Fernando Henrique Cardoso e a marginalização das interpretações críticas, revolucionárias e nacionalistas sobre o Brasil Marcos Abraão Fernandes Ribeiro Instituto Federal Fluminense, Campus Campos Centro, Brasil http://orcid.org/0000-0002-6185-2448 olamarcos@yahoo.com.br Carlos Eduardo Santos Pinho Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil https://orcid.org/0000-0003-0657-8906 cpinho19@unisinos.br Introdução Fernando Henrique Cardoso possui importância central para a Sociologia brasileira, tanto pelo trabalho desenvolvido como primeiro-assistente de Florestan Fernandes, na Cadeira de Sociologia I da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São Paulo, entre os anos de 1954 e 1964, quanto pela publicação de Dependência e Desenvolvimento na América Latina , em 1969, junto com o sociólogo chileno Enzo Faletto (CARDOSO; FALETTO, 1984). Como destaca Leoni (1997), o livro torna-se um best-seller a partir de sua publicação. Se as pesquisas desenvolvidas por Cardoso foram basilares Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024 DOI: 10.36517/rcs.54.2.a01 ISSN: 2318-4620
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 47 para produzir uma nova intepretação sobre as relações raciais em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul (RIBEIRO, 2016), bem como para questionar o marxismo do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e as teses hegemônicas sobre a burguesia nacional (CARDOSO, 1964), o trabalho realizado com Faletto foi fundamental para que ele obtivesse reconhecimento internacional. Suas teses sobre o par dependência e desenvolvimento , sobretudo o desenvolvimento dependente-associado como caminho possível para o Brasil, e o regime civil-militar instaurado em 1964, tiveram recepção muito positiva quando comparadas, por exemplo, às teses de Andre Gunder Frank, Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos 1 e do seu ex-orientador Florestan Fernandes. Em caminho diverso das intepretações que apontam os elementos estritamente positivos das teses de Cardoso sobre a dependência-associada e o regime burocrático autoritário, defendemos, neste artigo, que as interpretações sobre o capitalismo dependente e o regime civil-militar, produzidas por Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1970, tiveram papel decisivo, juntamente com as intepretações de Raymundo Faoro (2008) e Simon Schwartzman (1988) 2 , para difundir, acadêmica e politicamente, uma concepção conservadora que demarca, unicamente no Estado, o lócus de todos os nossos dilemas sociopolíticos mais importantes. Conjuntamente, suas teses e as críticas à esquerda radical foram cruciais para marginalizar as interpretações críticas, revolucionárias e nacionalistas sobre o Brasil. 2 Ribeiro (2010) sustenta que o pensamento político de Fernando Henrique Cardoso possui afinidades eletivas com as principais intepretações liberais do país de Faoro e Schwartzman. 1 Como leituras positivas das teses de Cardoso, citamos os trabalhos de Lidia Goldenstein (1994), José Carlos Reis (2008), Milton Lauherta (1999) e Kátia Baptista (2010). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
48 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... Nildo Ouriques (2014) analisa as consequências políticas da produção do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) ao defender que ela foi responsável por instituir uma ideologia liberal que se materializou no Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) e no Partido dos Trabalhadores (PT) e que silenciou o pensamento crítico, como aquele representado pela teoria marxista da dependência. O autor enfoca, de maneira detida, as ações de Cardoso e José Serra, para silenciar e estigmatizar o pensamento marxista revolucionário de Ruy Mauro Marini. Após as críticas feitas de sua obra pelos intelectuais supracitados, foi lida permanentemente de forma estigmatizada: O programa de pesquisa orientado pela meta de superação do atraso e do autoritarismo organizou os programas universitários em ciências humanas, subalternizando ou, no limite, eliminando qualquer possibilidade de um projeto nacional-revolucionário (OURIQUES, 2014, p.26). A autoridade científica (BOURDIEU, 2008) conquistada pelas intepretações do CEBRAP e de Cardoso, em particular, possivelmente o principal sociólogo brasileiro entre as décadas de 1960 e 1970 (GONÇALVES, 2018, p.10), foi fundamental para marginalizar as interpretações produzidas pela esquerda radical, sobretudo àquela em torno da dependência. Nesse sentido, seguindo o argumento de Ouriques (2014), apresentaremos as interpretações de Cardoso sobre o pensamento crítico, revolucionário e nacionalista que, como argumentamos, são fundamentais para marginalizá-lo, bem como evidenciaremos como a produção intelectual cardosiana transmuta-se em projeto político. A interpretação de Cardoso tem, no conceito de patrimonialismo, a semântica fundamental a sintetizar no Estado a principal chaga nacional. A tese do patrimonialismo Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 49 foi reforçada nos anos 1990 pelo triunfalismo do neoliberalismo e pela crise fiscal do Estado, tornando-se projeto político levado a cabo pelo PSDB (RIBEIRO, 2020). Nesse sentido, Ribeiro afirma: Portanto, o grande dilema no Brasil não estava nas lutas de classe ou na imposição do imperialismo, como defendem as interpretações marxistas, mas no patrimonialismo que havia se reproduzido de forma secular na realidade brasileira (RIBEIRO, 2020, p. 70). Para alcançarmos nossos objetivos, dividimos o artigo em quatro partes, somadas a esta introdução. Na primeira, apresentamos o papel do intelectual nos anos 1970 e a sua vinculação direta com a política. Na segunda, expomos as teses do CEBRAP para sustentar o argumento sobre a hegemonia intelectual de Cardoso. Na terceira, expomos as críticas de Cardoso aos dependentistas e sua intepretação sobre o regime burocrático-autoritário. Na quarta, apresentamos as teses do sociólogo sobre a esquerda e suas vertentes interpretativas críticas, revolucionárias e nacionalistas e algumas continuidades entre sua produção intelectual e sua prática política. Nas considerações finais, defendemos a necessidade da retomada sistemática das leituras marginalizadas pela crítica de Cardoso, pois elas têm como objetivo interpretar o país a partir da massa de expropriados, no campo e nas cidades, e possuem, como dimensão normativa, a formulação de um projeto emancipatório nacional e popular. Uma vez no governo, apresentamos como FHC executou, na prática, a teoria do desenvolvimento dependente associado, levando a efeito um pacote de políticas neoliberais. Além disso, mostramos brevemente as principais características e a singularidade dos governos desenvolvimentistas (2003-2016). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
50 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... Dentro das limitações impostas pelo regime de acumulação financeirizado, tais governos buscaram dar materialidade um projeto nacional, democrático e popular. Todavia, foram defenestrados e atacados pelo recrudescimento da autocracia burguesa, que reforça os laços de dependência do país no cenário internacional, ataca o regime político democrático e destrói direitos sociais constitucionalizados. Os intelectuais na década de 1970 no Brasil Para sustentar a centralidade das teses de Cardoso, consideramos necessária a passagem pela análise feita por Daniel Pécault (1990) sobre a função que o intelectual exerceu no Brasil a partir dos anos 1970, pois ela contém elementos importantes para avaliarmos a relação que essa camada travou com a política. Conjuntamente, auxilia-nos a sustentar como as teses do sociólogo foram incorporadas pela esfera pública que lutava contra o regime militar e, sobretudo, pelo sistema político. Pécault (1990) tem como objetivo analisar a relação dos intelectuais com a política no Brasil, entre os anos 1930 e 1980. Ele afirma que, durante esse período, os intelectuais assumiram os seguintes papéis: pensadores do social nos 1930; ideólogos do desenvolvimento nos 1960 e atores políticos sobre a ditadura nos anos 1970. Este último papel apenas foi possível sobre a ditadura civil-militar porque, mesmo com a promulgação do Ato Institucional n.º 5 , em 1968, o regime acabou não impedindo o desenvolvimento das ciências sociais e do mercado de bens culturais, como pode ser visualizado por meio do aumento decuplicado de professores universitários, da expansão das ciências sociais e da multiplicação dos cursos de doutorado (PÉCAULT, 1990, p. 264-5). