nos referir, aqui, às perspectivas afro-centradas que encontramos em Mazama (2009) a partir da África e sua diáspora bem como em Mafeje (2019) para a experiência do continente africano. Então, equacionar a ideia de agência parece-nos ser bastante significativo nos estudos sobre gênero, ao se Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
P. M. Gomes e C. S. A. Abrantes 185 considerar não somente o sentido de uma resistência a relações de dominação, mas, principalmente, uma capacidade para a ação facultada por relações de subordinação específicas. Segundo Mahmood (2019, p. 143) podemos entender agência como “a capacidade de cada pessoa para realizar os seus interesses individuais, em oposição ao peso do costume, tradição, vontade transcendental ou outros obstáculos individuais e coletivos” 51 . Esta conceitualização permite uma possibilidade de análise da experiência feminina nas associações, ao colocar foco sobre o modo como organizam-se em prol de seus interesses, criando sempre espaços de negociação e de mudança social, como vimos anteriormente. Miguel de Barros (2010) contribui para essa ideia ao reforçar que existem no continente outras interfaces que promovem filosofias de sustentabilidade, de priorização de agendas econômicas e sociais dentre outras, em geral a partir de organismos de cooperação internacionais. Na citação abaixo, a ideia de um fomento que incentiva iniciativas individuais e coletivas em prol de um crescimento está bem desenvolvida: O fomento do associativismo ligado a filosofias de projetos dos doadores que privilegiam o trabalho direto com os grupos sociais legalmente constituídos fez disparar o número das associações de jovens, quer na capital como nas zonas rurais do interior do país, esvaziando as associações da sua agenda prioritária, condicionando deste modo o 51 Obviamente, a elaboração de Mahmood sobre a noção de agência no seu texto deve ser entendida ou compreendida no contexto específico dessas mulheres no Egito nas suas intervenções políticas pretendidas nos seus trabalhos. As particularidades de mulheres no Egito traduzem-se por “situar a autonomia moral e política do sujeito em relação ao ´poder´ [o que] foi invocado no estudo de mulheres envolvidas em tradições religiosas patriarcais como o Islão” (MAHMOOD, 2019, p. 138).
Fronteiras de gênero em Guiné-Bissau… que realmente querem e podem fazer e ainda favoreceu uma forte apropriação das iniciativas e absorção dos financiamentos que deveriam ser canalizados pelas redes às associações de base (BARROS, 2010, p. 03). Em meio a essas agências externas, é visível um crescimento de associações na Guiné-Bissau, particularmente os das mulheres que se juntam para desenvolver diferentes atividades geradoras de rendimentos (tanto para alimentação familiar como para o comércio local e nacional). Estes são espaços reconhecidos como os de uma administração de poderes econômicos, por estar-se gerindo seus próprios negócios à sua maneira. A participação dessas mulheres também é considerada como tendo um caráter intervencionista a nível político, social, comunitário e de proximidade com a comunidade, que responde a questões comuns e funciona como veículo de comunicação e de sensibilização em diferentes níveis de caráter social. A emergência do pluralismo político 52 na Guiné-Bissau favoreceu uma explosão de formas de organização social, desde os partidos políticos, sindicatos livres e independentes, passando pelos agrupamentos de cariz económico-empresarial ‘autónomas’ até às organizações não governamentais e associações de base local e comunitária (BARROS, 2010, p. 02). Nesse cenário complexo, propomos nos apropriamos do conceito de “agência”, e ampliá-lo para a ideia de “ativismo”, o que permite estabelecer a força com que as redes de atuação das mulheres mobilizam recursos, alianças, encontros em prol de objetivos comuns, muitas vezes pautados como melhoria de suas condições de vida e da comunidade. Tais redes, como 52 O pluralismo político trazido aqui se refere ao reconhecimento da diversidade de vários partidos, associações ou cooperativas e seu direito ao exercício do poder. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
