ACESSO
ABERTO
Copyright:
Esta
obra
está
licenciada
com
uma
Licença
Creative
Commons
Atribuição
4.0
Internacional.
Resenha
de
“História
Potencial:
Desaprender
o
Imperialismo”
AZOULAY,
AÏSHA
História
Potencial:
Desaprender
o
Imperialismo
.
São
Paulo:
Ubu,
2024.
Danielle
Santos
de
Freitas
https://orcid.org/0000-0001-5474-3190
email:
danny.freitas09@gmail.com
RESUMO
Trata-se
de
uma
resenha
crítica
do
livro
História
Potencial:
Desaprender
o
Imperialismo,
de
Ariella
Aïsha
Azoulay,
que
analisa
a
interseção
entre
história,
memória
e
imperialismo.
A
obra
objetiva
desconstruir
narrativas
hegemônicas
e
evidenciar
como
a
fotografia,
os
arquivos
e
os
museus
serviram
e
ainda
servem
como
ferramentas
de
dominação
colonial.
Para
isso,
adota
uma
abordagem
interdisciplinar,
dialogando
com
teóricos
de
Revista
de
Ciências
Sociais
—
Fortaleza,
v.
55,
n.
1,
mar.
2024
DOI:
10.36517/rcs.54.2.a05
ISSN:
2318-4620
Resenha
de
“História
Potencial…
diversas
correntes
do
pensamento
e
apontando
a
fotografia
como
um
dispositivo
que
molda
relações
de
poder.
Conclui
que
a
forma
como
a
fotografia
tem
sido
utilizada,
exposta
e/ou
arquivada
reforça
o
imperialismo,
desumaniza
populações
colonizadas
e
legitima
a
expropriação
cultural.
Como
alternativa,
propõe
a
criação
de
um
contra-arquivo
e
a
necessidade
de
desaprender
as
estruturas
epistemológicas
que
perpetuam
a
dominação.
PALAVRAS-CHAVE
:
imperialismo,
fotografia,
memória,
desaprendizagem,
contra-arquivo.
ABSTRACT
This
is
a
critical
review
of
the
book
Potential
History:
Unlearning
Imperialism
by
Ariella
Aïsha
Azoulay,
which
analyzes
the
intersection
between
history,
memory,
and
imperialism.
The
book
aims
to
deconstruct
hegemonic
narratives
and
highlight
how
photography,
archives,
and
museums
have
served
and
continue
to
serve
as
tools
of
colonial
domination.
To
achieve
this,
it
adopts
an
interdisciplinary
approach,
engaging
with
theorists
from
various
intellectual
traditions
and
identifying
photography
as
a
device
that
shapes
power
relations.
It
concludes
that
the
way
photography
has
been
used,
exhibited,
and/or
archived
reinforces
imperialism,
dehumanizes
colonized
populations,
and
legitimizes
cultural
expropriation.
As
an
alternative,
it
proposes
the
creation
of
a
counter-archive
and
the
need
to
unlearn
the
epistemological
structures
that
perpetuate
domination.
KEYWORDS
:
imperialism,
photography,
memory,
unlearning,
counter-archive.
Ariella
Aïsha
Azoulay,
em
seu
livro
História
Potencial:
Desaprender
o
Imperialismo
,
apresenta
uma
reflexão
incisiva
sobre
a
interseção
entre
história,
memória
e
imperialismo,
convidando-nos
a
desaprender
as
narrativas
hegemônicas
que
moldam
nossa
compreensão
do
mundo.
Fruto
de
uma
década
de
pesquisa,
a
obra
dialoga
com
autores
como
Audre
Lorde,
Hannah
Arendt,
Michel
Foucault,
W.E.B.
Du
Bois,
François
Arago,
Walter
Benjamin,
Sylvia
Wynter,
Audley
Danielle
Freitas
250
Moore,
entre
outros,
e
representa
um
chamado
à
ação
ética
e
política.
Com
uma
sólida
formação
acadêmica
e
artística,
Azoulay
é
professora
do
Departamento
de
Cultura
e
Mídias
Modernas
da
Universidade
Brown,
graduada
em
Cinema
e
Literatura,
mestre
em
Semiótica
pela
Universidade
Paris
VIII
e
doutora
em
História
e
Filosofia
da
Ciência
e
das
Ideias
pela
Universidade
de
Tel
Aviv,
onde
nasceu.