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 51 Durante os anos 1970, sobretudo a partir de 1974, por meio de sua articulação com a sociedade civil, os intelectuais foram um importante ator político, cuja ação crucial era a derrubada do regime civil-militar. Para tanto, São Paulo e, especificamente, o CEBRAP tiveram papel crucial, pois o Centro, sob a liderança de Cardoso, propôs uma teorização estruturada pela conjuntura, sugerindo saídas dentro das condições possíveis: “É testando o conceito diante das ambiguidades do momento e definindo o possível com base no que pode ser reconhecido a cada instante pelas massas que Cardoso chega a provocar ‘a organização política’ do meio intelectual” (PÉCAULT, 1990, p. 299). Pécault (1990) argumenta que a democracia se torna uma questão central, substituindo as concepções das décadas anteriores sobre a nação e o desenvolvimento. Os intelectuais tinham vasto público para suas teses em instituições, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), as publicações nos periódicos Opinião, Argumento e Movimento e a relação direta com a oposição político-partidária ao regime civil-militar. Essas ações foram decisivas, como temos sustentado, não apenas para organizar um senso comum em torno da reativação da sociedade civil, da participação, da redemocratização e da oposição entre Estado (autoritário) e sociedade (democrática), mas também foram cruciais para marginalizar e silenciar o pensamento da esquerda radical, que propunha uma análise crítica e negadora e uma consequente saída revolucionária como encaminhamento necessário para vencer o regime. Como exemplo da marginalização, Florestan Fernandes é caracterizado como militante solitário (SOARES, 1997), devido ao isolamento que suas teses tiveram frente ao senso comum intelectual naquele momento. Da mesma forma, as interpretações revolucionárias sobre a dependência, e que Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
52 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... tiveram relação direta com a luta armada na Organização Revolucionária Marxista Política Operária (POLOP), como as de Theotônio dos Santos e Ruy Mauro Marini, foram permanentemente marginalizadas. Se observarmos que o campo científico tem como encaminhamento necessário a luta pela imposição da visão de mundo legítima (BOURDIEU, 2008), o argumento fica bastante plausível. As ações intelectuais tiveram importância decisiva no combate à ditadura, que merecem ser demarcadas. Contudo, a versão vencedora acabou sendo superestimada, pois foi responsável por perpetuar uma leitura sobre o Brasil e um projeto político que deixou de lado uma vinculação forte com as massas destituídas e impossibilitou a constituição de um programa nacionalista e popular de conteúdo profundamente transformador, que passou a ser identificado como anacronismo . O CEBRAP e a hegemonia das teses de Cardoso Para a compreensão sobre a importância de Cardoso, aludida acima, é basilar a exposição dos temas de pesquisa feitos pelo CEBRAP e a relação que eles tiveram com a interpretação precedente sobre o país. Nesse sentido, Baptista (2010) advoga que o Centro constituiu uma nova interpretação do Brasil, uma vez que se distanciou das leituras produzidas pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), pelo varguismo, pelo PCB, pela luta armada e pelo leninismo. O Centro teria postura mais moderna por ter constituído uma interpretação política e conjuntural mais próxima da realidade brasileira. Dessa forma, teria superado as leituras sobre a nação, que dominaram as teses em torno do Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 53 nacional-desenvolvimentismo. As interpretações produzidas pelo Centro tinham como elemento político a defesa da modernização dentro do capitalismo (BAPTISTA, 2010). Lahuerta (1999) advoga que a produção intelectual do CEBRAP foi responsável pela renovação das ciências sociais em termos de sua agenda temática e teórico-metodológica. A naturalização de uma nova agenda deveu-se, e muito, ao prestígio de Cardoso (LAHUERTA, 1999). Para os estudos sobre sociedade civil, o Estado passa a ser caracterizado como o grande vilão. Assim, as saídas em torno da reativação da sociedade civil tinham como objetivo limitar o poder do Estado e o seu alcance (BAPTISTA, 2010, p. 228). De acordo com Lahuerta (1999), o pensamento do CEBRAP era pautado pela contraposição ao Estado, caracterizado como burocrático e autoritário, além da valorização da democracia e do fortalecimento da sociedade civil. Na verdade, essa é a posição hegemônica dentro do Centro muito bem expressa pelo pensamento de Cardoso, pois interpretações como a de Octávio Ianni (1981), que analisa o regime civil-militar como uma ditadura burguesa, ficaram obscurecidas 3 . Em sentido contrário a Cardoso, por exemplo, Ianni enfatiza o papel exercido pela burguesia e pelo imperialismo como elementos dominantes no regime instaurado em 1964. De acordo com Lahuerta (1999) Cardoso foi um intelectual que liderava intelectuais: “Ele é o grande catalisador, o ponto de equilíbrio, o grande inspirador dessas pesquisas” (LEONI, 3 De acordo com Ianni (1981, p.1): “Uma coisa é a ditadura militar, que é mais visível nessa época; outra é a ditadura da grande burguesia, do grande capital, que determina as principais características do Estado ditatorial. Nem sempre as classes dominantes exercem diretamente o seu governo. Não precisam; não é conveniente. Trata-se, pois, de compreender toda essa história a partir da perspectiva das classes subordinadas, principalmente operários e camponeses”. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
54 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... 1997, p.160). Ainda seguindo Lahuerta (1999), Cardoso se diferenciaria de Florestan, que foi um intelectual que formou intelectuais. A partir dos capitais acumulados nas décadas anteriores, Cardoso ganhou posição de protagonismo no campo das Ciências Sociais nos anos 1970, o que permitiu que ele redefinisse as regras desse campo com a proposição de uma nova interpretação do Brasil que recusava o nacional-desenvolvimentismo e via no Estado o nosso maior problema. Este protagonismo de Cardoso pode ser visualizado através do papel de orientador dos trabalhos acadêmicos produzidos pelo Centro (LEONI, 1997). As teses de Cardoso tiveram grande impacto no debate intelectual (BAPTISTA, 2010). O fio condutor dessas ideias era a busca de modernização e democratização dentro do sistema capitalista, ou seja, era propagação de uma perspectiva reformista que pudesse institucionalizar a democracia liberal. Como síntese dessa linha de pesquisa, foi publicado o livro Autoritarismo e Democratização (CARDOSO, 1975). O sociólogo colocou-se contra as interpretações da esquerda revolucionária, pois defendia uma saída reformista e moderada para vencer o regime por meio da institucionalização da democracia. Nesse sentido, Cardoso esteve na contramão da esquerda (LEONI, 1997). Apesar de ter no marxismo um pilar de grande importância em termos teórico-metodológicos (RIBEIRO, 2020), Cardoso instituiu uma interpretação que definiu o autoritarismo como burocrático, que opôs o Estado à sociedade civil, que diluiu o conflito entre as classes, além de propor uma saída reformista e moderada que tinha como fio condutor trazer de volta a democracia, sem possuir uma crítica efetiva ao capitalismo dependente, nem ao imperialismo, ou seja, sua proposição de democracia estava desvinculada de uma discussão sobre as Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 55 questões econômicas (GOERTZEL, 2002). Cardoso desenvolvia importante papel de luta contra o regime no CEBRAP, nas publicações de Argumento, Opinião, Movimento e das reuniões que eram feitas na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Sua atuação foi fundamental para que tivesse visibilidade pública (LEONI, 1997). De acordo com Leoni (1997), as pesquisas no CEBRAP e a colaboração nas publicações acima citadas foram decisivas para a transformação do intelectual em político porque teria se tornado: “Um ideólogo engajado no discurso de oposição da época, inteiramente voltado para a questão da volta à democracia” (LEONI, 1997, p.172). Retomando o argumento, a importância dos intelectuais torna-se tão forte que o CEBRAP vira o responsável pela atualização do programa político do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), em 1974, articulando suas propostas em torno da democratização ao programa do partido, que tinha como objetivo vencer o regime civil-militar. A produção intelectual cardosiana instrumentaliza o projeto político de oposição que se tornava, a cada dia, mais efetivo devido aos sinais claros de esgotamento do milagre brasileiro. Pécault (1990) afirma que os intelectuais tornam-se atores políticos na medida em que o campo intelectual transmuta-se em campo político. Também é verdade que por intermédio desse partido, correntes extremamente diversas são levadas a coexistir: defensores de uma democracia socializante, liberais, comunistas, certas vanguardas revolucionárias e, por outro lado, políticos profissionais, classes populares, intelectuais, empresários cansados do dirigismo autoritário, representantes da Igreja e delegados dos movimentos populares. Prevalece assim, por força das circunstâncias, uma prática incessante de Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