P. M. Gomes e C. S. A. Abrantes 187 vimos, ultrapassam a esfera local e interagem em contextos familiares, setoriais e mesmo nacionais. São redes que também podem ser reconstituídas como partes da vida social que buscamos colocar em evidência neste artigo a partir da participação das mulheres que produzem conhecimento sobre e nos países africanos, particularmente, em Guiné-Bissau. O desafio, a partir dos padrões históricos construídos no cenário acadêmico ao longo de séculos como vimos na primeira seção são grandes, mas possíveis ao se buscarem outras novas formas de atualização, a partir de realidades mais próximas de mulheres e homens no continente. Como parte do ativismo que se propõe como chave para uma reflexão sobre gênero, incluímos a proposta de que que se considerar novos caminhos para um conhecimento plural que possibilite aos futuros pesquisadores na área humanas reconsiderarem suas bases teóricas e discursivas. Refletir ou problematizar o lugar de produção de conhecimento vem sendo o exercício de questionamento por alguns intelectuais africanos muitos anos. Se Hountondji (1989) acreditava nesta construção de conhecimento a partir dos próprios métodos dentro do continente africano, Cossa (2014, p. 21) reflete sobre a corporeidade como um caminho para se “saber como conhecer as coisas que nos cercam e, consequentemente, se poderiam ser conhecidas e até que ponto eram reais”. Também Adenina (2012) propõe a produção científica de conhecimento a partir de dentro, a que chamou de “endogeneidade”. Percebe-se que os próprios e próprias pesquisadores/as africanos/as vêm questionando e problematizando os sistemas de conhecimento que não refletem as realidades endógenas africanas no seu todo. Na Guiné-Bissau, essa reflexão é proposta por Patrícia Godinho Gomes (2014), que retoma questões de Oyèwùmi (2010) e Houtondji (1989) quanto às condições do conhecimento
Fronteiras de gênero em Guiné-Bissau… produzido nos processos históricos, às ferramentas teóricas e metodológicas próprias para um conhecimento sobre e na África e o apoio de políticas voltadas para a pesquisa científica a partir dos governos nacionais. (...) a primeira é de que as circunstâncias históricas e políticas em que foi produzido o conhecimento em África teriam conduzido a uma dependência “de fora” em termos epistemológicos; em segundo lugar, os países africanos (submetidos na sua maioria a um processo de colonização) precisam encontrar mecanismos internos para compreender as dinâmicas sociais internas e precisam escolher os temas e as metodologias de pesquisa que melhor se adequem às necessidades locais e não às demandas externas; enfim, alcançar tais propósitos requer a construção de um projeto nacional à volta do qual as diferentes realidades socioculturais dentro de um território nacional possam estar representadas (GOMES, 2014, p. 06). Reunimos, assim, a questão do conhecimento como um dos aspectos a serem mobilizados em ação social, ativamente produzido a partir de redes e de questões que precisam estar sempre em destaque para os que estão envolvidos em uma ruptura epistêmica e na possibilidade de produção de quadros teóricos e metodológicos sem as marcas históricas de pensamentos exógenos e distantes. Afinal, quais são as finalidades e as condições de produção do conhecimento? O que leva as/os pesquisadores/as africanos/as a repensarem historicamente e metodologicamente esse conhecimento, utilizando um olhar endógeno? Pode a tradição ocidental de fabricação reflexiva e discursiva privilegiar determinadas visões que não correspondem a processos locais e endógenos e legitimá-las como realidades únicas? Quais são as condições para esse “poder”? Existem, assim, certas possibilidades de desconstrução do conhecimento ligado à representação da realidade e do “sujeito conhecedor” e que questiona a própria noção de Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
P. M. Gomes e C. S. A. Abrantes 189 ciência, no caminho aberto desde Edward Said, nos primeiros anos do pós-colonialismo e que passa pela crítica do conhecimento produzido por antropólogos e de uma artesanal tessitura da realidade social para pensar a coexistência do outro (FABIAN, 2013). A prolongada interação da Antropologia com o “outro” criou um objeto de estudo que na atualidade precisa de uma reavaliação, que foi fundada a partir de uma distância temporal e espacial, principalmente marcada pela matriz da sociedade ocidental, capitalista e estruturada colonialmente. Essa matriz a partir da qual o “outro” transformou-se em uma imagem manipulada em consonância com a dinâmica das relações de poder mais amplas pode ser repensada e diluída por meio de pesquisas que aprofundem o seu lugar histórico (ABRANTES, 2014; 2015). Assim, uma das formas de deslocar esse “centro” pode ser pensada por meio das redes de ativismo em torno das construções científicas sobre gênero, procurando percebê-las em sua organização não pela visibilização de teorias produzidas fora dos espaços consagrados de produção de conhecimento, mas principalmente pela construção dialógica com interlocutores de pesquisa em que se apresente e reflita sobre as condições de pesquisa e seus efeitos para todos os envolvidos (GOMES, 2019). Cotidianamente e ativamente, mulheres se organizam em espaços acadêmicos muitas vezes longe dos centros reconhecidos de autoridade intelectual, para construírem caminhos científicos novos que reflitam sobre os modos de estar baseados em comunidades que se fortalecem, como vimos, pela gestão de seus recursos e organização de suas atividades em grupo.