Sua
experiência
em
Teoria
Política,
História,
Fotografia
e
Curadoria
lhe
permite
oferecer
uma
análise
complexa
e
abrangente.
Ao
se
posicionar
como
uma
intelectual
judia
palestina,
Azoulay
propõe
uma
crítica
contundente
às
estruturas
de
poder,
violência
e
exclusão.
Sua
análise
inovadora
sobre
as
implicações
políticas
e
ontológicas
da
fotografia—articulada
por
conceitos
como
o
“clique
do
obturador”
e
o
“obturador
imperial”—ilustra
como
a
técnica,
ao
transformar
o
mundo
em
categorias
rígidas,
contribui
para
a
exclusão
de
sujeitos
e
histórias.
A
metodologia
apresentada
vê
a
fotografia
como
um
encontro.
Essa
noção
de
encontro
vai
além
da
simples
interação
entre
a
câmera
e
o
sujeito
fotografado;
ela
se
baseia
na
ideia
de
que
as
imagens
devem
ser
usadas
para
criar
formas
de
relacionamento
e
entendimento,
que
não
reifiquem
as
diferenças,
mas
as
problematizem
e
busquem
formas
de
reparação.
Esse
rompimento
com
a
lógica
do
observador
distante
é
uma
recusa
à
passividade
da
academia
e
das
práticas
culturais
imperialistas,
propondo,
em
vez
disso,
um
envolvimento
ativo
na
reconfiguração
da
história
e
da
memória.
Seu
trabalho
expõe
o
modo
como
a
história
é
arquivada
e
lembrada,
propondo
um
“contra-arquivo”
que
busca
dar
visibilidade
a
vozes
e
experiências
ignoradas.
Como
Quijano
(2005,
p.130)
destaca:
“Aqui
a
tragédia
é
que
todos
fomos
Resenha
de
“História
Potencial…
conduzidos,
sabendo
ou
não,
querendo
ou
não,
a
ver
e
aceitar
aquela
imagem
como
nossa
e
como
pertencente
unicamente
a
nós.
Dessa
maneira,
seguimos
sendo
o
que
não
somos.”
Essa
afirmação
ressoa
profundamente
com
a
crítica
de
Azoulay
sobre
como
a
fotografia
e
outras
tecnologias
são
utilizadas
para
criar
imagens
que
moldam
a
identidade
e
a
percepção
coletiva,
distorcendo
realidades.
A
discussão
desenvolvida
ao
longo
do
livro
revela
como
o
ato
de
ver
e
registrar
é
intrinsecamente
ligado
à
lógica
colonial,
sugerindo
que
o
“clique
do
obturador”
não
é
meramente
um
ato
técnico,
mas
uma
“sinédoque
das
relações
de
poder”.
As
imagens
produzidas,
são
construções
de
uma
“verdade”
imposta,
que
desconsidera
a
agência
e
a
voz
dos
retratados.
Essa
dinâmica,
para
ela,
faz
parte
de
um
sistema
imperial
que
continua
a
moldar
a
forma
como
vemos
e
nos
relacionamos
com
os
outros,
principalmente
os
que
foram
marginalizados
e
despojados
de
seus
direitos.
O
livro
original
é
dividido
em
sete
capítulos,
enquanto
a
versão
brasileira
–
traduzida
por
Célia
Euvaldo
–
contém
três
partes:
1.
Desaprender
o
Imperialismo,
2.
História
Potencial:
Sem
as
Ferramentas
do
Senhor,
Sem
Ferramenta
Nenhuma
e
3.
Reparo,
Reparações,
Retorno:
A
Condição
de
Mundanidade.
Apesar
da
redução,
a
tradução
mantém
a
essência
provocadora
da
obra
para
os
estudos
decoloniais.
No
prefácio,
a
autora
expressa
sua
recusa
em
se
identificar
como
israelense
e
explica:
“Eu
me
recuso
em
parte
porque
ser
israelense
significa
ter
direitos
a
terras
roubadas
e
à
propriedade
alheia.
Não
me
recuso,
entretanto,
aceitar
as
implicações
herdadas
dessa
posição
de
agressora,
a
partir
das
quais
e
contra
as
quais
esse
livro
foi
escrito.”
(Azoulay,
2024,
p.