56 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... “conciliação”. E, sobretudo, as estratégias diversificadas, e o tema da cidadania política adquire potencialmente o reconhecimento de sua importância (PÉCAULT, 1990, p.302). Por conta da existência do inimigo comum, a heterogeneidade intelectual existente acabou ficando encoberta em São Paulo, e singularizou-se pela transformação do intelectual em ator político (PÉCAULT, 1990). Essa ação acabou fazendo com que vários intelectuais se transmutassem para a vida político-partidária, como foi o caso do próprio Cardoso, a partir de 1983, quando assumiu a vaga de Franco Montoro no Senado 4 . O protagonismo das ideias do CEBRAP e de Cardoso, em especial, foram cruciais para o projeto político que foi produzido pelo MDB e depois pelo PSDB, além de ter sido fator decisivo para a marginalização do pensamento crítico e de um projeto nacional e popular. Cardoso e o regime burocrático-autoritário O trabalho de Cardoso sobre a dependência tem como fio condutor questionar as interpretações sobre o desenvolvimento contidas na CEPAL e em autores que levaram a cabo interpretações por meio de uma perspectiva marxista radical. Para a perspectiva da dependência-associada, o golpe de 1964 fez com que o nacionalismo perdesse sua razão de ser por conta da nova situação estrutural de dependência (CAMPANTE, 2019, p.151): Na avalição de Fernando Henrique Cardoso, feita 4 Sobre a candidatura de Cardoso ao Senado, ver Leoni (1997) e Ribeiro (2015). Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 57 em 1971, expressava-se a posição do Cebrap, endossada em uma leitura da condição “dependente e associada” do Brasil. Para ele, o país era dotado de uma “burguesia internacionalizada” que abria espaços para o crescimento de uma burguesia com horizonte e atuação nacionais, acomodando as classes médias e integrando alguns segmentos populares. A condição geral da sociedade seria de estabilidade e de crescimento econômico; portanto, segundo Fernando Henrique, então propícia à abertura do regime de 1964 para uma “agenda democrática” nos anos 1970 (CHAVES; CATTAI, 2019, p. 211). Assim, Cardoso propôs uma análise que enfoca as conexões entre o sistema econômico e a organização política interna, e as relações com os países centrais, isto é, uma análise integrada e dialeticamente constituída. Nesse sentido, o sociólogo vai questionar as teses em torno do estagnacionismo do regime civil-militar e das caracterizações sobre a dependência como desenvolvimento do subdesenvolvimento e sub-imperialismo , que eram utilizadas como elementos explicativos do quadro econômico. Segundo essas interpretações, o desenvolvimento na periferia seria inviável. Cardoso se opõe argumentando que a tendência à estagnação não era condição imutável, isto é, era conjuntural e não fator permanente na periferia (CARDOSO, 1975, p.30). Cardoso também se opõe à tese da superexploração capitalista, baseada na exploração extensiva da mão de obra e na sub-remuneração do trabalho. O sociólogo não nega que continuava a exploração da mais-valia absoluta, mas afirma que seria muito simplista explicar o avanço do processo de acumulação como se não existissem formas mais complexas de exploração. Também se opôs à tese que defendia que o país estava imerso em uma encruzilhada entre o socialismo ou o fascismo. Esta seria uma relação falsa, pois o regime não estava Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
58 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... estruturado através formas fascistas de organização política. Ao contrário das teses supracitadas, Cardoso defendia que o regime engendrou um desenvolvimento efetivo que trouxe dinamismo à economia e à sociedade. Este foi baseado na expansão simultânea e diferenciada dos setores privados, nacional e estrangeiro, e do setor público da economia. Como resultado houve a expansão do mercado interno e do emprego urbano-industrial, que demonstravam que havia mobilidade social mesmo com o caráter repressivo do regime (CARDOSO, 1975, p.59). Através da estabilização das dissensões internas e da ação corporativa foi possível o controle do Estado modernizado e a implantação de um modelo com relativa estabilidade da dominação burocrática (CARDOSO, 1993, p.78). O caráter do novo regime não representou uma organização pautada pela rigidez burocrática, pois o Estado ganhou um caráter empresarial devido ao modo tecnocrático da administração (CARDOSO, 1993). O regime ganharia, neste momento, a formatação final, responsável por institucionalizar seu caráter burocrático-autoritário, por fomentar o desenvolvimento dependente e por atender aos grupos que lhe deram suporte: O regime baseado neste modelo de dominação burocrático-militar não deixa de implementar, naturalmente, políticas que interessam à sua base social: com elas se beneficia a burguesia internacionalizada, o próprio grupo militar, as classes médias ascendentes, especialmente os seguimentos profissionais e tecnocráticos e, enquanto houver crescimento econômico, alguns setores das camadas populares, sempre e quando o governo sustente políticas distributivistas (CARDOSO, 1993, p.79). Cardoso advoga que o regime burocrático-autoritário possuía caráter autocrático. Todavia, a responsabilidade sobre o regime não é legada à burguesia, mas sim à burocracia Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 59 responsável por controlar o Estado e o regime. Isto ocorria porque os tecnocratas teriam legitimado pelo sucesso econômico um papel político central, uma vez que seriam eles os responsáveis por decidir os rumos do Estado e das políticas implementadas em reuniões do alto escalão. Assim, a autocracia presidencial possuía um caráter meramente formal (CARDOSO, 1975). Nesse sentido, um dos traços mais importantes é a caracterização do regime civil-militar como regime de empresas. O Estado passava, portanto, a ter uma presença marcante como burocracia e como empresa ao lado do grande capital internacional e nacional (CARDOSO, 1975). O pacto de dominação que controlava o Estado se dividia entre a presença da tecnocracia, isto é, executivos e policy-makers das empresas estatais que dominavam as empresas públicas e foram conceituados por Cardoso como burguesia de Estado , os militares caracterizados como um estamento militar e as burguesias internacional e nacional e os setores das novas classes médias (CARDOSO, 1975). Sobre a burguesia de Estado , Cardoso reconhece o caráter contraditório do conceito, pois a burguesia era pautada classicamente pela propriedade privada dos meios de produção. Sua utilização, todavia, tinha um sentido instrumental para demonstrar que, apesar de a propriedade das empresas ser pública, o seu controle era feito de forme privada. A burguesia de Estado possui papel fundamental para explicar o regime burocrático-autoritário e os seus dilemas, pois são as empresas estatais que ganham protagonismo (CARDOSO, 1975). A explicação para a existência desse comportamento possuía raízes na formação colonial que foi responsável por fazer com que as classes dominantes se fundissem no aparelho estatal, de forma a poder apropriar-se privadamente dos recursos públicos. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
