Impactos sociais da Covid-19 para a população negra: uma perspectiva de análise a partir da implementação do Auxílio Emergencial André Sena Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil https://orcid.org/0000-0002-5598-0072 andresennas0@gmail.com Introdução A pandemia da Covid-19 que se abateu sobre o mundo a partir de 2020 trouxe uma série de desafios para as experiências no campo das políticas públicas. No Brasil, as desigualdades que demarcam a formação social do país foram pano de fundo para um cenário mais adensado de crise social estrutural, cujos efeitos são observados na ampliação da precarização da vida, em múltiplos campos: econômico, social, cultural, saúde (saneamento, segurança...), dentre outros. A pandemia do novo coronavírus escancarou as desigualdades sociais, de classe, raciais e de gênero, expondo o sistema capitalista em toda sua perversidade perante o agravamento da barbárie social. Quase três anos após o início da pandemia da Covid-19, diversas pesquisas, como os Boletins Políticas Sociais: acompanhamento e análise n.º 28 (2021) e n.º Revista de Ciências Sociais Fortaleza, v. 55, n. 1, mar. 2024 DOI: 10.36517/rcs.54.2.a05 ISSN: 2318-4620
Impactos sociais da Covid-19… 29 (2022) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), têm demonstrado as maiores vulnerabilidades à contaminação e à mortalidade pelo vírus, bem como nos efeitos sobre emprego e renda, quando os marcadores sociais da diferença de gênero, raça e classe são adicionados ao prisma analítico da conjuntura pandêmica. De acordo com Santos (2020), os efeitos mais perversos são sentidos pelas populações que apresentavam condições de desigualdade em virtude de sua raça ou etnia, gênero e classe social. Para conter os impactos econômicos e sociais da crise sanitária, políticas públicas de rendas básicas emergenciais, garantindo segurança alimentar e acesso ao consumo básico, foram aprovadas ao redor do mundo. Essas medidas não contributivas de proteção social, segundo cada país, sustentam-se em leis, decretos executivos e regulamentos ministeriais. Isso posto, não deveria surpreender que grupos socialmente vulnerabilizados sejam mais suscetíveis aos impactos deletérios da pandemia de Covid-19, mas, ao contrário, deveria ser esperado e, dessa forma, passível de intervenções políticas específicas que minimizassem tais impactos. Contudo, levantamentos em 2020 mostravam que pessoas negras sofriam desigualmente os impactos advindos da crise sanitária-social-econômica inaugurada pela Covid-19. Nesse sentido, ao chegar ao Brasil, a pandemia da Covid-19 encontra uma sociedade profundamente desigual, e é a partir deste terreno que devemos essa pesquisa se inicia. Isso posto, o artigo tem por objetivo refletir e analisar os impactos sociorraciais aprofundados durante a pandemia da Covid-19 para a população negra a partir da implementação da política pública de Auxílio Emergencial (AE). Pôr a população negra brasileira em destaque, realizando um recorte racial entre os beneficiários do AE, nossa pretensão recai nos elementos historicamente sintomáticos da realidade social concreta dessa população, como moradias precárias, renda
André Sena 200 mais baixa quando comparadas à população branca, acesso à saúde precarizado. Excetuando aqui menção direta a outros elementos que, concomitantemente, estruturam a vida desse grupo populacional. O artigo está ancorado na discussão de análise de políticas públicas e geração de desigualdade, as ideias que norteiam a construção de uma política pública e suas consequências não previstas diante de suas finalidades no contexto brasileiro. É importante frisar que a Covid-19 se espalha numa realidade estruturalmente desigual e racista, com uma população que naturalizou a invisibilização das dores e das mortes de determinados corpos a partir da agência constante do necropoder (MBEMBE, 2016) e naturalizou corpos brancos nos espaços de poder e privilégio. A justificativa desta pesquisa reside na possiblidade de análise, a partir de uma perspectiva crítica dos impactos da implementação de políticas públicas que têm como beneficiários grande quantidade de pessoas negras maioria inconteste entre os vulnerabilizados no Brasil –, a despeito de a política não ter essa população como público-alvo prioritário. O contexto da Covid-19 escancarou a necessidade de políticas públicas como o Auxílio Emergencial para que os sujeitos vulnerabilizados tenham condições de subsistir. Idealmente, esperamos que as reflexões levantadas ao longo deste texto possam ser úteis para que, no futuro, eventuais crises que tenham por respostas políticas públicas acuradas diante da realidade social de tantos brasileiros e brasileiras. Permitindo, assim, que a agência do poder pública seja efetivamente um caminho para a melhoria da qualidade de vida no país. Este artigo se divide então em cinco partes, excetuando a Introdução . Na primeira, apresentamos os procedimentos metodológicos empregados. Na segunda, pontuamos que os impactos da crise socioeconômica da Covid-19 se constroem, em anos recentes, sobre um desmonte institucional das políticas de combate ao racismo no âmbito do Governo
Impactos sociais da Covid-19… Federal, principalmente, centrado em discursos do então Presidente Jair Messias Bolsonaro (2019-2022) e outros membros de seu governo. Num terceiro momento, focamos na política pública de distribuição de renda, o Auxílio Emergencial, e sua implementação que suscitou uma série de impactos indesejados para a população negra. Na quarta seção, sublinhamos os impactos sociorraciais gerados pela implementação do AE, analisando a partir de um viés crítico, como a política criada no contexto pandêmico amparou (ou não) adequadamente os indivíduos que mais necessitavam. Por fim, apresentamos as considerações finais, urgindo por um papel mais ativo da figura do Estado para mitigar os impactos perversos sobre aqueles que são mais vulnerabilizados. Procedimentos Metodológicos O presente texto apresenta caráter exploratório e descritivo, visto que a complexidade dos impactos sociais da implementação de política pública de distribuição de renda tão recente ainda está sendo escrutinada e analisada. O cunho recente do fenômeno social aqui apresentado demanda ainda maiores e mais aprofundadas pesquisas. Isso posto, realizou-se o levantamento bibliográfico nas bases Scielo e do IPEA uma vez que essas bases dispõem de artigos e relatórios científicos publicados que abordam o tema aqui tratado. Não foram utilizadas outras bases visando uma proposital restrição, devido ao número limitado de páginas. Quanto aos procedimentos metodológicos, a partir de uma metodologia qualitativa, destaca-se dois principais eixos de impacto da política pública de renda emergencial adotada: socioeconômico e sanitário. Analisa-se a implementação do Programa Auxílio Emergencial com o intuito de identificar os impactos sobre a população negra, nos referidos eixos. Os
André Sena 202 dados foram tratados por meio de análise crítica, tendo por base a Análise de Políticas Públicas. Deu-se foco ao recorte raça/cor, indo ao encontro das reflexões sobre a necropolítica vivida no Brasil durante a pandemia da Covid-19. O levantamento de dados nos permitiu traçar o perfil das vicissitudes vividas pelos beneficiários da política do Auxílio Emergencial. Por se tratar de um fenômeno social recente, optou-se por se restringir nas bases citadas em que a temática dos artigos coadunava com o objetivo do artigo. Na base Scielo, foram utilizadas as seguintes palavras chaves em dois momentos distintos: focando na política pública, utilizou-se “auxílio emergencial” e no eixo relações étnico-raciais foram utilizadas “população negra” e “covid-19”. O objetivo fora encontrar fontes bibliográficas que focassem no cruzamento entre o auxílio pago pelo Governo Federal, seus impactos e a população negra. A busca se restringiu ao período de março de 2020 a dezembro de 2022. Na Scielo , foram encontradas, no primeiro momento, 12 (doze) artigos, todos em português, sendo 4 (quatro) deles de uma mesma revista, a Revista de Administração Pública . Dos doze, 6 (seis) foram publicados em 2022 e 3 (três) em 2021 e 2020, respectivamente. 9 (nove) deles estavam concentrados na área temática de Ciências Sociais Aplicadas, 2 (dois) em Saúde e 2 (dois) em Ciências Humanas. Desses doze encontrados na base Scielo, apenas dois tratavam efetivamente da implementação do Auxílio Emergencial: MARINS et. al. Auxílio Emergencial em tempos de pandemia, da Sociedade e Estado (2021) e CARDOSO, Bruno Baranda, A implementação do Auxílio Emergencial como medida excepcional de proteção social, da Revista de Administração Pública (2020). Os demais tratavam desde o desenho da política, sua formulação, até os dilemas morais para a gestão pública, passando pelos efeitos sobre a política de transferência de renda no Brasil.