12).
Assim,
elanos
leva
a
refletir
a
complexidade
das
implicações
morais
dessa
identidade,
que
está
imbuída
de
violação
e
apropriação.
Danielle
Freitas
252
O
primeiro
capítulo,
intitulado
Desaprender
o
Imperialismo
,
é
estruturado
em
torno
da
crítica
ao
papel
das
instituições
culturais
e
dos
artefatos
saqueados,
que
se
tornaram
símbolos
de
um
progresso
imperial.
A
autora
argumenta
que
esses
artefatos,
embora
preservados,
carregam
uma
narrativa
de
progresso
que
omite
a
violência,
a
destruição
e
o
despojamento
das
comunidades
originárias.
A
ideia
central
deste
capítulo
é
a
necessidade
de
“desaprender”
essas
narrativas,
o
que
implica
uma
revisão
crítica
dos
valores
e
normas
que
sustentam
a
visão
ocidental
sobre
arte
e
patrimônio
cultural.
Desaprender
é
uma
maneira
de
reverter
o
papel
dos
marcos
normalizados
que
estruturam
o
campo
fenomenológico,
marcos
a
partir
dos
quais
a
história
moderna
ainda
é
concebida
e
narrada,
por
exemplo,
progresso
e
democratização
no
lugar
de,
digamos,
destruição,
apropriação
e
privação,
seguidos
(como
em
fases
posteriores)
pela
“generosidade”
imperial
de
prover
aos
despossuídos
mediante
políticas
imperialistas.
(Azoulay,
2024,
p.
30).
O
conceito
de
desaprender
o
imperialismo
é
apresentado
como
uma
forma
de
resistência.
Esse
processo
não
se
limita
à
crítica
do
imperialismo
enquanto
prática
histórica,
mas
envolve
uma
desconstrução
das
formas
de
conhecimento
e
das
estruturas
que
perpetuam
o
domínio
imperial.
O
“desaprender”
sugere
uma
mudança
radical
de
paradigma:
em
vez
de
dar
continuidade
as
divisões
temporais
e
espaciais
que
sustentam
o
império,
propõe
uma
ontologia
política,
adversa
a
hierarquia
de
saberes,
e
que
restabeleça
um
diálogo
igualitário
entre
as
diferentes
experiências
humanas.
Neste
capítulo,
a
concepção
do
tempo
assume
um
papel
central.
Para
a
autora,
o
tempo
é
a
ferramenta
imperial
mais
Resenha
de
“História
Potencial…
poderosa,
pois
a
cronologia
imposta
pelo
colonialismo
reorganiza
a
história
de
forma
a
legitimar
a
exploração
e
o
domínio
imperial.
Ciente
disso,
Azoulay
propõe
exercícios
para
desfazer
a
operação
do
obturador
no
espaço,
no
tempo
e
no
corpo
político,
ressaltando
que
é
necessário
exercitar
um
pensamento
não
imperial
como
forma
de
aprender
com
a
reversão.
O
marco
que
oficializa
a
história
da
fotografia
no
mundo
é
1839,
mas
a
autora
desloca
suas
origens
para
1492,
demonstrando
que
o
passado
não
é
uma
simples
sucessão
de
eventos,
mas
uma
sedimentação
que
possibilita
determinadas
configurações
no
presente.
Ela,
busca
evidenciar
como
uma
série
de
acontecimentos
históricos
—
genocídios,
sociocídios
e
a
produção
e
reprodução
de
ideias
coloniais
—
foram
injetadas
na
sociedade
ao
longo
dos
séculos
para
que,
em
1839,
a
fotografia
surgisse
como
uma
nova
aquisição,
uma
nova
tecnologia
a
serviço
da
lógica
imperial.
Dessa
forma,
a
fotografia
não
pode
ser
compreendida
como
um
simples
avanço
técnico,
mas
como
parte
de
um
aparato
que
sustentou
e
naturalizou
a
dominação
colonial,
consolidando
a
separação
entre
aqueles
que
registram
(sujeito)
e
aqueles
que
são
transformados
em
(objeto)
de
registro.
Pensar
a
fotografia
apenas
no
tempo
em
que
ela
foi
oficializada
significa
separá-la
da
história,
reproduzindo
exatamente
a
lógica
para
a
qual
foi
criada:
não
apenas
registrar
eventos,
mas
construir
um
tempo
apartado,
no
qual
os
povos
colonizados
são
fixados
em
um
passado
distante,
dissociado
do
presente
e
do
futuro.