60 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... Para Cardoso, portanto, a camada burocrática não cumpria o papel de comitê executivo dos interesses da burguesia, pois possuía uma lógica de atuação e interesses que eram próprios dentro do regime. Com isso, a burguesia buscava tirar vantagens e não tinha um controle efetivo do regime, pois estava enfeudada às corporações multinacionais e ao Estado. Mesmo não sendo protagonista do regime, a burguesia nacional possuía papel ativo na dominação política e no controle social das classes submetidas (CARDOSO, 1975, p.35). Esta ação se dava a partir do sistema de anéis burocráticos, forma pela qual o Estado era privatizado por relações e interesses pessoais. O estamento militar legitimava o desenvolvimento dependente-associado através da repressão das massas que, por sua vez, demonstrava como seu caráter era elitista e não fascista. Este também tinha um custo alto, pois se baseou nos baixos salários, na distribuição desigual de renda e no endividamento externo (CARDOSO, 1975, p.83). Por conta do quadro acima referido, seria necessária uma ação em torno da integração das massas radicadas no campo e nas cidades, de maneira que a informação pudesse ser livremente propagada e que esses setores pudessem se organizar politicamente de forma a enfrentar e derrubar o regime controlado pela burguesia de Estado : Para Fernando Henrique, a burguesia de Estado concentrava o poder econômico e o poder político do Estado do regime ditatorial e a proposta de democratização deveria restringir-se à oposição com relação a tal burguesia de Estado. Caminhando junto com essa proposta, acreditava-se que as classes no poder teriam uma capacidade autônoma de remodelar o Estado e a sociedade, seguindo um processo de democratização institucional baseado na descentralização do poder político e pela desconcentração do poder econômico do Estado Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 61 (JESUS, 2018, p.34). Para tanto, era necessário a mobilização de setores importantes ligados à Igreja, universitários, juízes, advogados, jornalistas, sindicalistas, operários e a base agrária que representava 40% da população. Esta ação seria fundamental para enfrentar o sistema político enraizado no patrimonialismo instituído durante o sistema colonial (CARDOSO, 1975, p.235). Era necessário que a sociedade de classes pudesse ser efetivamente constituída de maneira que o conflito construtivo, cujo papel era central nas sociedades europeia e norte-americana, pudesse ser institucionalizado como forma de pôr fim à condução elitista e patrimonialista da vida política brasileira, fazendo com que os interesses e demandas populares pudessem vir à tona. Éramos uma sociedade moderna, pois tínhamos um capitalismo vigoroso que proporcionou modificações importantes na estrutura socioeconômica do país. Todavia, era uma ordem moderna singular e precária, uma vez que não incorporamos o elemento civilizatório do capitalismo representado pelo conflito. Segundo Cardoso (1975) era necessário que a sociedade civil fosse sendo tecida até que pudesse contrabalançar o Estado e conseguisse se tornar uma parte efetiva da realidade política da nação. Assim a ação da sociedade civil se tornaria efetiva, plural deixando de lado o controle privatista do poder pelas cúpulas decisórias. A marginalização do pensamento crítico, revolucionário e nacionalista Segundo Cardoso, os intelectuais devem ficar na fronteira do possível, por meio da proposição de questões que venham Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
62 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... alargar as tendências existentes na sociedade civil, de forma a contribuir para institucionalizar o conflito. O intelectual teria como papel articular as várias demandas existentes na sociedade, tendo postura de sistematizador, por meio da abertura de canais de expressão. Desse modo, ele agiria como parceiro dos grupos, categorias e classes sociais e não como líder político (PRANDO, 2009, p.136). Assim, o intelectual não deveria articular proposições normativas sobre o comportamento da sociedade, pois antes de dizer o que o sindicado, por exemplo, teria de fazer, era necessário ouvi-lo. Caso contrário, reproduziria uma postura autoritária e consentânea com o conservadorismo da classe dominante. Desse modo, o intelectual deveria contribuir para que a democracia fosse incorporada como valor por meio do reconhecimento da diversidade do conflito de interesses que seria questão central da prática moderna. Dessa forma, poderia haver a liberdade, a auto-organização e a expressão da sociedade (CARDOSO, 2010 5 ). A luta do intelectual deveria ser em torno da instituição de um sistema econômico mais justo e, também, de uma sociedade mais igualitária. Ele deveria lutar pela democracia substantiva, que representava a institucionalização do capitalismo como estilo de vida. Para demonstrar a atualidade de suas posições, Cardoso (2010) polemiza as propostas da extrema esquerda, que advogava pela saída socialista revolucionária na periferia. O sociólogo considerava o discurso homogêneo em nome de uma classe social como totalitário. Cardoso (2010) considerava Marx 5 Apesar da data de publicação, as nossas referências são, fundamentalmente, a publicações de Fernando Henrique Cardoso entre o início dos anos 1970 e o final dos anos 1980. O sociólogo reúne no livro Relembrando o que escrevi : da reconquista da democracia aos desafios globais (CARDOSO, 2010), com o objetivo de apresentar a coerência interna do seu pensamento. É importante frisar que existem textos publicados até 2009 no livro supracitado. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 63 um autor do século XIX, ou seja, seu modelo explicativo e normativo não se enquadraria no mundo contemporâneo. Isso fez com que o sociólogo criticasse os marxistas por estarem na passagem do século XX para o XXI sem teoria para entender o mundo em mudança: “Frequentemente, por causa do doutrinarismo dogmático, a extrema esquerda fica parada e a direita também: reciprocamente imobilizadas ao nível da bobagem” (CARDOSO, 1978, p. 88). Cardoso mostrava-se terminantemente contra os partidos que ele considerava totalitários, pois não observavam as demandas reais da sociedade e a singularidade brasileira. O sociólogo considerava as interpretações do marxismo-leninismo, por exemplo, como um misto de dogmatismo e anacronismo. Por isso, Cardoso (1978, p. 24) afirmava que a esquerda é que precisava ser civilizada: “As tentativas de todo capitalismo inteligente vão no sentido de ‘civilizar’ a esquerda, mesmo a esquerda comunista”. Além disso, Cardoso considerava a visão marxista, entre explorados e exploradores, como metafísica, além de dogmática, a visão de um partido operário, pois a sociedade havia se modificado: “A sociedade moderna é muito complexa e os partidos são uma parte disso. Quem pensa que o partido vai organizar tudo isso tem uma visão do século passado” (CARDOSO, 2010, p. 67). Para Cardoso, deveria ser constituída outra proposição para além da oposição capital/trabalho (CARDOSO, 1978). Segundo o sociólogo, a esquerda era atrasada e estava a reboque das mudanças. Assim, as transformações ocorridas no mundo faziam com que o esquema marxista de luta de classes não fosse capaz de explicá-lo. Por isso, dizia-se da esquerda independente (CARDOSO, 2010). O socialismo do século XX era a democracia substantiva, que seria pautada pelo controle social do Estado (CARDOSO, 1978). Cardoso, portanto, refuta as interpretações marxistas e revolucionárias sobre o Brasil. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