Impactos sociais da Covid-19… Num segundo momento, ainda na base Scielo, utilizando as palavras-chave “população negra” e “covid-19”, temos 11 (onze) artigos, todos disponíveis em português. Dois foram lançados na Revista Ciência & Saúde Coletiva . Dos doze encontrados, oito estão na área temática da Saúde. Após leitura dos resumos dos artigos, utilizamos como critério de exclusão a relação e menção do Auxílio Emergencial e polução negra, excluindo os que focavam mormente no eixo saúde-covid-19, tangenciando ou mesmo não abordando o tema da política pública do Auxílio Emergencial. Feito isso, nove artigos foram deixados de lado enquanto fontes possíveis por não atenderem ao critério de cruzamento elencado. Foram, no entanto, dois que atendiam ao critério: SANTOS, Fernanda Barros; SILVA, Sergio Luiz Baptista da. Gênero, raça e classe no Brasil: os efeitos do racismo estrutural e institucional na vida da população negra durante a pandemia da covid-19 , da Revista de Direito e Práxis (2022) e GOES, Emanuelle Freitas, RAMOS; Dandara de Oliveira; FERREIRA, Andrea Jacqueline Fortes. Desigualdades raciais em saúde e a pandemia da Covid-19 , da revista Trabalho, Educação e Saúde (2020) . Da base de dados do IPEA, utilizamos os documentos: Boletins Políticas Sociais: acompanhamento e análise n.º 28 (2021) e n.º 29 (2022) que trazem dados consistentes sobre os impactos e mudanças sentidas pela população vulnerabilizada durante a pandemia. Esses boletins foram escolhidos dentre os relatórios produzidos pelo IPEA por sua preocupação com os efeitos sociais da pandemia e sobre a atividade econômica, bem como com a igualdade racial durante o período, tendo todo um capítulo dedicado a isso. Ademais, inclui-se no levantamento o documento legal que conforma o desenho da política: Lei 13.982 (BRASIL, 2020) e matérias de jornais nacionais que tratavam da política em foco, abordando seus problemas de implementação no Brasil.
André Sena 204 Outras fontes utilizadas são I) resultado da participação contínua enquanto pesquisador no Diretório de Pesquisa Desigualdade, Interseccionalidade e Política Pública; II) fontes consultadas a partir das referências dos textos elencados acima por meio do levantamento bibliográfico; e III) fontes previamente catalogadas de artigos anteriormente publicados pelo autor. Desse modo, dado o acima exposto, este artigo parte da hipótese: será que a população negra, historicamente subalternizada no Brasil, conseguiu acessar a política de modo efetivo? Considerando essa problematização, focamos, então, na fase da implementação da política e nas desigualdades raciais geradas ou aprofundadas a partir do dado contexto. Aqui, utilizamos a categoria racial de maneira indissociável ao social visto que os impactos se desdobram na realidade material dos negros e das negras brasileiros e brasileiras. Com isso, utilizamos, por vezes, o termo impacto sociorracial que é traduzido em instrumentos de fomento (ou não) das desigualdades vividas por parte dos cidadãos e cidadãs negros e negras diante da ação do Estado. A desigualdade racial no pré-pandemia da Covid-19 Afirmar que o racismo no Brasil é sutil, significa fechar os olhos para a crueldade a que foi historicamente submetida a população negra. Verificam-se dois mecanismos que se conjugam, traduzindo algumas facetas do racismo brasileiro. Por um lado, teme-se a “quase invisibilidade” da questão racial, entendida por parte ainda substancial da sociedade como “assunto dos negros”. Embora os inúmeros dados demonstrativos da situação injusta e crítica vivenciada pelos negros no Brasil venham ganhando notoriedade, no bojo dos debates sobre a implementação de políticas afirmativas.
Impactos sociais da Covid-19… Por outro lado, coloca-se a crença no mito da democracia racial 53 e na ideia de que o Brasil teria superado a escravidão e o racismo por meio do processo de miscigenação que, por sua vez, nos teria livrado de problemas existentes apenas em outras paragens, tais como Estados Unidos ou a África do Sul (PACHECO; SILVA, 2007). Como observado, a pandemia da Covid-19 não começa sobre um pano de fundo vazio. O Brasil, um país marcado pelo racismo estrutural (ALMEIDA, 2018), figura-se enquanto lugar onde o racismo impacta a reprodução das formas sociais e da vida quotidiana das pessoas negras. Almeida (2018) depreende com isso que a cor/raça impacta as pessoas negras no Brasil enquanto uma questão de raça conectada com o processo de reprodução das formas sociais e das estruturas. Neste caso, o racismo condiciona e estrutura a vida de negros e negras e, enquanto ideologia, constitui a maneira como se experimenta a realidade circundante. É este contexto de racismo estrutural que torna a população negra particularmente vulnerável à pandemia da Covid-19, seja no que tange aos efeitos em termos de saúde (morbimortalidade), seja no que diz respeito aos efeitos econômicos, os quais podem também resultar em mortalidade pela fome, pela pobreza e pela falta de acesso a condições mínimas de acesso à saúde (GOES; RAMOS; FERREIRA, 2020). Nas questões de saúde, depara-se com a ocorrência de alguns dos principais sintomas da Covid-19 e da demora na recuperação serem mais severos na população negra. Cabe destacar que a pandemia da Covid-19 e a crise social e sanitária em curso tiveram e continuarão tendo efeitos na saúde da população que transcendem o contágio ou o óbito pelo vírus. A 53 Do ponto de vista sociológico, a democracia racial é uma construção falsa de um passado nacional imaginado, uma falsa ideologia sustentada pela suposta ausência de preconceito e de discriminação racial no Brasil, que se constituiu principalmente depois da publicação de Casa-Grande e Senzala de Gilberto Freyre, em 1933.