Essa
manipulação
temporal
sustenta
a
narrativa
do
progresso
ocidental,
convertendo
objetos
e
culturas
vivas
em
relíquias
do
passado
e,
assim,
justificando
sua
apropriação
e
controle.
Como
enfatiza
Bárbara
Pinheiro
(2019,
p.
331),
“é
preciso
Danielle
Freitas
254
educar
a
juventude
mostrando
narrativas
diversas
e
decoloniais
dos
diferentes
marcos
civilizatórios
que
nos
constituíram.”
A
fotografia,
enquanto
tecnologia
imperial,
tem
sido
um
dos
instrumentos
fundamentais
para
sedimentar
uma
visão
eurocêntrica
da
história,
apagando
as
contribuições
e
existências
de
povos
não
europeus.
Essa
lógica
também
se
conecta
à
crítica
de
Rodney
William
(2020),
que
aponta
que
“o
racismo
alimenta
no
imaginário
coletivo
as
noções
de
superioridade
branca
e
inferioridade
de
outros
grupos
étnicos”
(p.
71).
A
fotografia,
ao
capturar
imagens
de
povos
colonizados
a
partir
do
olhar
europeu,
construiu
um
imaginário
racializado
que
reforça
a
desigualdade
global.
A
própria
forma
como
as
imagens
foram
organizadas
nos
arquivos
ocidentais
evidencia
o
controle
imperial
sobre
a
narrativa
histórica,
tratando
sujeitos
colonizados
como
objetos
de
estudo
e
não
como
agentes
históricos.
Outro
ponto
importante
levantado
é
a
crítica
à
restituição
de
bens
culturais
que
tem
sido
feita
pelos
museus
de
vários
países.
Azoulay
argumenta
que:
“[...]
o
que
foi
tomado
pelo
movimento
imperialista
irrefreável,
e
retido
como
se
fosse
propriedade
natural
das
instituições
ocidentais,
não
pode
ser
parcimoniosamente
redistribuído
por
meio
de
caridade,
incrementos
educacionais
ou
ajuda
humanitária.”
(Azoulay,
2024,
p.
30).
Dessa
feita,
aponta
a
conivência
dos
museus
com
o
colonialismo,
afirmando
que
esses
espaços
reproduzem
a
violência
simbólica
ao
preservar
objetos
fora
de
seu
contexto
cultural
e
denuncia
as
tentativas
de
reparação
como
insuficientes,
lembrando
que
a
perda
cultural
é
irrecuperável.
Essa
análise
se
torna
especialmente
relevante
diante
das
discussões
contemporâneas
sobre
colonialismo
cultural
e
reparação.
Resenha
de
“História
Potencial…
No
segundo
capítulo,
intitulado:
História
Potencial:
Sem
as
ferramentas
do
Senhor,
Sem
ferramentas
nenhuma
,
aborda
o
papel
da
história
convencional
na
validação
e
manutenção
da
violência
imperial.
Sugere
que,
ao
narrar
os
acontecimentos
a
partir
de
uma
perspectiva
que
os
encerra
no
passado,
a
disciplina
histórica
oculta
a
continuidade
e
as
repercussões
dessa
violência
no
presente.
“A
história
potencial”
surge
como
uma
resposta
radical
a
essa
limitação,
recusando-se
a
aceitar
que
as
consequências
da
violência
imperial
sejam
perenes
ou
que
a
história
deva
ser
contada
de
forma
linear
e
finalizada.
A
autora
se
dirige
à
história
como
uma
ferramenta
imperial,
“ferramenta
do
Senhor”
usada
para
validar
e
viabilizar
a
dominação
através
da
narração
de
“histórias
plausíveis”,
que,
por
sua
vez,
escondem
a
brutalidade
que
molda
essas
narrativas.
Essa
reflexão
se
articula
com
a
crítica
de
Pinheiro
(2019),
que
discute
como
a
colonialidade
ainda
estrutura
nossa
percepção
de
ciência
e
conhecimento:
Tocamos
nossa
existência
chamando
a
Europa
de
‘o
velho
mundo’
(mesmo
sabendo
que
a
humanidade
surgiu
na
África);
quando
viajamos
para
a
Europa
dizemos
que
vamos
ao
berço
das
civilizações
(mesmo
sabendo
que
no
mundo
existem
civilizações
anteriores)
[…].