64 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... Cardoso considera os teóricos que propuseram uma interpretação crítica do capitalismo dependente e do regime militar pautado pelo marxismo como atrasados, dogmáticos e propositores de interpretações irrealistas sobre esses temas, na medida em que estaria construindo uma interpretação moderna e mais próxima da realidade brasileira: Eu tenho muita irritação com um radicalismo retórico que anda por aí. Substitui-se a realidade por um modelo de solução, ignorando a correlação de forças. Quem pensa assim se comporta como um membro da elite. Pensa que sabe o que deve ser feito e não ouve nada. Na hora de pegar o pato, não são os verbalmente radicais que pagam. O que conseguem fazer é frear a possibilidade real de você caminhar. Eu digo sempre que muitos setores da esquerda brasileira que continuam vivendo entre fevereiro e outubro de 1917 período da Revolução Soviética e choram porque não um Palácio de Inverno na América do Sul. Não havendo o Palácio de Inverno para tomar, como em 1917, não se faz nada... Isso é típico do intelectualóide, revela uma brutal dependência cultural. Essa gente tenta aplicar chavões e palavras de ordem gastas, que não correspondem a uma prática social real (CARDOSO, 1978, p.26). Devido ao descompasso da esquerda, era necessário levar a cabo uma utopia viável que tinha como fim retificar as mazelas do capitalismo dependente. O sociólogo afirmava que o socialismo do século XX é a democracia substantiva, que seria pautada pelo controle social do Estado (CARDOSO, 1978). Cardoso argumenta que o sentido concedido por ele tinha ligação direta com aquele dado ao conceito por Karl Mannheim: “Mannheim a usava no sentido de uma democracia que não se restringisse ao setor estatal, às instituições formais, mas que fosse também um processo social” (CARDOSO, 1977, Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 65 p. 36). Nesse sentido, Cardoso (2010) assume posição consentânea à tomada por Mannheim (1972), pois evitou os extremismos e procurou construir uma espécie de terceira via , de caráter reformista. Cardoso refuta a existência de um partido cuja lógica intrínseca seja a vinculação orgânica com determinada classe social, sobretudo por meio da proposição de uma saída revolucionária. O partido político deveria ser capaz de abarcar as várias tendências existentes na sociedade por meio de encaminhamento reformista e progressista, tentando articular os vários interesses existentes. Esse papel seria exercido pelo PMDB, que o sociólogo conceituou como partido omnibus . No final dos anos 1980, contudo, Cardoso rompe com o partido por considerar que ele teria se desvirtuado dos princípios nos quais havia sido formado para praticar o butim do Estado. Após sua saída do PMDB, Cardoso funda, com outros dissidentes, o PSDB, com objetivo de defender um caminho reformista e social-democrata para o país, que teria como encaminhamentos a luta pela manutenção e ampliação das liberdades democráticas; pela valorização do trabalho e a elevação do nível de vida dos trabalhadores; e a luta pela subordinação do poder econômico ao controle da sociedade (CARDOSO, 1990a, p. 11). O partido tinha a incumbência de incorporar a herança do antigo MDB sob uma perspectiva renovadora (CARDOSO, 2006b). Ao defender as concepções políticas do PSDB, Cardoso volta a criticar duramente a esquerda, que não teria se atualizado. Assim, seu partido deixava de lado as ideologias e utopias e procurava pautar-se em questões concretas, pois refuta a proposição de saídas que considerava impositivas e a vinculação monoclassista, uma vez que o partido moderno deveria ter caráter pluriclassista por meio da construção de aliança entre trabalhadores, classe média e empresários que Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
66 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... estivessem afeitos às questões em torno da justiça social (CARDOSO, 1990a, p. 57). Cardoso (1990a) advoga que a visão monoclassista representaria, para o PSDB, o corporativismo que ele considera inaceitável: “O sentimento nacionalista, estatizante e corporativista é muito forte. É forte no PT, no PSDB. É preciso passar a limpo o marxismo, o progressismo” (CARDOSO, 2010, p. 74). O sociólogo considerava mais realista a busca de convencimento da sociedade civil e a consequente instituição de reformas graduais, como pode ser visto na proposição sobre a relação entre capital e trabalho: A social-democracia não quer acirrar as lutas de classes. Ela simplesmente reconhece que essas lutas existem na mesma medida em que existem desigualdades injustificáveis e exploração dos trabalhadores na sociedade. E afirma que a exploração e as desigualdades são superáveis que uma distribuição mais equilibrada da riqueza é possível e necessária, sem que para isso a luta de classes precise virar uma guerra sangrenta (CARDOSO, 1990a, p.15). A social-democracia também se colocava contra a estatização total da economia, uma vez que a liberdade de empresa e a propriedade privada são bandeiras por ela defendidas. Nesse sentido, empresas públicas que não fossem eficientes poderiam ser privatizadas, fazendo com que o Estado fosse constituído não com uma formatação mínima, mas necessária, a fim de atender às necessidades da sociedade. Cardoso afirma que, desde os seminários de fundação do PSDB, foi difundida a ideia de revisão dos papéis do Estado, da sociedade e do mercado no mundo globalizado. Assim, o partido representaria uma visão moderna e consentânea com as mudanças ocorridas no mundo. Seria necessário refazer a engenharia institucional de forma a poder gerar práticas Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 67 democráticas. O PSDB se opunha, portanto, à saída socialista. Seria necessário gerar uma nova ordem pautada pela instituição de um capitalismo aperfeiçoado, pois era a realidade possível. O partido também se colocava como uma terceira via entre a esquerda tradicional e a direita, pois propunha reformas por meio da articulação com a sociedade (CARDOSO, 2006b). Era necessário instituir uma esfera pública democratizada que fizesse da sociedade a protagonista: “E entender que o sentido geral das transformações, quando se pratica democracia de verdade, pode ser a eliminação dos privilégios e a participação crescente do povo, tanto nas decisões como no bem-estar” (CARDOSO, 1990a, p. 59). Dessa forma, Cardoso entendia que o mercado era uma realidade inescapável depois da queda do socialismo real . Sendo assim, seria necessário construir uma nova ordem por meio da conjugação entre mercado, Estado e sociedade a partir da ação nos seguintes pontos: retomada do crescimento econômico; diminuição das desigualdades; governabilidade. O crescimento econômico dar-se-ia por meio de uma política de internacionalização da economia e de privatizações que deixam a capacidade estratégica do Estado para ativar a economia (CARDOSO, 1990b, p. 43). As propostas sociais-democratas de Cardoso apontam, portanto, o Estado como fonte de todos os nossos dilemas mais importantes, como a profunda desigualdade social. Dulci (2010), contudo, defende que o PSDB representou, de fato, uma saída liberal para os dilemas brasileiros e não social-democrata, como o seu nome sugere. Ao comparar a realidade brasileira com a existente na Europa ou nos Estados Unidos, Cardoso aponta como nosso passado escravista, colonial, patrimonialista e clientelista foi elemento crucial para a reprodução da abissal desigualdade, pois seus elementos fizeram-nos essencialmente diferentes Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
68 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... dos países centrais. Ao analisar as relações entre Estado, mercado e democracia, Cardoso aponta a nossa formação social escravista como fator crucial para a constituição de uma relação distorcida entre ambos, uma vez que as potencialidades do mercado, por exemplo, não puderam ser plenamente consolidadas em nossa singular ordem capitalista estruturada pelo tradicionalismo. A força do mercado sempre foi muito mais acanhada e constrangida pela existência de fatores políticos, por um tipo de dominação política que nada tem a ver com a ação do Estado reformador do mercado, à europeia. O Estado aqui se acomodou à sociedade e ambos a um certo tipo de produção, guardando características mais do que conhecidas de patrimonialismo, de clientelismo etc. (...) alguns autores fizeram uma análise mais culturalista dessas diferenças, em termos de uma tradição corporativista, de uma cultura católica, da tradição ibérica etc. A literatura sobre o tema é ampla. Não é o caso de fazermos a revisão dela, mas o fato é que, de alguma forma, a vinculação entre Estado, sociedade e democracia na América Latina deu-se a partir de outros pressupostos, outro background (CARDOSO, 1991, p.28). Para Cardoso (1991), a formação patrimonialista da sociedade brasileira foi o fator crucial para gerar uma relação diferencial entre Estado e sociedade, ao compararmos com as sociedades de típica formação capitalista, uma vez que esta seria uma característica básica das sociedades de base latifundiária-patrimonialista (CARDOSO, 1991). Assim, reproduziríamos uma cultura clientelista e patrimonialista