André Sena 206 saturação do sistema de saúde para responder à pandemia implicou em obstáculos inéditos ao serviço de saúde que afetam precipuamente a população negra mais vulnerável, aprofundando a desigualdade preexistente. No que concerne ao panorama socioeconômico, segundo dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, pouco antes do início da pandemia, as pessoas de cor ou raça preta ou parda representavam 57,7 milhões de pessoas na força de trabalho do país; enquanto a população de cor ou raça branca totalizava 46,1 milhões de pessoas. Logo, os pretos representavam 25,2% a mais do que os brancos. Contudo, a maior proporção absoluta não equivale a superioridade no rendimento ou na ocupação de cargos de trabalho. Além disso, a distribuição por atividades nos mostra que 60,8% das atividades agropecuárias, 62,6% da construção civil e 65,1% dos serviços domésticos são realizados por pretos e pretas (IBGE, 2019). Por outro lado, as atividades mais bem remuneradas como as atividades atreladas à administração pública, educação superior e saúde são majoritariamente ocupadas por pessoas de cor ou raça branca. No que tange à renda, os brancos ganhavam 73,9% a mais quando comparados a pretos ou pardos (IBGE, 2019). Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), dos 8 milhões de pessoas que perderam o emprego entre o e o trimestre de 2020, ou seja, no início da pandemia de Covid-19 “6,3 milhões eram negros e negras, o equivalente a 71% do total” (DIEESE, 2020, p.3). Além disso, a persistência de desigualdade entre negros e brancos ficou ainda mais latente na pandemia, assim: A taxa de desocupação entre esses trabalhadores é sempre maior, mas a pandemia conseguiu criar ainda mais adversidades para essa população. Em situação vulnerável de renda, moradia, sem possibilidade de aderir ao isolamento, necessário
Impactos sociais da Covid-19… para evitar a propagação do coronavírus, trabalhadores e trabalhadoras negras foram obrigados a continuar a busca por trabalho diante da necessidade de sobrevivência, em longos deslocamentos dentro de transportes públicos nas grandes cidades. (DIEESE, 2020, p.3-4). Entende-se, portanto, que o recorte racial melhora a compreensão de como a pandemia afeta de maneira diferenciada grupos específicos da sociedade. Segundo o IBGE (2019), a população brasileira é composta de 56% de pretos e pardos, e essa mesma população preta representava 75% dos pobres do país, classes D e E, enquanto a população branca representa os 70% mais ricos. Além disso, essas pessoas vivem uma vida nua 54 em territórios (favelas) que carregam a baixa infraestrutura e a vulnerabilidade social. Logo, a pandemia também representou um desafio maior desde o início para quem se encontrava em situações sociovulneráveis latentes. Em termos políticos, no governo Bolsonaro (2019-2022) foi observado um desmonte paulatino e constante do arcabouço institucional para o combate ao racismo. Os anos da gestão Bolsonaro que antecederam a pandemia da Covid-19 possibilitam vislumbrar como os negros, mulheres e as populações de baixa renda vulnerabilizadas foram menos visados enquanto público-alvo para as políticas públicas focalizadas, o que, por sua vez, gerou impactos sociorraciais, sanitários e econômicos quando a pandemia de Covid-19 chegou (IPEA, 2021). As desigualdades raciais e sociais existentes no Brasil pré-pandêmico e a gestão necropolítica do Governo Federal em lidar com a pandemia refletiram numa conjuntura 54 Segundo Giorgio Agamben, em resumo, vida nua é uma expressão que retira do direito romano antigo, do antigo homo sacer , o homem sagrado: aquele que era matável, mas não sacrificável. Quando um policial mata um menino negro em situação de rua que cometeu um delito, na interpretação de Agamben, ele não cometeu um crime, uma vez que ele matou alguém que, para sociedade, estava morto.
André Sena 208 desfavorável de condições estruturais de desigualdade que a pandemia cumpriu o papel de reforçar. Somado a isso, a nominada gestão do governo federal deliberadamente promoveu uma tentativa de desmonte da agenda de igualdade racial no campo simbólico teórico. Discursos como o do então presidente da Fundão Cultural Palmares , no Dia da Consciência Negra de 2020, reiteram esse ponto, no momento foi dito “Não existe racismo estrutural no Brasil; o nosso racismo é circunstancial ou seja, alguns imbecis que cometem o crime”; falas como essa se repetiram entre diferentes autoridades do então governo e do próprio presidente, reiterando a crítica supracitada. Observou-se um processo de desmonte das políticas de combate ao racismo e promoção da igualdade racial no Brasil que tomam, em anos recentes, um caminho triplo: 1) redução das capacidades institucionais, o que afeta as esferas organizacionais e administrativas da política; 2) um segundo movimento que acontece no plano simbólico-ideológico, reforçado a partir de 2019, quando um discurso sistemático institucionalizado retrocede à tese da democracia racial e nega a existência do racismo estrutural; e 3) o terceiro se pela estratégia de desmonte por default , na qual os tomadores de decisão não declaram abertamente a intenção de acabar com a política e utilizam como táticas o desamparo, a desassistência, e a não tomada de decisão (IPEA, 2021). O Boletim de Política Social do IPEA (2021) aponta que tal desqualificação da desigualdade racial é uma tentativa de mitigar o racismo estrutural enquanto problema público estruturante da sociedade a ser enfrentado com políticas públicas. O que ocorre, portanto, é uma tentativa de construção de uma narrativa reacionária de democracia racial segundo a qual o Brasil, enquanto um país miscigenado, não teria o racismo como problema estrutural, mas, pelo contrário, pontual. O ideário da democracia racial sustenta de forma abstrata os valores da igualdade entre brancos e negros, assim,
Impactos sociais da Covid-19… desproblematizando as desigualdades sociais entre os diferentes grupos étnico-raciais enquanto um problema público. O que se vislumbra a partir deste prisma analítico, portanto, é um movimento duplo de deslegitimação das pautas raciais enquanto estruturantes das relações sociais estabelecidas na sociedade e, simultaneamente, a fragilização do sistema de políticas de combate ao racismo ou de políticas focais voltadas para as populações negras. Quando a pandemia de Covid-19 avançou no Brasil, ela o fez sobre um sistema de proteção social diminuído, cujos níveis de desemprego e pobreza se apresentavam como alarmantes. Ao produzir efeitos nefastos não somente sobre o sistema de saúde, mas em diversas frentes da vida social, a crise sanitária teve impactos distintos a depender do grupo social atingido. Implementando desigualdades: a política pública de renda básica emergencial A adoção de sistemas de distribuição de renda para garantir o sustento das pessoas ante diversas situações de riscos ao longo do ciclo de vida constitui uma das funções essenciais da proteção social (ABRAMO; CECCHINI; MORALES, 2019). A proteção social nasceu vinculada aos riscos associados à saúde, ao trabalho e ao envelhecimento, mas tendeu a incorporar tanto o combate à pobreza e às desigualdades como novas fontes de risco que geram incerteza e afetam o bem-estar e o gozo de direitos. Desta maneira, a proteção social inclui um amplo leque de mecanismos para garantir a renda, como o seguro-desemprego ou de acidente de trabalho, os sistemas de pensões, as bolsas de estudo e os programas de transferências
André Sena 210 monetárias, com ou sem condicionalidades (NATALINO; PINHEIRO, 2020). política pública é um conceito amplo e, por isso, não tem uma definição uníssona (SOUZA, 2006). Para a autora, as políticas públicas são o conjunto de mecanismos que perfazem a intervenção estatal na realidade social, visando equacionar problemas, como falta de infraestrutura, além de aspectos relacionados à saúde, moradia, educação, emprego e renda. Pires e Gomide (2016) apontam que política pública pode ser definida enquanto “um curso de ação visando determinados resultados a partir de um conjunto de escolhas ou decisões tomadas por um governo” (PIRES; GOMIDE, 2016, p. 121). Nessa perspectiva, afirmam também que “planos, programas, projetos governamentais se constituem como políticas públicas, pois são ações decididas pelo governo visando determinados fins” (PIRES; GOMIDE, 2016, p. 122). De acordo com Santos (2020), com o avanço da ideologia neoliberal a partir da década de 1990, o mundo foi tomado por uma dinâmica em que as políticas públicas passaram a ser projetadas, implementadas e avaliadas a partir de critérios altamente economicistas, tendo por pano de fundo a (re)produção do capital. A não mitigação de problemas da desigualdade socioeconômica acarreta que os efeitos mais perversos são sentidos pelas populações que apresentavam condições de desigualdade em virtude de sua raça ou etnia, gênero e classe social. Sobre isso, Arruda e Santos (2020) escrevem: A concepção, implementação e avaliação das políticas públicas a partir de uma lógica eminentemente economicista provoca alguns fenômenos, dentre os quais (Moraes, 2002; Pochmann, 2017): (a) o direcionamento da estrutura do Estado para que seja catalisadora das atividades econômicas e “produtivas”, com foco para as atividades empresariais privadas; (b) a prevalência, na configuração das políticas públicas,