Acreditamos
que
a
Europa
é
o
padrão
de
ciência
e
intelectualidade,
assim
sendo
todo
fenótipo
fora
do
padrão
europeu
(a
exemplo
de
pessoas
negras
e
indígenas)
é
caracterizado
como
não
desenvolvedor
de
ciência,
mas
de
conhecimentos
populares,
de
não
intelectual,
mas
destinado
a
trabalhos
braçais.
(Pinheiro
2019,
p.
333).
Ao
recusar
a
transmutação
da
violência
em
história,
a
autora
constrói
uma
narrativa
insurgente
que
mantém
vivas
as
lutas
e
potencialidades
marginalizadas
ou
sufocadas
pelas
Danielle
Freitas
256
narrativas
dominantes.
Ressalta,
portanto,
uma
nova
abordagem
que
reconheça
essa
violência,
e
afirme
a
possibilidade
de
reverter
seus
efeitos.
“Os
especialistas
criam
a
história
por
meio
da
tecnologia
imperial.[…],
com
mapas,
pesquisas,
censos,
estatísticas,
gráficos
visuais
e
relatos
acadêmicos,
e
nos
apresentam
esse
mundo
como
fato
consumado.
Ele
não
é
um
fato
consumado.”
(Azoulay,
2024,
p.
94).
Isso
implica
que,
a
forma
como
a
história
é
produzida
e
apresentada
não
é
neutra,
mas
sim
uma
construção
que
serve
aos
interesses
do
poder.
A
história
potencial
nos
instiga
a
refletir
sobre
um
possível
deslocamento
analítico
de
instituições
culturais
(arquivos,
museus
e
bibliotecas)
como
ferramentas
do
senhor,
para
o
reconhecimento
das
lutas
contínuas,
como
a
dos
povos
negros,
indígenas
e
da
resistência
palestina,
como
partes
de
um
presente
em
disputa.
No
terceiro
capítulo,
Reparo,
Reparações,
Retorno:
A
Condição
de
Mundanidade
,
a
autora
explora
as
complexas
relações
entre
o
arquivo
histórico,
a
violência
da
escravidão
e
a
luta
por
reparações.
O
texto
critica
a
abordagem
tradicional
de
arquivos
como
fontes
definitivas
para
quantificar
o
impacto
da
escravidão,
e
argumenta
que
eles
perenizam
a
desumanização
ao
transformar
milhões
de
africanos
escravizados
em
estatísticas,
apagando
suas
histórias
e
individualidades.
Ou
seja,
para
ela
a
história
não
deve
apenas
descrever
o
desenvolvimento
dessas
ferramentas,
mas
se
comprometer
a
torná-las
inaplicáveis
no
futuro.
O
conceito
da
“porta
do
não
retorno”
ilustra
a
brutalidade
desse
processo:
um
conceito
para
a
experiência
de
desumanização
daqueles
que
foram
arrancados
de
seus
mundos
e
transportados
para
uma
realidade
que
os
redefiniu
exclusivamente
como
escravos,
negando
suas
Resenha
de
“História
Potencial…
vidas
e
histórias
prévias.
Esse
processo
de
desumanização
remete
ao
pensamento
de
Mbembe,
segundo
o
qual
“a
raça
era
simultaneamente
o
resultado
e
a
reafirmação
da
ideia
global
da
irredutibilidade
das
diferenças
sociais”
(Mbembe,
2014,
p.
57).
A
raça,
nesse
contexto,
surge
como
uma
construção
que
justifica
e
mantém
a
hierarquia
e
a
exploração,
sendo
fundamental
para
a
dominação
colonial
e
escravista.
Neste
terceiro
capítulo,
a
questão
do
arquivo,
que
permeia
todo
o
livro,
é
aprofundada,
destacando
seu
papel
como
uma
tecnologia
que
legitima
a
violência
de
forma
institucionalizada.
Longe
de
ser
um
repositório
neutro
de
fatos,
o
arquivo
funciona
como
uma
ferramenta
de
dominação,
reduzindo
indivíduos
a
categorias
desumanizadoras,
como
a
persistência
do
rótulo
de
“escravo”
mesmo
após
a
abolição
formal.