que impôs bloqueios estruturais para o mercado institucionalizar seus caracteres civilizatórios, isto é, impediu-nos de constituir uma ordem social competitiva aberta e democrática. Portanto, o grande dilema estava no patrimonialismo, que era o fator Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 69 impeditivo para a institucionalização plena da sociedade capitalista como estilo de vida, do conflito construtivo entre as classes sociais e de suas potencialidades intrínsecas. Logo, era o patrimonialismo que fazia com que a sociedade brasileira fosse marcada pela junção entre privilégio e exclusão. Era necessário construir uma ordem social competitiva aberta, ou seja, dar oportunidades a todos de adentrar o mercado de trabalho. Para tanto, a defesa do emprego e da igualdade de oportunidades educacionais eram primordiais. Assim, seriam valorizados o trabalho e redistribuição de renda (CARDOSO, 1990b). Aliado a isso, o acesso aos meios de comunicação era essencial devido à importância central que possuía para a democracia. Tornava-se necessário pôr fim à fraqueza das classes e sua articulação com os partidos políticos quando comparada, por exemplo, ao caso europeu. É que, em grande parte, os nossos partidos, os partidos emergentes, a despeito do que queremos, do que escrevemos, dos programas que estão neles, não são partidos do tipo europeu, onde existe realmente uma congruência muito maior entre a base social e a liderança política, onde o peso da classe é muito forte na definição do rumo do partido. Entre nós não existe, além da congruência entre base social e o nível político, o grau de organização, de estruturação, dos partidos políticos europeus. Quer seja o partido socialista, ou liberal, ou comunista, qualquer desses existe muito mais estruturalmente e é referido a certa doutrina (CARDOSO, 1984, p.30). Cardoso não considerava o Brasil um país subdesenvolvido, mas sim, mal desenvolvido. Teríamos um relativo atraso econômico que se colocava como obstáculo para superar o atraso social, este sim, nosso maior problema. Para tanto, era necessário agir conforme as circunstâncias, de forma Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
70 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... pragmática. O corolário da afirmação supracitada, sobre o caráter mal desenvolvido do país, era a não condenação do capital estrangeiro que deveria ser incorporado como forma de proporcionar condições para que a questão social pudesse ser plenamente enfrentada. A esquerda tradicional , caracterizada como ético-udenista devido à visão moralista do mundo, reproduzia um nacionalismo anacrônico que observava, em qualquer investimento estrangeiro, a ação do imperialismo, terminando por confundir independência nacional com isolamento (CARDOSO, 1990a, p. 58). Cardoso vai além ao afirmar que essa postura fazia com que a esquerda ficasse impossibilitada de observar as mudanças que ocorriam no mundo socialista e fosse incapaz de propor reformas ao estado intervencionista, terminando por defender privilégios da burocracia como se fossem os interesses da população. Nesse sentido, o nacionalismo seria refutado em prol de uma perspectiva internacionalista, ou seja, interdependente. Ser de esquerda, no Brasil, sempre foi sinônimo de ser nacionalista, isto é, a favor do desenvolvimento nacional e do fim da dependência política, econômica e cultural em relação às grandes potências capitalistas. Os social-democratas brasileiros não têm por que negar essa tradição. Mas precisam atualizá-la. Num mundo cada vez mais integrado, desenvolvimento não rima com isolamento. País independente, hoje, significa país capaz de defender seus próprios interesses dentro de um relacionamento crescente com o mercado internacional e com o capital estrangeiro (CARDOSO, 1990a, p. 37). Cardoso vai além ao afirmar que essa postura fazia com que a esquerda fosse incapaz de observar as mudanças que ocorriam no mundo socialista e fosse incapaz de propor reformas ao estado intervencionista, terminando por defender Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 71 privilégios da burocracia como se fossem os interesses da população. Assim, a junção ao capital estrangeiro era um importante dispositivo para a modernização da economia, conjugada à revolução educacional que deveria ocorrer desde o primeiro grau à universidade de forma a democratizar o acesso e pôr fim ao analfabetismo para que milhões de brasileiros pudessem exercer de forma plena seus direitos como cidadãos. Cardoso propõe a integração subordinada ao capital internacional, nega a possibilidade de uma saída autonomista e nacionalista e propõe reformas com o objetivo de aperfeiçoar o capitalismo dependente, pois o dilema crucial estava circunscrito à herança colonial, patrimonialista, irracional e pré-moderna. Dulci (2010) afirma que Cardoso foi um dos principais expoentes da cultura política brasileira durante os anos 1960-1980 em torno da condenação do nacional-desenvolvimentismo e da proposição de uma saída liberal no âmbito do PSDB quando o partido assume o Executivo nacional em 1995. O governo FHC colocou em prática o projeto político constituído pelo PSDB, partido criado por Fernando Henrique Cardoso no final dos anos 1980. Este projeto tinha como seus dois objetivos mais importantes a democracia política e a instituição de uma economia de mercado (BARBOZA FILHO, 1995). Com essas duas medidas a privatização do Estado seria plenamente derrotada, pois o Estado teria o seu peso deletério diminuído e a nação seria incorporada pelo mercado (BARBOZA FILHO, 1995). Em artigo publicado em 1998 no qual defendia as medidas tomadas em torno da reforma do Estado, Cardoso afirmava que tais medidas tinham como objetivo reconstruí-lo, pois a gestão particularista no Brasil seria responsável por este não dar respostas efetivas à cidadania. A transformação do Estado brasileiro em indutor e Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
72 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... regulador se tornava uma tarefa fundamental para colocar o país nos rumos do mundo global e para tornar a sociedade brasileira mais democrática. Ao invés do Estado empresário, que seria marcado por uma tradição centralizadora, interventora, patrimonialista e pouco eficiente, seria necessário instituir uma gestão gerencial, responsável por universalizar o acesso ao público, criando um espírito meritocrático na burocracia além de, fundamentalmente, democratizar o Estado (CARDOSO, 1998). Cardoso concedeu entrevista a Roberto Pompeu de Toledo quando se encaminhava para o encerramento de seu primeiro mandato como presidente da República. Nessa entrevista, afirma de forma categórica que foi ele o responsável pela parte referente à reforma do Estado quando da criação do programa do PSDB: Primeiro, vamos à filosofia. Quando escrevemos o programa do PSDB, eu me incumbi dessa parte. Foi no governo Sarney. Escrevi que nosso problema não é nem Estado mínimo nem de Estado máximo, mas de Estado necessário. Era uma maneira de sair da entaladela sem entrar na ideologia. Depois, quando tomei posse no Ministério da Fazenda, tive de enfrentas a questão das privatizações (CARDOSO; TOLEDO, 1998, p.287). O Estado deveria, portanto, ser diminuído porque seria sempre incapaz de oferecer solução aos problemas da maioria, somado à sua privatização , sobretudo durante o regime militar, o que seria responsável pelo processo de exclusão social. Por meio da análise de elementos da experiência de FHC como presidente da República entre 1995 e 2002 é possível observarmos continuidades de suas teses sobre o desenvolvimento dependente-associado e do seu pensamento político, sobretudo no que se refere a demarcação do Estado, por meio da tese do patrimonialismo, como o principal dilema Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 73 brasileiro, que era a justificativa intelectual para o projeto de reforma do Estado: “No lugar da gestão burocrática e privatista seria criada a gestão gerencial, responsável por promover um espírito de mérito na burocracia, retirando os privilégios e universalizando o acesso à população” (RIBEIRO, 2020, p. 73). A sua experiência como presidente da República fornece evidências empíricas acerca da conversão de sua teoria do desenvolvimento dependente-associado em prática política e de economia política. FHC foi ministro da Fazenda do governo Itamar Franco (1992-1994). Em 