Impactos sociais da Covid-19… de critérios muito difundidos pela lógica do capitalismo neoliberal tais como os aspectos relacionados à meritocracia e eficiência, que não necessariamente podem (e devem) compor a única régua para “medir” as políticas públicas e; (c) a configuração de uma estrutura de Estado mínimo, com poucas possibilidades para intervir na realidade social (o que é algo muito problemático em países desiguais, tais como o Brasil, no qual as leis de mercado não são capazes de promover o bem-estar e a equidade social). (ARRUDA; SANTOS, 2020, p.144). Para mitigar os impactos sociais de uma crise como a social-sanitária da Covid-19, o problema repousa no perigo de negligência de aspectos crucias relativos à agenda social, à distribuição de renda àquelas pessoas que mais precisam, que se encontram em alguma situação de vulnerabilidade socioeconômica. Wolff et al. (2020) apresentam a ideia de que o vírus da Covid-19 seria igual para todos se faz falaciosa diante das estruturas sociais modernas; sabe-se que, na realidade material concreta, pessoas negras, mulheres, pobres, favelizadas corpos subalternizados historicamente perfazem o grupo mais vitimizado pelo vírus. Campos (2020) denuncia que, a despeito da necessidade de uma política pública de redistribuição de renda, vale ressaltar que a implementação de tal medida aconteceu num contexto de crise econômica e política no Brasil, sob o governo Bolsonaro (2019-2022). Além disso, a falta de coordenação e ação conjunta entre governos federal, estaduais e municipais fez com que informações desencontradas fossem passadas a população de maneira dúbia e conflituosa. Sposati (2020) completa ao afirmar que políticas públicas formuladas em tempos de pandemia pelo governo brasileiro trouxeram em seu cerne uma preocupação em priorizar a economia, marginalizando, por conseguinte, “a necessidade de amparar as pessoas mais vulneráveis e garantir com que elas subsistam, com um mínimo de dignidade, enquanto os efeitos
André Sena 212 mais deletérios do Covid-19 perdurarem no país” (SPOSATI, 2020 apud ARRUDA; SANTOS, 2020, p. 145). A pandemia apresentou um desafio à proteção social ao ampliar o número e a variedade de grupos de população afetados, obrigando o Governo Federal a repensar a cobertura efetiva dos programas existentes, como o Bolsa Família, a suficiência do apoio, o nível de financiamento e os mecanismos de acompanhamento e gestão. Além disso, levou a fazer um amplo uso das tecnologias da informação e comunicação (TIC), mas num contexto de grandes lacunas digitais. A principal política adotada e que é o foco da análise pretendida foi o Auxílio Emergencial. No dia 30 de abril de 2020, o Senado aprovou o Auxílio Emergencial, instituído pela Lei 13.982, de 2020, uma renda básica destinada a famílias de baixa renda, a beneficiários do Bolsa Família, pessoas cadastradas no CadÚnico, microempreendedores individuais, trabalhadores informais e desempregados que teriam suas rendas rebaixadas e sentiriam os impactos da pandemia. Para isso, essas pessoas deviam se enquadrar nas seguintes exigências: (i) seja maior de 18 (dezoito) anos (ii) não tenha emprego formal ativo; (iii) não seja titular de benefício previdenciário ou assistencial ou beneficiário do seguro-desemprego ou de programa de transferência de renda federal, ressalvado, nos termos dos §§ e 2º, o Bolsa Família; (iv) cuja renda familiar mensal per capita seja de até 1/2 (meio) salário-mínimo ou a renda familiar mensal total seja de até 3 (três) salários mínimos; (v) que, no ano de 2018, não tenha recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70 (vinte e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove reais e setenta centavos); e (vi)  que exerça atividade na condição de: a) microempreendedor individual (MEI); b) contribuinte individual do Regime Geral de Previdência Social que contribua na forma do caput ou do inciso I do § do art. 21 da Lei 8.212, de 24 de julho de 1991; ou c)
Impactos sociais da Covid-19… trabalhador informal, seja empregado, autônomo ou desempregado, de qualquer natureza, inclusive o intermitente inativo, inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) até 20 de março de 2020, ou que, nos termos de autodeclaração, cumpra o requisito do inciso IV (BRASIL, 2020, p.2). O valor aprovado foi uma vitória da oposição no Congresso que, diante da proposta inicial do Presidente e do Ministério da Economia de transferir R$ 200,00 (duzentos reais) por pessoa, foi de R$ 600,00 (seiscentos reais) mensais per capita , podendo ser solicitado por até dois membros da casa, ou de R$ 1.200,00 (hum mil e duzentos reais) mensais para mães solo. Inicialmente, o Auxílio seria transferido por três meses. Com a continuidade da quarentena e da contaminação da Covid-19, o benefício foi estendido para mais duas parcelas. Em seguida, aprovado para permanecer até o mês de dezembro de 2020, num valor menor de R$ 300,00 (trezentos reais). Mesmo aprovado, o Auxílio Emergencial demorou a ser pago. Enquanto medida não contributiva 55 de proteção social, sua celeridade era indispensável para garantir segurança alimentar e acesso ao consumo básico. De acordo com reportagem do Valor Econômico , de 02 de abril de 2020, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, havia afirmado que era necessário ainda esperar a aprovação de uma emenda constitucional pelo Congresso para dar mais garantias jurídicas sobre a operação e o pagamento do auxílio. O Ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, havia também afirmado que, para ser feito o pagamento, ainda era preciso 55 O regime não contributivo é uma modalidade de proteção social que provê os mínimos sociais - podendo ser por transferência monetária - para prevenir situações de pobreza e de exclusão social ou a compensar a ocorrência de determinadas eventualidades (como uma pandemia). Por exemplo, os programas de transferência condicionada de renda aprovados em caráter emergencial durante a pandemia do coronavírus (CEPAL, 2020) .
André Sena 214 esperar a aprovação da Câmara de um outro projeto do Senado que detalharia todas as categorias que estariam aptas a receber o benefício. Contudo, o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, declararam que os instrumentos necessários para colocar o Auxílio Emergencial em prática haviam sido aprovados, faltando apenas o aval da equipe econômica do presidente. Diferentemente do Bolsa Família, política descentralizada e municipalizada, o Auxílio Emergencial foi todo concentrado no Governo Federal. Inicialmente, o pagamento era feito através das lotéricas, o que levou a enormes filas e aglomerações, contrariando a principal premissa do distanciamento social. Em seguida, o Governo Federal desenvolveu o aplicativo Caixa Tem 56 , com o objetivo de centralizar todos os processos, incluindo o pagamento do benefício. Por conta de dificuldades de implementação da conta digital, dificuldades de operacionalização do aplicativo por parte dos solicitantes e por informações confusas e incompletas vindas do Ministério da Cidadania e do Ministério da Economia, inúmeras pessoas foram conseguir a aprovação no benefício e o recebimento do dinheiro na segunda ou terceira leva de pagamentos. Como Wolff et al. (2020) denunciaram, a implementação desencontrada entre os entes da federação gerou impactos que alijaram as necessidades dos indivíduos subalternizados. Além disso, diversos potenciais beneficiários da política não foram contemplados por falhas na implementação, como a obrigatoriedade de Cadastro de Pessoa Física (CPF) regularizado. 56 O Caixa Tem é um aplicativo para celular smartphone de atendimento social e transações bancárias lançado em 06 de abril de 2020. Foi criado para fornecer fundos do auxílio emergencial nos termos da Lei do Saque Emergencial do FGTS autorizada pela Medida Provisória 946, de 07 de abril de 2020.
