Call for papers - LITERATURA E JOGOS: DIÁLOGOS E INTERAÇÕES
Ao relacionar literatura e jogos, o primeiro pensamento que surge é que são distantes um do outro. Contudo, a relação entre os dois é mais aproximada do que se imagina. Em primeiro lugar, os dois são considerados formas de arte e ambos têm o propósito (dentre seus vários objetivos) de induzir sentimentos e emoções em seu leitor ou jogador. Os jogos, enquanto forma artística, podem ser aproximados da literatura, ultrapassando a leitura do texto redigido e englobando a leitura imagética e imaterial do texto-jogo.
Nesse contexto, a agência, essencial em contexto de interação, ocorre quando o jogo responde às ações do jogador - um conceito explorado por Flávia Gasi em sua dissertação de mestrado - o que coloca o leitor-jogador no papel poético do processo receptivo. Assim, como discutido por Janet Murray em Hamlet no Holodeck, a agência pode ser entendida como as escolhas conscientes dos jogadores no ato de interação com o objeto jogo e será limitada pelas regras determinadas pelo ato de jogar. Desse modo, essas limitações podem ser tanto codificadas nos jogos digitais, quanto pré-estabelecidas pelo sistema de regras em jogos não digitais.
Os jogos então, em uma perspectiva afim à da Estética da Recepção, tem sua construção no próprio ato de jogar, o que nos remete ao ato de leitura de Wolfgang Iser, que percebe o ato de leitura como um ato de diálogo entre o texto e a bagagem cultural do leitor. Filipe Freitas, no livro Videogame como Comunicação, retoma o conceito de Iser e aplica aos jogos, explicitando esse processo no ato de jogar, sendo este também um ato de recepção.
A Estética da Recepção discute, em suma, aspectos da hermenêutica literária; hermenêutica tida como a filosofia da interpretação, que pressupõe a comunicabilidade da literatura. A teoria, segundo Hans Robert Jauss, distingue diferentes modos de recepção que influenciam diretamente na formação do juízo estético e na compreensão fruidora e na fruição compreensiva. Nesse sentido, é interessante destacar que todo esse processo não é passivo, ele desencadeia uma reação do receptor e essa reação gera produção, mesmo que puramente intelectual. Seja essa reação catártica ou criativa (ou ambas), ela estabelece o tom da relação entre obra e receptor.
Umberto Eco discute, em Seis Passeios pelos Bosques da Ficção, que o texto narrativo pode ser um bosque com veredas que se bifurcam, no qual o leitor é constantemente convidado a fazer escolhas que influenciam sua experiência de leitura. Esse “leitor-modelo” é um tipo ideal que o autor prevê e tenta criar, e que colabora com a construção de sentido da obra. E todos esses conceitos podem se aplicar ao jogador, porque é no ato de jogar que construímos as nossas jornadas nos jogos.
A experiência de ler um livro e jogar é diferente, porém há algumas obras literárias que não se limitam apenas ao recurso de contar uma história de forma ordenada, elas vão além ao impor determinadas “regras” que fazem com que o leitor saia da zona de conforto de uma leitura habitual e realize uma leitura interativa de acordo com dinâmicas definidas pela própria narrativa da obra. Pode-se chamar essa literatura de ergódica que, segundo Espen Aarseth, é um estilo literário em que um esforço não convencional é necessário para que o leitor consiga percorrer o texto.
Algumas obras podem ser apresentadas como exemplos de uma literatura que tem como característica principal o uso de formas lúdicas mais comuns nos jogos. A Mandíbula de Caim, de Edward Powys Mathers, possui todas as suas páginas desordenadas e o objetivo do leitor é desvendar seis assassinatos e, para fazer isso, precisa entender qual é a ordem correta da narrativa. Esse livro acaba por se tornar, não só um suspense policial, mas também um quebra-cabeça intrigante. O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar, é composto de 155 capítulos à primeira vista ordenados de forma sequencial; contudo, no início do livro o autor sugere duas formas de leitura: uma que exclui os 99 capítulos finais (chamados de "prescindíveis") e outra que não segue a sequência convencional dos números, mas salta pelos capítulos de maneira aparentemente arbitrária. S., de J. J. Abrams e Doug Dorst, possui uma narrativa linear convencional, porém conta com várias anotações nas margens das páginas que foram feitas por leitores fictícios, apontando suas próprias descobertas a respeito da história ali contada e adicionando mais camadas narrativas à principal, fazendo com que o leitor tenha uma noção mais completa da história através de metanarrativas inseridas. Casa de Folhas, de Mark Z. Danielewski, utiliza-se de uma proposta similar à utilizada na poesia concreta, ou seja, o aspecto gráfico da escrita é utilizado de formas não-convencionais com o objetivo de trazer sentimentos de agorafobia e claustrofobia.
Essas obras utilizam-se de formas lúdicas para proporcionar aos leitores outros tipos de experiências que se aproximam daquelas proporcionadas pelos jogos. Johan Huizinga considera que o jogo é mais antigo do que a cultura e que o ser humano é um homo ludens (homem lúdico). As formas lúdicas perpassam todas as atividades humanas e não seria diferente com a literatura. Ao aproximar o jogo da literatura, destaca-se sua capacidade de narrar histórias e de apresentar personagens, tramas e cenários, envolvendo o jogador na narrativa com o diferencial de interagir com a história.
Os jogos possibilitam a modificação das narrativas pelo jogador, se adaptando às suas escolhas (narrativas ramificadas) ou até mesmo permitindo uma narrativa emergente que surge do ato de jogar, pois oferece sistemas de comportamento de suas partes que interagem com o jogador, e entre si, de formas diferentes a cada experimentação do jogo. A interação que o jogo proporciona possibilita que novas formas de narrativas possam surgir, o que também se encontra em outros contextos e mídias, como o teatro participativo, os vídeos interativos, os quadrinhos digitais, entre outros.
Essa gama de possibilidades novas para se contar uma história fez com que muitos jogos fossem desenvolvidos a partir de obras literárias, permitindo novas formas de se relacionar com o conteúdo conhecido. Como vemos na obra de Ian Bogost e de Miguel Sicart, os jogos podem até utilizar a criação de histórias como uma mecânica própria, permitindo que o jogador construa sua narrativa. Jogos como RPG (Role Playing Game - Jogos de Interpretação de Papéis), sandbox (Caixa de Areia), jogos de criação de narrativas, entre outros, permitem que os jogadores se tornem autores de narrativas pontuais, em um processo lúdico que incentiva a formação literária.
Por fim, é importante ressaltar que nossa intenção, neste dossiê, não é assumir que literatura é jogo ou vice-versa, a ideia é exatamente apresentar obras que estabeleçam relações, além de demonstrar e explicar como essas relações acontecem e seus possíveis desdobramentos.
Temas relacionados:
- Ensino de literatura utilizando jogos
- Literatura ergódica
- O lúdico e a literatura
- Narrativas em jogos
- RPG (Role Playing Game) e literatura
- Livro-jogo
- Adaptação e recepção da literatura em jogos
- Adaptação e recepção de jogos na literatura
Organizadores
Glaudiney Moreira Mendonça Junior (UFC), Marina Maria Abreu Melo (UFC), Lucas Matheus Vasconcelos Santos (UFC), Sabrina Ramos Gomes (CEFET/MG) e Pedro Oswaldo Horta Martins Pena (USP)
Prazo de submissão
05/06/2025 – 30/07/2025