1994, com a implantação do Plano Real, que teve importante efeito no controle da inflação acelerada, FHC candidatou-se e foi eleito presidente. Contudo, é importante matizar essa discussão do ponto de vista dos estudos de história do pensamento político, que abordam a complexidade da relação entre teoria e prática na obra de Fernando Henrique Cardoso. Gonçalves (2018) problematiza o argumento comumente atribuído a FHC sobre a tendência de buscar articulações ou rupturas entre o seu legado intelectual e sua atuação política, ou seja, a relação entre teoria e prática em intelectuais influenciados pelo marxismo ou vinculados à transformação estrutural da sociedade através da ação política das classes trabalhadoras. Trata-se se analisar, “como se deu o processo complexo e dialético de imbricação entre teoria e prática neste autor ao longo de boa parte de sua trajetória” (GONÇALVES, 2018, p. 13). A sua pesquisa mostra que Cardoso promoveu, no final da década de 1970, um distanciamento e uma desconfiança com relação às visões da esquerda e das causas populares. Resistindo à ideia de ruptura alimentada pela esquerda, que levaria à deterioração democrática, Cardoso passou a defender de forma consistente a institucionalidade democrática para responder à complexidade dos desafios políticos. O sociólogo demonstrou ceticismo quanto à viabilidade de transformações Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
74 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... estruturais no Brasil, o que pode ser explicado pela junção entre sua origem de classe, a descrença no potencial das camadas laboriosas, suas elaborações teóricas anteriores e o contexto histórico do Brasil (GONÇALVES, 2018). Considerando as relações entre teoria e prática política, defendemos o argumento de que, embora tenha dado continuidade ao combate à inflação herdada do Nacional-Desenvolvimentismo Autoritário (1964-1985), durante seus dois mandatos, FHC aprofundou as reformas pró-mercado (abertura comercial, privatização, desregulamentação financeira, liberalização da conta de capital, enxugamento da máquina estatal, flexibilização da CLT/1943, austeridade fiscal). É importante salientar que tais reformas foram iniciadas na gestão de Fernando Collor de Mello (1990-1992), de forma atabalhoada e sem a construção de uma coalizão no Congresso. Um exemplo crítico foi o tratamento de choque do Plano Collor, que confiscou as cadernetas de poupança, realizou o congelamento de preços e salários, a desindexação da economia e reduziu a quantidade de dinheiro em circulação para desacelerar a inflação (PINHO, 2019). A partir da exequibilidade prática de sua teoria da dependência, particularmente a vertente do desenvolvimento dependente-associado, é importante analisar empiricamente o experimento do governo FHC nos anos 1990, o que inviabilizou um projeto nacional de emancipação popular. Seu governo tentou demolir o legado institucional da Era Vargas e do nacional-desenvolvimentismo (1930-1980), que garantiu taxas de crescimento do PIB, da renda per capita, impulsionou a industrialização e a modernização do aparato produtivo. O fato é que a social-democracia de FHC, ao conceber o Estado essencialmente como patrimonialista, burocrático e intervencionista, sucumbiu diante das políticas de austeridade Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 75 fiscal preconizadas pelo Consenso de Washington e pelos interesses imperialistas dos EUA. Nos termos de Bresser-Pereira (2014, p. 300), delineou-se um pacto liberal-dependente no qual perdeu-se a ideia de nação 6 . O Brasil retrocedeu à condição semicolonial anterior à revolução modernizadora de Getúlio Vargas de 1930. Reforçaram-se os laços de dependência e subalternidade diante do cenário internacional. A economia sofreu um processo de reprimarização, com o predomínio de commodities (petróleo, minério de ferro, soja, suco de laranja, carne, café) na pauta exportadora. A indústria cada dia mais decadente perdeu vigor e dinamismo. Notabilizando a ausência de uma estratégia nacional de desenvolvimento, a agenda de reformas neoliberais de FHC atendeu aos interesses do capitalismo financeiro global, reforçou a especialização regressiva e a dependência econômica na divisão internacional do trabalho. Sob os auspícios da austeridade fiscal (contração do gasto público) e monetária (juros altos), a desindustrialização do parque produtivo, a ausência de uma política ativa de mercado de trabalho com valorização do salário-mínimo, foram marcas do governo FHC. Ao final do seu mandato, o presidente entregou um país depauperado e dependente, com inflação e dívida pública elevadas, endividamento externo, falta de reservas cambiais, subordinação ao FMI, escassez de investimento 6 Nesse sentido, Bresser-Pereira (2010, p.43) argumenta: “No entanto, não foi a interpretação nacional dependente, mas a interpretação da dependência associada que predominou entre os intelectuais latino-americanos entre as décadas de 1970 e 1990. Nesse período, os intelectuais e políticos de esquerda latino-americanos concentraram sua atenção nos problemas da democracia e da justiça social problemas que eram de fato prementes mas, em uma compensação perversa, convertidos do nacionalismo para o cosmopolitismo, perderam seu conceito de nação”. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
76 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... público em infraestrutura, aumento da extrema pobreza e do desemprego (PINHO, 2019; 2020). Considerações finais Como sustentamos neste artigo, as interpretações do CEBRAP e de Fernando Henrique Cardoso, em particular, foram decisivas para reproduzir um senso comum de que os problemas brasileiros estavam radicados no Estado e não na dominação externa do imperialismo, ou interna, exercida pela burguesia e suas frações. Conjuntamente, as teses do sociólogo foram decisivas para marginalizar as interpretações crítica, revolucionária e nacionalista que, cada qual a seu modo, procuravam interpretar os dilemas brasileiros a partir do ponto de vista da massa de expropriados, nas cidades e no campo, que possuíam um projeto político nacionalista e emancipatório. Além de construir uma leitura crítica das teses de Cardoso, também defendemos a necessidade teórica e política de utilizar as interpretações marginalizadas pelo sociólogo por dois motivos: o primeiro é a possibilidade que elas fornecem de analisar a realidade brasileira a partir do ponto de vista da massa de expropriados do acesso à riqueza, à cultura, aos direitos sociais constitucionalizados e ao poder; o outro motivo é a dimensão política que fornece condições para a construção de um projeto emancipatório, nacional e popular. Como exemplo das duas possibilidades ofertadas pelas interpretações críticas, revolucionárias e nacionalistas, citamos elementos da obra de Florestan Fernandes. Para Florestan (1982, 2006), a burguesia brasileira está fadada à contrarrevolução, o que impedia qualquer possibilidade de ser realizada uma revolução dentro do capitalismo, tendo como bandeira o nacionalismo Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 77 revolucionário, e no sentido da instituição de um Estado democrático. Esse impedimento ocorre porque a classe dominante está enredada num processo alienante, reproduzido a partir de um particularismo cego que impede a construção de uma visão ampla e crítica sobre a situação brasileira e seu papel histórico. Por conta disso, suas ações transformadoras acabaram ocorrendo apenas no âmbito econômico. A interpretação do sociólogo paulista tem caráter crítico e negador do sistema, voltado para os dominados, focado na luta de classes e na saída revolucionária para redimir as mazelas produzidas pela dupla articulação entre dominação autocrático-burguesa e imperialismo. A categoria de autocracia mostra-se central para interpretar o Brasil contemporâneo, uma vez que o sistema político se configura, a cada dia, mais fechado em um modelo oligárquico para impedir que possa emergir a mudança social em torno de novas juventudes, religiosidades, transformações nas classes trabalhadora e média e formas inovadoras de organização política e participação (DOMINGUES, 2017, pp. 8). A autocracia, contudo, deve ser teorizada como uma categoria de alcance global e não apenas como característica do capitalismo dependente, pois vivemos em um sistema pautado pela governamentalidade autocrática (SILVA, 2020). Desse modo, com base no conceito de autocracia, procuramos sustentar, por exemplo, que o PT, por meio de seu pragmatismo desenfreado (MIGUEL, 2019) e da incorporação da lógica neoliberal em suas políticas públicas (DOMINGUES, 2017), transformou-se em partido da ordem , pois não rompeu com o domínio autocrático-burguês sobre o Estado, o que terminou sendo crucial para sua retirada do poder por meio do golpe parlamentar em 2016 (SANTOS, 2017). No entanto, reconhecemos a extrema dificuldade de um partido de centro-esquerda, dotado de um programa de Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