Impactos sociais da Covid-19… Logo em seu começo, os usuários do aplicativo encontraram diversas dificuldades para entender o aplicativo e suas operações. Houve, de início, uma forte falha de comunicação entre as informações dadas pelo Governo Federal e as informações que chegavam ao público-alvo. A principal foi referente ao cadastramento dos membros da família no aplicativo. Conforme o texto aprovado, apenas dois membros da casa poderiam solicitar e receber o benefício. No entanto, o desencontro de informações levou a membros de uma família a fazer o cadastro de ambos, havendo duplicação nos CPFs e conflitos de cadastramento. Por conta disso, alguns solicitantes tiveram o auxílio negado ou ficaram com “dados inconclusivos”. A partir disso, a Caixa Econômica Federal havia informado que o aplicativo permitiria a contestação da análise e uma nova solicitação. No caso de “dados inconclusivos”, o solicitante deveria ficar atento aos possíveis motivos para tal, como: ter se colocado como chefe de família sem ter indicado nenhum outro membro dependente; não ter indicado o sexo do requerente; inserção incorreta dos dados de outro membro da casa, como CPF e data de nascimento; divergência de cadastro entre os membros da mesma casa, como indicar o CPF do dependente e este ter feito, também, um cadastro; e a inclusão de algum membro que tenha falecido. Dentre outros problemas, destacam-se, as dificuldades de acesso ao aplicativo e a inicial instabilidade no calendário de pagamento. Primeiro, é importante mencionar as dificuldades de acesso à internet por boa parte das famílias em situação de vulnerabilidade e solicitantes do benefício. De acordo com o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (2019), em área urbana, somente 83% dos indivíduos possuem acesso à internet. Além da questão da internet, podemos também mencionar a ausência de telefones celulares e eletrônicos por boa parte do público-alvo e suas dificuldades de uso.
André Sena 216 Em relação ao pagamento, o Auxílio seguiu o modelo de pagamento de outros programas sociais, como o Bolsa Família, de acordo com o mês de nascimento. A forma de pagamento em ciclos, adotada pela Caixa Econômica Federal (CEF), diminuiu o número de fraudes e amenizou as grandes filas que se formavam nas lotéricas e agências da CEF. Para o benefício, o mencionado banco adotou a transferência em contas especiais, numa poupança social digital a partir do próprio aplicativo do Caixa Tem . Contudo, a CEF não levou em consideração as desigualdades latentes do território nacional que conta com centenas de municípios sem agências bancárias, o que levou ao deslocamento em plena pandemia. Soma-se a isso a pouca familiaridade de diversas pessoas com a tecnologia de smartphones , o tipo de aparelho necessário para baixar o aplicativo e solicitar o benefício e, claro, a cobertura de internet pelo Brasil. É relevante também destacar a importância da existência do Cadastro Único na implementação do AE e da experiência do Brasil em relação às políticas de proteção social. De acordo Cardoso (2020), o CadÚnico, como instrumento comprovadamente útil na gestão de políticas de transferência de renda ao público-alvo, mostra-se como fundamental para a migração de milhares de brasileiros para outros programas sociais como ocorreu no caso da migração do Bolsa Família para o Auxílio Emergencial. O CadÚnico foi criado em 2001 sob o Decreto 3.877 e regulamentado pelo Decreto 6.135 de 2007 como um “instrumento de identificação e caracterização socioeconômica das famílias brasileiras de baixa renda” (CARDOSO, 2020, p. 1056) sendo utilizado para a seleção de beneficiários e integração de programas sociais do Governo Federal. O CadÚnico é o principal instrumento de identificação de famílias e cidadãos em situação de vulnerabilidade e/ou pobreza que antes não eram alcançados pelas bases de dados e acabavam
Impactos sociais da Covid-19… ficando fora de principais políticas sociais para o enfrentamento à pobreza. O CadÚnico é caracterizado, principalmente, como uma ferramenta de abrangência censitária (da população pobre), natureza cadastral (com dados de identificação e endereço) e ampla identificação das condições de vida das famílias, alcançando mais de 74 milhões de cidadãos (BARROS; CARVALHO; MENDONÇA, 2008). O que se viu, no Brasil, portanto, foi uma subversão das prioridades sociais por uma priorização de uma agenda estritamente economicista que atendia o interesse de alguns poucos setores e indivíduos. O lema “a economia não pode parar” reposicionou no centro do debate a importância de uma economia forte em detrimento da saúde pública, da vida dos brasileiros e brasileiras e do bem-estar físico e emocional das populações vulnerabilizadas no Brasil. Ao mesmo, a implementação “às pressas” do AE como uma lente amplificadora que nos permite enxergar as desigualdades sociais e raciais presentes no Brasil, como uma consequência da reorientação dos gastos públicos em favorecimento dos setores de forte retorno econômico proposto pelo próprio modelo neoliberal. Os impactos sociorraciais do Auxílio Emergencial para a população negra. O impacto desigual da pandemia sobre os diferentes segmentos populacionais se expressou de distintas maneiras ao longo da pandemia (ainda não findada) nas circunstâncias que envolvem a realidade social material e simbólica. No que tange a questão de mortalidade, Jesus e Melo (2021) apontam que é perceptível, após análise dos dados dos Boletins
André Sena 218 Epidemiológicos de Saúde (BEE) 57 de 2020, uma mudança de perfil quando os pardos (que junto com os pretos configuram a população negra no país), segundo o IBGE (2020), passam a ser o maior contigente de casos e óbitos por Covid-19. Os impactos da pandemia, no entanto, não se limitaram aos efeitos diretos sobre a saúde humana. As medidas de controle e contenção da Covid-19, aplicadas por diferentes níveis de governo, resultaram em perdas de trabalho e renda para amplo contingente da população. Além disso, a implementação do Auxílio Emergencial teve vários encalços que diante das desigualdades estruturais do país e suas interseções fazem os impactos da crise sanitária pesar notoriamente mais sobre a população negra, trabalhadores e trabalhadoras do setor informal, crianças e idosos vulnerabilizados 58 (ABREU et al. 2021). Aqui, debruçamo-nos sobre os impactos sociorraciais da implementação do AE, considerando as intersecções com os marcadores de raça da população. Para uma análise dessa natureza, é preciso não apenas reconhecer, mas também 58 Neste artigo, utilizamos o termo vulnerabilizado/a e não a escrita vulnerável, porque vulnerabilizado descreve o processo político ativo de desumanização e marginalização de uma parcela da população, majoritariamente negra no Brasil. A escrita vulnerável descreve o estado de desumanização como identidade natural das pessoas vítimas de um sistema perversamente excludente, o capitalismo; o que intensifica sua invisibilização. 57 Os BEE foram iniciados pelo Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS/MS), semanalmente a partir da edição de número 14, publicada no dia 26 de abril de 2020, têm como proposito não apenas apresentar os números disponíveis, mas também realizar a interpretação da situação epidemiológica e refletir sobre as evidências e limitações de cada processo, além de apresentar uma análise mais detalhada sobre o perfil da transmissão no Brasil por Unidade da Federação e Região de Saúde. Mais informações e para acessar os boletins, consultar o site do MS dedicado ao Covid-19. Disponível em: < https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/ epidemiologicos >.