Fronteiras de gênero em Guiné-Bissau… Considerações finais As fronteiras de gênero abordadas neste artigo permitem trazer referenciais do pensamento sobre a agência de mulheres no continente “africano” através das suas realidades plurais, bem como seus papéis na vida cotidiana, seus arranjos, suas negociações, suas inteligibilidades e sua lógica social afrocentrada. Trouxemos questionamentos relacionados à forma como produção de conhecimento ainda se organiza dentro de um escopo eurocêntrico, quando estas mulheres são consideradas na maioria das vezes “outras”, ou seja, mulheres de grupos subalternizados. Logo, é importante procurar entender o contexto completo em que as mulheres africanas e guineenses estão inseridas, desde as suas subjetividades e a complexidade dos contextos até como concebem o bem-viver, evitando noções pré-concebidas ou distantes de ferramentas teóricas que desconsiderem as condições de produção do conhecimento. Para tanto, este artigo trouxe questões relativas às identidades de gênero construídas situacionalmente, em atividades, organizações e representações sociais historicamente situadas. É importante reconhecer como a construção de categoria “mulher africana” e “guineense” se enquadra numa perspectiva diferente. Os elos que mantêm as mulheres em associações femininas na Guiné-Bissau foram descritos a partir de organizações contra hegemônicas, e parte de redes de ação mais amplas envolvendo diferentes esferas da vida social (famílias, setores, bairros, cidades e até nas relações com o Estado-nação). Compreende-se que as mulheres se impuseram, enquanto agentes sociais, com presença pública ao serem reconhecidas pela comunidade por sua participação e força, além de serem vistas como contribuintes para o desenvolvimento do país. Incluem-se nas mobilizações coletivas em prol de interesses comuns, as ações pautadas dentro dos âmbitos acadêmicos, como parte de um posicionamento que recupera Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
P. M. Gomes e C. S. A. Abrantes 191 questionamentos relevantes para o conhecimento construído sobre experiências que até então eram conhecidas como “outras”. Assim, com eixos inovadores de produção intelectual, se considera que o/a pesquisador/a comporta ativamente escolhas sobre como conduzir suas questões e realizar seus estudos, levando em conta a abertura para revelar suas condições de pesquisa e uma reflexão sobre os efeitos de sua prática. Neste sentido, aspectos da experiência feminina, do ser mulher em África e particularmente na Guiné-Bissau são arenas discursivas de grande relevância para situarmos o ativismo acadêmico como parte do fazer ciência e que nos revela de forma mais profunda as dimensões das fronteiras de gênero na atualidade. Estas arenas organizadas em redes de relações que combatem a exclusão social e comunitária de mulheres e jovens com enfoque nas situações de desemprego na África em especial Guiné-Bissau nos permite refletir sobre o ativismo que se movimenta no continente. Por meio de associações de mulheres organizadas, laços construídos mobilizam a participação ativa feminina e juvenil em prol de interesses comuns para a ascensão local e nacional. Referências ABRANTES, Carla Susana Alem. Repertórios do conhecimento em disputa: trabalhadores indígenas e agricultores no colonialismo português em Angola, 1950 . Anuário Antropológico , v. 39 (1), p. 195-218, mar. 2014. ABRANTES, Carla Susana Alem. Uma vocação para durar: estratégias discursivas e agências imperiais nos anos 1950. Anuário Antropológico , v. 40, (2), p. 173-197, set. 2015.
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P. M. Gomes e C. S. A. Abrantes 195 Resumo: Este artigo apresenta questões de gênero relacionadas às fronteiras de conhecimento e poder a partir de um contexto empírico particular que envolve mulheres em associação . O encontro etnográfico de 3 meses, realizado por uma das autoras em 2018 junto a mulheres no norte de Guiné-Bissau, resultou em trocas efetivas em campo e o exercício de reflexão sobre dinâmicas e gramáticas peculiares de mulheres em associação bem como seus modos de conceber e expressar identidades que caracterizamos como contra hegemônicas. Seus afazeres cotidianos nas associações Bontche e Babock mostram ordenamentos e pertencimentos locais que nos levaram a refletir sobre as ideias de gênero que transitam entre fronteiras comunitárias, étnicas, nacionais, dentre outras. As particularidades das experiências femininas, ao serem colocadas em comparação transcultural, possibilitam escolhas teórico-metodológicas sustentadas pela Antropologia e por um diálogo com intelectuais africanas/os, revelando as agências femininas na Guiné-Bissau e seu papel na construção de coletividades e na transformação social. Trata-se, portanto, de uma reflexão “ativa” que propõe problematizar o lugar histórico da produção de conhecimentos sobre gênero incorporando aspectos endógenos, de resistência e da capacidade para ação e interação entre mulheres, suas comunidades e sua inserção nas relações com o Estado-nação da Guiné-Bissau. Palavras-chave: gênero; Guiné-Bissau; agência; poder; Antropologia africana. Abstract: This article presents gender issues related to the frontiers of knowledge and power from a particular empirical context that involves women in association . The 3-month ethnographic encounter, held by one of the authors in 2018 with women in northern Guinea-Bissau, resulted in effective exchanges in the field and a reflection on the peculiar dynamics and grammars of women in association as well as their ways of conceiving and express identities that we characterize as counter-hegemonic. Their daily tasks in the Bontche and
Fronteiras de gênero em Guiné-Bissau… Babock associations show local arrangements and belonging that led us to reflect on the ideas of gender that transit across community, ethnic, national borders, among others. The particularities of women's experiences, when placed in cross-cultural comparison, allow theoretical-methodological choices supported by Anthropology and by a dialogue with African intellectuals, revealing women's agencies in Guinea-Bissau and their role in the construction of collectivities and social transformation. It is, therefore, an “active” reflection that proposes to problematize the historical place of the production of knowledge about gender, incorporating endogenous aspects, of resistance and of the capacity for action and interaction between women, their communities, and their insertion in relations with the nation state of Guinea-Bissau. Keywords: gender; Guinea Bissau; agency; power; African Anthropology.   Recebido para publicação em 09/07/2021 Aceito em 17/03/2023 ACESSO ABERTO Copyright: Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024