78 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... governo nacional-popular-democrático, de efetuar uma ruptura com as pressões sistemáticas impostas pela globalização financeira atrelada à autorregulação dos mercados (POLANYI, 2000). É uma lógica econômica parasitária orientada para o aumento da rentabilidade dos investidores/acionistas, que defende cortes profundos em políticas públicas, além de ser cotidianamente retroalimentada pelos economistas ortodoxos e pela mídia oligopolista. Sem recorrer ao projeto socialista, pautado na coletivização dos meios de produção, bem como rejeitando a articulação dos trabalhadores enquanto classe (PRZEWORSKI, 1989, 2003), o governo do PT, ainda que operando nos marcos da globalização financeira, que impõe profundos obstáculos estruturais às economias políticas, tentou levar a efeito um projeto nacional de desenvolvimento. Forte ênfase foi conferida ao fortalecimento do mercado interno, à inserção internacional competitiva, à retomada da industrialização e à promoção de políticas públicas de combate à extrema pobreza e à histórica desigualdade estrutural brasileira. Após a saída do PT, o regime autocrático-burguês levou a cabo uma série de medidas que foram decisivas para a concentração ainda maior da riqueza, da cultura e do poder junto às classes dominantes, como a reforma trabalhista e o teto de gastos, institucionalizados durante o governo do conspirador e traidor Michel Temer (MDB). Sob o governo Bolsonaro (sem partido), os ataques às conquistas sociais da Constituição Federal de 1988, às instituições democráticas (Tribunal Superior Eleitoral, Congresso, Supremo Tribunal Federal), à imprensa e manifestações em defesa da intervenção militar, como foi o caso do 07 de setembro de 2021, tornaram-se ainda mais fortes, enquanto a esquerda mostra-se fragmentada, apática e sem um projeto de enfrentamento ao domínio autocrático-burguês. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 79 Trata-se da radicalização do modelo da autocracia burguesa, nos termos de Florestan Fernandes. Os exemplos são a aprovação da reforma da previdência e as constantes tentativas de aprofundamento da reforma trabalhista de 2017 (precarização das relações laborais, trabalho aos domingos, não reconhecimento de vínculo empregatício entre as plataformas digitais e os entregadores). As propostas de privatização de empresas públicas estratégicas como Correios, Petrobras e Eletrobras aventadas pelo ministro da Economia de filiação ultraliberal, Paulo Guedes, desferem um golpe letal na soberania nacional. Do ponto de vista normativo, a categoria de revolução democrática contém elementos decisivos de um programa político para a esquerda que tenha como base uma efetiva transformação da realidade, esquecida pelo PT quando assumiu a Presidência da República em 2003, por conta da necessidade de efetuar alianças com setores arcaicos e conservadores para a governabilidade. A sociologia crítica e pública de Florestan e a tradição crítica, revolucionária e nacionalista de interpretação do Brasil, possuem um programa de transformação profunda da realidade que necessita ser reabilitado pela esquerda a fim de que ela possa oferecer alternativas efetivas para combater a autocracia burguesa, a dependência econômica de commodities e a lógica perversa do capitalismo financeiro rentista, de curto prazo e improdutivo (DOWBOR, 2017). O recrudescimento do autoritarismo no plano do regime político, a agenda de austeridade e a dissolução dos fundamentos da Constituição Federal de 1988 evidenciam, na linguagem de Florestan Fernandes, o caráter autocrático de uma burguesia que passa a exercer formas privatistas e exclusivistas de exercício do poder político. Para esta elite, o regime político democrático é mera conveniência, na medida Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
80 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... em que pode ser vilipendiado quando os seus interesses são contrariados por pautas redistributivas, de valorização das empresas públicas e de redução da influência do imperialismo estadunidense nos rumos da economia brasileira. O modelo autocrático idealizado pelo autor, e que serve de importante ferramental teórico-conceitual para analisar a economia política do Brasil contemporâneo, promove a dissociação pragmática entre desenvolvimento capitalista e democracia, ao mesmo tempo em que fomenta uma associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia (FERNANDES, 1976, pp. 292). Referências BARBOZA FILHO, Rubem. FHC: Os Paulistas no Poder In: AMARAL, Roberto (coord). FHC : Os Paulistas no Poder. Niterói-RJ: Casa Jorge Editorial, 1995, p. 93-155. BAPTISTA, Kátia. O CEBRAP nos anos setenta e a emergência de uma nova interpretação do Brasil. Revista Perspectivas , São Paulo, v. 37, p. 225-248.jan/jun, 2010. BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (org.) A sociologia de Pierre Bourdieu . São Paulo: Olho d’água, 2008, pp.112-143. BRESSER-PEREIA, Luiz Carlos. As três interpretações da dependência. Revista Perspectivas , São Paulo, v. 38, p. 17-48. jul/dez, 2010. BRESSER-PEREIA, Luiz Carlos. A Construção Política do Brasil : Sociedade, Economia e Estado desde a Independência. São Paulo: Editora 34, 2014. CHAVES, Wanderson da Silva; CATTAI, Júlio Barnez Pignata. “Transição política” e ditadura no Brasil: os anos 1970 e seus agendamentos políticos e intelectuais. Revista Brasileira de História . São Paulo, v. 39, n 82, p.199-219, 2019. CARDOSO, Fernando Henrique. Empresário Industrial e desenvolvimento econômico no Brasil . São Paulo: Difusão Européia Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
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86 Fernando Henrique Cardoso e a marginalização... Resumo: Neste artigo, apresentamos as teses de Fernando Henrique Cardoso sobre o regime civil-militar e as críticas às interpretações nacionalistas e revolucionárias, que tiveram papel decisivo para  naturalizar  uma concepção que demarca, unicamente no Estado, lócus  de todos os nossos dilemas sociopolíticos. A sua experiência como presidente da República fornece evidências empíricas acerca da conversão do seu pensamento político e de sua teoria do desenvolvimento dependente-associado em prática política e de economia política, nos anos 1990, quando executou o receituário neoliberal dito pelo Consenso de Washington e pelos interesses imperialistas dos EUA. Assim, defendemos a retomada sistemática das leituras sobre o projeto emancipatório nacional e popular que foram marginalizadas pelas críticas do sociólogo. Palavras-chave: Fernando Henrique Cardoso; interpretações críticas, revolução, projeto nacional   Abstract: In this article, we present Fernando Henrique Cardoso's theses the civil-military regime and the criticisms of nationalist and revolutionary interpretations, which played a decisive role in naturalizing a conception that marks, solely in the State, the locus of all our sociopolitical dilemmas. His experience as President of the Republic provides empirical evidence about the conversion of his political thought and his theory of dependent-associated development into political practice and political economy, in the 1990s, when he carried out the neoliberal prescription stated by the Washington Consensus and for US imperialist interests. Thus, we defend the systematic resumption of readings on the national and popular emancipatory project that were marginalized by the sociologist's criticisms. Keywords: Fernando Henrique Cardoso, critical interpretations, revolution, national project.   Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024
M. A. F. Ribeiro e C. E. S. Pinho 87 Recebido para publicação em 07/03/2022 Aceito em 11/05/2023 ACESSO ABERTO Copyright: Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024