Impactos sociais da Covid-19… considerar as estruturas vulnerabilizantes em que a população negra brasileira está submetida de maneira quotidiana nas mais diversas áreas da vida social, desde o acesso a serviços de saneamento básico até as desigualdades nas oportunidades de emprego e sub-representação nas instituições/locais de poder. Diante da necessidade de desenvolver uma análise sobre pelo menos uma das questões relacionadas à pandemia de Covid-19 e compreendendo a impossibilidade de abordar a totalidade do tema, opta-se por direcionar nosso foco nos impactos sociorraciais mais abrangentes identificados em 2020 na implementação da política pública de distribuição de renda. De fato, a desigualdade entre negros e brancos no Brasil se destaca por sua regularidade histórica. Levantamento realizado por Instituto Locomotiva , em 2021, relevou que em números absolutos os brancos conseguiram lograr maior sucesso no recebimento do auxílio federal quando comparados aos números absolutos da população negra. Os números apresentados mostram que, entre os negros que pediram o auxílio, 74% tiveram o pedido liberado. Essa taxa foi de 81% entre os brancos que fizeram a solicitação. Do grupo total de candidatos ao benefício temporário, 43% eram negros e 37% brancos (EXAME, 2020). Na esteira das condições históricas, segundo estudo divulgado pela Central Única das Favelas (CUFA), realizado pelo Instituto Locomotiva , em junho de 2020, que 71% dos negros e negras no Brasil não tinham nenhuma reserva financeira no início da pandemia de coronavírus. Entre os que tinham alguma reserva, 12% a tinham usado e 23% havia gastado a maior parte para se manter nos primeiros meses daquele ano. Além disso, o estudo revelou que 73% das pessoas pretas e pardas tiveram redução na renda devido à pandemia, índice que cai para 60% entre as brancas. Quase a metade das pessoas negras (49%) disse que deixou de pagar alguma conta no período, enquanto o percentual ficou em 32% para as brancas.
André Sena 220 Infere-se, assim, que a política de Auxílio Emergencial teve impactos desiguais sobre as diferentes parcelas da população. Não obstante, os impactos deletérios da conjuntura imposta pela aglutinada crise sanitária e socioeconômica, o primeiro impacto da implementação do Auxílio foi positivo para a população negra em geral, ao menos, para àqueles que lograram receber sem maiores percalços. Segundo dados do Banco Mundial (2021), a política de transferência de renda brasileira foi a maior da América Latina, atingindo quase 67 milhões de pessoas. Grande parte desse montante foi de cidadãos e cidadãs negros e negras que, num curto prazo, tiveram seus declínios econômicos mitigados pela medida. Ainda de acordo com o mesmo relatório, a despeito da elogiável medida de transferência de renda, houve demora na resposta do Governo Federal diante da pandemia da Covid-19 e com medidas pouco eficazes, como o distanciamento social pouco restritivo. Ademais, um conjunto desarticulado de medidas nas três esferas do governo: União, Estados e Municípios prejudicaram a implementação do Auxílio. Segundo o Banco Mundial (2021), apesar da abrangência da política ser alta quando comparada aos outros países latino-americanos, a lenta redução da desigualdade e o aumento da pobreza em anos recentes no país limitaram os benefícios da política a curto e médio prazo, principalmente por se tratar de uma política temporária, acarretando numa desigual distribuição desses benefícios como também dos impactos resultantes. Até 2014, a pobreza vinha diminuindo no Brasil devido ao avanço de políticas sociais redistributivas como o Bolsa Família, os ganhos reais do salário-mínimo e a ampliação do acesso à educação (SOUZA, 2021). Contudo, a partir de 2015, com os efeitos da crise econômica, a tendência inverteu e a miséria voltou a crescer anualmente. Em 2021, somados os efeitos da pandemia e a gestão de seus impactos, o Brasil alcançou a marca histórica de 14,5 milhões de famílias na miséria,
Impactos sociais da Covid-19… caracterizadas por aquelas que vivem com até R$ 89,00 de renda mensal. Isso equivale a 70 milhões de brasileiros e brasileiras que vivem em condição de miséria. É crucial frisar que antes da implementação do Auxílio Emergencial, a renda dos brasileiros e das brasileiras negros e negras era historicamente menor. Segundo o IBGE (2019), com o mesmo grau de instrução, a taxa de desocupados é historicamente maior entre os negros (pretos e pardos). Outro dado apresentado se reporta ao rendimento médio mensal das pessoas ocupadas, o grupo branco (R$ 2.796) foi 73,9% superior ao das pretas ou pardas (R$ 1.608), em todo o Brasil (IBGE, 2019). Esses dados são ainda mais alarmantes quando se faz o recorte de gênero, sendo a renda de mulheres negras menos da metade (44,4%) da renda de um homem branco. Em última análise, no desenho das desigualdades raciais, o mapa demográfico do Brasil indicou que pretos ou pardos tinham maiores restrições à Internet (23,9%), saneamento básico (44,5%), educação (31,3%), condições de moradia (15,5%) e à proteção social (3,8%). Em comparação, todos esses valores estão acima dos percentuais registrados para homens ou mulheres brancas (IBGE, 2019). Logo, essa conjuntura, alicerçada pelo racismo estrutural, foi a base sobre a qual o Auxílio Emergencial foi implementado. Isso posto, um dos primeiros impactos que pudemos identificar foi quanto à maneira formulada pelo Governo Federal para implementar a política: a internet. Visando o distanciamento social, foi decidido que o cadastro para recebimento do Auxílio para aqueles que não estavam inscritos no CadÚnico seria pelo aplicativo do Caixa Tem ou pela internet. Esse cadastro, por sua vez, era vinculado a um celular que, não raro, não pertencia a pessoa que estava solicitando o benefício. Como mencionado, a ausência de telefones celulares smartphones e eletrônicos por boa parte do público-alvo e suas dificuldades de uso geraram uma lacuna e perda de potenciais
André Sena 222 beneficiários (MARINS et al., 2021). Nesta análise, a perspectiva interseccional se faz imperativa, haja visto que quanto mais vulnerabilizada a classe social, via de regra, mais precária é sua educação formal e digital. Isso posto, de maneira geral, os negros têm mais dificuldade de acesso e compreensão não por falta de capacidade, mas de manuseio e de ensino das informações exigidas pelo aplicativo de celular. Sem uma via telefônica para tirar dúvidas, muitas pessoas em plena pandemia foram aos Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) para obter informações sobre o recebimento do Auxílio, aumentando o risco de contágio individual e familiar. Por ser centrado na esfera federal, os CRAS tinham pouca ou nenhuma informação para ajudar as pessoas. Outras várias pessoas encontraram dificuldade para trabalhar com o aplicativo e a demora da análise do pedido de muitas pessoas as levou a filas imensas nas agências da Caixa Econômica Federal (PORTAL Poder 360). A partir dessa perspectiva, pode-se refletir sobre a não possibilidade do pobre negro de usufruir do privilégio do distanciamento social. A inexistência de políticas públicas específicas para a população negra durante o período pandêmico, ainda que os indicadores sociais mostrem como esta população tem sido historicamente vulnerabilizada, seja com a perda de vida, seja com a perda de empregos, tem sido nominada por alguns autores como uma necropolítica (SANTOS; ARRUDA, 2020). Santos e Arruda discorrem que É importante considerarmos que muitos dos critérios definidos para a operacionalização do auxílio emergencial, a despeito de serem coerentes com a necessidade de estimular as pessoas a manterem medidas de distanciamento social (e não induzi-las a ter que ir até a algum lugar para o preenchimento de um cadastro, por exemplo), ainda assim são medidas que certamente não são “práticas” e plenamente acessíveis para
Impactos sociais da Covid-19… contingentes expressivos de sujeitos subalternizados que, em última análise, são os mais necessitados do amparo da política pública. Nesse ínterim, deve-se pontuar que a necessidade de realização de um cadastro, disponível em página online ou em aplicativo de smartphone, é algo inacessível para contingentes expressivos de pessoas. Ao serem obrigados a ter que encarar extensas aglomerações nas portas das agências da Caixa Econômica Federal, muitos dos beneficiários do auxílio emergencial se expuseram sobremaneira ao risco de contágio pelo Covid-19. Em certo sentido, considerando esse arranjo de coisas, podemos depreender que a própria política pública do auxílio emergencial assume certo viés necropolítico, uma vez que tem como efeito (mesmo que adverso e indesejado) a ocorrência de aglomerações entre pessoas, tornando-as suscetíveis à doença pelo Covid-19 e até à morte (ARRUDA; SANTOS, 2020, p.151-152). A baixa renda pré-Covid-19, a informalidade laboral, a inação e desconcerto entre as esferas do poder somados ao racismo estrutural, portanto, fizeram com o que o Auxílio se tornasse mais uma ferramenta da necropolítica. Sobre isso, Santos e Silva (2022) discorrem [negros e negras] continuaram expostos à contaminação pelo vírus através do uso de transportes coletivos, dando prosseguimento aos seus trabalhos que jamais entraram na modalidade remota, na sua maioria, tratava-se pessoas negras em serviços domésticos, faxina, portarias, cuidadores de idosos e doentes, técnicos de enfermagem, seguranças, empregados de supermercados, entregadores e comércio. O “distanciamento social” foi aplicado pelas classes médias e dominantes, que puderam se resguardar em seus lares e preservar os vulneráveis de suas famílias (idosos e doentes). (SANTOS; SILVA, 2022, p.1858).