Se
nos
capítulos
anteriores
foram
trabalhados
consecutivamente
a
ideia
de
“desaprender
o
imperialismo”
e
a
identificação
das
“ferramentas
do
Senhor”,
neste
terceiro
capítulo
ela
trabalha
o
conceito
de
“letramento
do
imperdoável”,
uma
ideia
que
inflama
as
práticas
convencionais
de
leitura
de
imagens
e
documentos
históricos,
destacando
que,
ao
olhar
para
as
imagens
e
registros
de
pessoas
escravizadas,
devemos
rejeitar
a
narrativa
que
limita
essas
pessoas
ao
estatuto
de
escravos,
e
em
vez
disso,
imaginar
suas
vidas
e
histórias
antes
do
cativeiro.
Esse
letramento
exige
que
se
reconheça
a
violência
contínua
do
roubo
de
suas
vidas
e
que
se
conteste
as
estruturas
arquivísticas
que
priorizam
detalhes
técnicos
sobre
a
realidade
humana
da
escravidão.
A
autora
nos
impele
não
invalidar
a
tecnicidade
dos
arquivos
mas,
a
questionar
como
o
debate
sobre
reparações
é
conduzido.
Com
o
argumento
de
que
o
foco
em
“precisão
Danielle
Freitas
258
histórica”
–
em
termos
de
datas,
lugares,
contratos
e
valores
financeiros
–
obscurece
a
lógica
mais
ampla
da
violência
imperial
e
colonial.
O
sistema
arquivístico,
quando
impõe
a
necessidade
de
mais
pesquisa
para
justificar
as
reparações,
limita
a
compreensão
da
violência
histórica
e,
portanto,
da
urgência
e
legitimidade
das
reivindicações
de
reparação.
Um
dos
conceitos
centrais
do
livro
é
o
de
concidadania.
Esse
conceito
rejeita
a
lógica
da
cidadania
imperial,
que
define
quem
é
digno
de
direitos
e
quem
está
excluído,
e
propõe
uma
visão
de
pertencimento
que
não
é
determinada
por
fronteiras
nacionais
ou
pelo
status
de
“cidadão”.
A
concidadania,
ao
contrário,
é
um
conceito
que
abarca
todos
aqueles
que
se
opõem
ao
colonialismo,
ao
capitalismo
racial
e
à
exclusão,
criando
um
novo
tipo
de
solidariedade
entre
sujeitos.
Essa
proposta
de
concidadania
não
é
uma
meta
para
o
futuro,
mas
uma
prática
presente
que
exige
uma
reconfiguração
das
relações
políticas
e
sociais,
reconhecendo
a
dignidade
e
os
direitos
de
todos,
independentemente
das
classificações
impostas
pelo
imperialismo.
O
livro
também
critica
a
busca
incessante
por
“novidades”
no
campo
acadêmico,
e
questiona
a
ideia
de
que
as
soluções
para
os
problemas
contemporâneos
sejam
inéditas.
A
autora
afirma
que
a
resistência
ao
imperialismo,
ao
colonialismo
e
ao
capitalismo
não
é
uma
invenção
moderna,
mas
uma
prática
que
já
existia
entre
os
povos
oprimidos,
cujas
histórias
foram
apagadas
ou
distorcidas.
O
desaprender
implica,
portanto,
um
reconhecimento
de
que
a
resistência
e
as
formas
de
reparação
não
precisam
ser
descobertas,
mas
sim
recuperadas
e
revitalizadas.
Portanto,
a
leitura
de
História
Potencial
é
essencial
não
somente
para
acadêmicos,
mas
para
qualquer
pessoa
interessada
em
compreender
as
complexidades
da
história
contemporânea
e
o
papel
que
Resenha
de
“História
Potencial…
cada
um
desempenha
na
construção
de
um
futuro
mais
justo.
Azoulay
(2024)
nos
instiga
a
refletir
sobre
nossa
própria
posição
no
mundo
e
a
responsabilidade
que
temos
para
com
aqueles
que
ainda
lutam
contra
as
consequências
do
imperialismo.
Desse
modo,
essa
obra
é
um
manifesto
por
um
olhar
mais
crítico
e
humano
sobre
o
passado
e
suas
implicações
no
presente.
Referências
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