André Sena 224 Por esse prisma analítico, destaca-se, então, que, com os problemas e dificuldades de cadastramento, de duplicidade e de entendimento do aplicativo e do próprio calendário de pagamento, os impactos se avolumaram significativamente entre os negros e pobres, residentes de áreas periféricas, que não apenas não puderem se manter em casa para o distanciamento social, como tiveram problemas no cadastramento e no recebimento do Auxílio Emergencial. A política pública de transferência de renda ou a ausência dela –, portanto, teve um impacto maior sobre as populações negras, tanto econômica quanto diretamente na mortalidade dessa população, visto que para resolver problemas relacionados ao recebimento do Auxílio várias dessas pessoas se expuseram ao contágio pelo coronavírus. Ao compilar dados estatísticos sobre racismo estrutural durante a pandemia de Covid-19, o Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS) elaborou uma nota técnica que analisou as discrepâncias entre óbitos e recuperados em hospitalizações por Covid-19 no Brasil, partindo de variáveis demográficas e socioeconômicas. Foram analisados 29.933 casos. Na pesquisa, o núcleo identificou que a taxa de letalidade do Brasil é elevada, sendo influenciada, precipuamente, pelas desigualdades no acesso ao tratamento. A porcentagem de pacientes pretos e pardos que vieram à óbito (54,78%) foi maior do que os de brancos (37,93%). Os números permitem estabelecer uma relação direta entre os impactos sociorraciais citados da implementação do Auxílio e o racismo estrutural no Brasil. Contudo é importante constantemente frisar a relevância dessa transferência de renda cuja ajuda para milhares de famílias foi imprescindível (MELO; RODRIGUES, 2021). Com o fim da primeira versão do Auxílio Emergencial sem que, contudo, a pandemia também chegasse ao seu fim, as preocupações e incertezas acerca do futuro das famílias mais vulneráveis permaneceram. A diminuição do valor do Auxílio de
Impactos sociais da Covid-19… 2020 para 2021 gerou uma queda abrupta da renda de muitas famílias negras que literalmente de um mês para o outro viram-se sem sua principal fonte de renda. Como o fim da pandemia se mostrava cada vez mais distante, em abril de 2021 foi anunciada a extensão do Auxílio Emergencial em sua nova versão. Esse cenário de baixa confiabilidade no Governo Federal, somada às vicissitudes no recebimento do benefício desde problemas com o aplicativo, falta de internet, do próprio aparelho celular a longas filas nas agências da Caixa , levou aos impactos sobre a população negra de maneira quase direcionada (SANTOS; SILVA, 2022). Assim sendo, o efeito amortizador do Auxílio sobre os impactos sociorraciais, num primeiro momento, foi substituído pelo quadro de racismo histórico e estrutural. De fato, a ausência do benefício intensificou a vulnerabilidade social e econômica da população negra aliada a redução do valor, em 2021. Como por armas de fogo, a população negra é a mais afetada pela mortalidade causada pelo coronavírus. Foi o cenário de desmonte das políticas públicas para a igualdade racial, que se constituiu no compasso do Governo Federal na pandemia, que contribuiu para que a população negra fosse, em outro lamentável indicador, sobrerrepresentada no número de óbitos por Covid-19 (FIOCRUZ, 2021). Como apresentado, a despeito da implementação de políticas de proteção social fosse um movimento de nível mundial, a decisão pela implementação da política do Auxílio Emergencial enfrentou uma série de conflitos políticos que giraram em torno das disputas de poder presentes na esfera federal, acarretando o atraso da tomada de decisão, no estabelecimento das diretrizes da política, bem como afetou a escolha do público-alvo, o tempo e o valor do benefício (ARRUDA; SANTOS, 2020). Reitera-se que essas instabilidades
André Sena 226 afetaram a maneira como a política foi implementada, afetando mais pesadamente a população negra. Importa salientar que apesar de todos os problemas de implementação que a política de renda básica enfrentou, ela foi essencial quando esteve vigente, evitando que milhares de pessoas enfrentassem a miséria e a fome em um período crítico de isolamento social. No entanto, o seu fim gerou uma série de consequências que se agravaram cada vez mais, posto que a pandemia foi arrefecida em decorrência das vacinas, mas a crise econômica, os níveis alarmantes de desemprego e alta inflamação que acomete o preço dos alimentos persistem como um flagelo social. É complexo para não dizer cruel quando sujeitos subalternizados são acometidos por quedas bruscas em seus níveis de renda e, na pandemia de Covid-19, o contexto não foi monocausal. Pires (2020) salienta nesta conjuntura a importância do Auxílio Emergencial para que os trabalhadores subalternizados não sofressem com quedas acentuadas nos seus rendimentos. Por outro lado, Arruda e Santos sublinham que: [...] o auxílio emergencial, com os valores que se dispõe a repassar aos beneficiários e com os critérios que foram adotados para a operacionalização da política pública, não foi capaz, por si só, de impedir com que os segmentos subalternizados da sociedade fossem compulsoriamente obrigados a arcar com os ônus mais evidentes da pandemia no Brasil, o que conforme se ressaltou anteriormente pode implicar em necessidades severas a esses indivíduos. Nesse ínterim, entendemos que tal constatação reforça as evidências quanto ao caráter excludente e desigual da estrutura social brasileira. (ARRUDA; SANTOS, 2020, p. 151). Neste estágio da reflexão, é importante rememorar que o Governo Federal não formulou a política pensando na
Impactos sociais da Covid-19… população negra, em condição de vulnerabilidade socioeconômica, e, tampouco, organizou uma maneira de assistir essa população de maneira a mitigar a saída às ruas e aumentar o acesso a informações. O que se viu foi uma verdadeira corrida às portas das agências da Caixa em busca de informações que as ajudassem a conseguir o benefício. Muitas dessas pessoas eram pobres, negras, mulheres, faveladas e subalternizadas. Percebe-se que é paradigmático refletir que os mecanismos pensados para mitigar o contágio do coronavírus foi o que, em contrapartida, alijou muitos de conseguirem o Auxílio. Arruda e Santos (2020) analisam o fato de o Auxílio, como mencionado, ser disponibilizado em conta bancária social criada pela Caixa , o que representou um empecilho para o pleno acesso ao recuso por parte da população subalternizada que, em parte, não conseguem acessar facilmente contas e nem tem documentos pessoas, o que as tornam, na prática, “invisíveis” para a política púbica em análise. Assim, contingentes expressivos ficaram de fora do alcance da política uma vez que ela não foi formulada pensando nas desigualdades abissais que singram o Brasil e afetam, mormente, a população negra vulnerabilizada. Os dados brevemente discutidos acima corroboram a perspectiva de que os impactos da pandemia, inclusive aqueles decorrentes da implementação do Auxílio Emergencial, são mais evidentes entre a população subalternizada que além de não terem o privilégio de um trabalho remoto, também desempenham trabalhos mais precários na sociedade. Para além de dificuldades no recebimento do Auxílio que dificulta ainda mais rendimentos estáveis. Assim sendo, a reflexão supra levantada sugere que a política pública do Auxílio Emergencial, da maneira como foi implementado, infligiu impactos sanitários e sociais à população negra vulnerabilizada e não foi capaz de “alcançar” a totalidade de sujeitos que verdadeiramente precisariam dela.
André Sena 228 Esses impactos foram observados por meio dos diversos problemas que os beneficiários enfrentaram: instabilidade do site para cadastramento; filas para cadastramento e recebimento do benefício, gerando aglomeração e possibilidade de contágio em um momento crítico da pandemia; dificuldades iniciais quanto ao CPF não regularizado; demora na tomada de decisão para o pagamento do Auxílio; restrições quanto ao tipo de movimentação a ser feita com o dinheiro em conta, de modo que em um primeiro momento, não era permitido sacar ou transferir o dinheiro; precariedade dos recursos humanos para atendimento da alta demanda em tempo de pandemia. Estes problemas representaram impactos sociorraciais, não raro, decorrentes dos pontos cegos ( blind spots ) da política pública não previstos pelos formuladores. Considerações Finais À luz do exposto neste artigo, defendemos a adoção de políticas públicas que, de fato, tenham a população preta majoritariamente mais vulnerável no Brasil como público-alvo e não como efeito colateral de sua amplitude. Para evitar que os impactos sociorraciais da pandemia se prolonguem com o tempo, aprofundando os diversos marcadores da desigualdade racial brasileira pré-existentes, marcados pelos eixos estruturantes da matriz da desigualdade e da cultura do privilégio, é necessária uma ação para além da política de distribuição de renda. Uma ação holística que abarque a área da Saúde, da Cultura, do Trabalho e outras que, de maneira interligada com justiça social, estendam o mesmo padrão de cuidado vivido pela população privilegiada deste país. Assim, sobre a indagação inicial vale frisar, em última análise, que a política de Auxílio Emergencial não foi capaz de alcançar adequadamente a população vulnerabilizada,
Impactos sociais da Covid-19… nominalmente, os negros e negras. Ademais, é imperativo ter em mente que o AE, da maneira que foi implementado pelo Governo Federal, de modo centralizador, não teve a capacidade ou a celeridade que a conjuntura impunha, o que acarretou impactos adversos e evitáveis para a população em vulnerabilidade. Percebeu-se que os indivíduos com acesso precário ou nenhum acesso aos recursos imprescindíveis para se alcançar o benefício foram aqueles que historicamente são marginalizados e inviabilizados pelo Estado. Em médio e longo prazo, é fundamental avançar rumo a sistemas de proteção social universais, integrais e sustentáveis que não sejam meras políticas de governo, mas de Estado, num compromisso com a justiça social. Dessa forma, defendemos a ideia de um círculo virtuoso de bem-estar que inclua a população negra de maneira integral e com equidade; distribuir um auxílio e ao mesmo tempo criar as condições sociais e materiais para que as pessoas se resguardem em casa durante uma pandemia. Para isso, é preciso, sobretudo, estabelecer garantias de renda para o conjunto da população negra vulnerabilizada, promover políticas ativas no mercado de trabalho para que essa população não fique desempregada ou sujeita à subempregos e transitar para uma economia e uma sociedade do cuidado, de maneira a consolidar a autonomia dos vulnerabilizados, como as mulheres (mormente as mulheres pretas), trabalhadores e trabalhadoras do setor informal e idosos. Nesse interim, acreditamos que a reafirmação do papel central do Estado no processo de construção da sociedade do cuidado é imperativa e inescapável, mediante ações que tenham como horizonte a universalização de serviços de qualidade, a coordenação e intersetorialidade das políticas e a sustentabilidade financeira. É necessário estabelecer políticas e programas que atendam às necessidades específicas da população negra, o que não foi feito no Brasil durante a
André Sena 230 pandemia da Covid-19, agravando o quadro de impactos sociorraciais. A distribuição assimétrica dos impactos econômicos e sociais da pandemia de Covid-19 escancarou o padrão estrutural das desigualdades historicamente endêmicas no Brasil. Conforme identificou-se, apesar de todos os problemas de implementação que a política de renda básica enfrentou, ela foi essencial no período em que estava vigente, evitando que milhares de pessoas enfrentassem a miséria e a fome em período pandêmico. O avanço rumo a sistemas de proteção social universais, integrais, sustentáveis e resilientes é necessário para encarar tanto os problemas estruturais como racismo, a pobreza e a desigualdade como toda uma série de impactos que a população negra enfrenta e que põem em risco seu bem-estar e efetivo gozo de direitos. A proteção social é essencial para enfrentar riscos macrossociais vinculados às epidemias e pandemias da proporção que tem sido a da Covid-19, e os vais e vens do ciclo econômico decorrente. . Referências ABRAMO, L.; CECCHINI, S.; MORALES B. MORALES. Programas sociales, superación de la pobreza e inclusión laboral : aprendizajes desde América Latina y el Caribe. CEPAL. 2019. Disponível em: https://www.cepal.org/es/publicaciones/44602-programas-social es-superacion-la-pobreza-inclusion-laboral-aprendizajes-america . Acesso em: jan. 2023. ABREU, L. C. de et al. Três necessidades urgentes na batalha contra covid-19: medicamentos específicos, informações e aceitação da pandemia. Journal Hum. Growth Dev . [online]. v. 31, n. 3, p. 371-375, 2021. Disponível em: http://dx.doi.org/10.36311/jhgd.v31.12794 . Acesso em: dez. 2022. ALMEIDA, S. L. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.
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André Sena 236 Resumo: O presente artigo objetiva refletir sobre a política pública do auxílio emergencial e seu impacto sobre as desigualdades aprofundadas para a população negra vulnerabilizada no Brasil, no contexto da pandemia da Covid-19. Quanto a metodologia, a partir de uma metodologia qualitativa, emprega-se a técnica de análise documental para estabelecer um diagnóstico desses impactos, analisando documentos institucionais, artigos e dados de diferentes bases (IBGE, IPEA e DIEESE). Nas considerações finais, ressalta-se que, mesmo durante os pagamentos do Auxílio, os grupos subalternizados da população brasileira, negros em sua maioria, foram aqueles que mais amargaram com as quedas de níveis de renda e a perda de emprego, também com os impactos da implementação da política; trazendo à luz as abissais desigualdades estruturais e raciais no Brasil. Palavras-chave: pandemia; auxílio emergencial; Covid-19; população negra; desigualdade.   Abstract: The present article aims to reflect on the public policy of emergency aid and its impact on deepening inequalities for the vulnerable black population in Brazil, in the context of the Covid-19 pandemic. We adopt an exploratory and descriptive methodological strategy, employing the technique of document analysis to establish a diagnosis of these impacts, analyzing institutional documents, articles and data from different bases (IBGE, IPEA and DIEESE). In the final considerations, we emphasize that, even during the Aid payments, the underprivileged groups of the Brazilian population, most of them black, were those who suffered the most from the declines in income levels and loss of employment, as well as the impacts of the policy implementation; bringing to light the abysmal structural and racial inequalities in Brazil. Keywords: pandemic; emergency aid; Covid-19; black population; inequality.  
238 Recebido para publicação em 17/02/2023 Aceito em 29/08/2023 ACESSO ABERTO Copyright: Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.